segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Solenni Apollux - Rascunho

Esse é o rascunho da jovem espártaca. Os desenhos que coloquei aqui são para vocês terem uma idéia de como eu visualizo os personagens. Vou colocar outros mais caprichados e, com certeza, coloridos - por sinal já estou preparando um deles. Se vocês quiserem me mandar desenhos também eu adoraria, quero ver cada um dos Regidos em diferentes pontos de vista. E, claro, vou posta-los aqui. Estou ansiosa para recebe-los em meu e-mail!
Espero que estejam gostando da história e dos desenhos!
Até mais!

domingo, 29 de agosto de 2010

Coroas de Eternia - O Escudo, A Espada e O Cetro

Sétimo Escrito – Em Magussíria

Era uma praia extensa, com areias finas, mar de ondas suaves que constantemente batiam nas pedras arredondadas da parte rasa. O céu estava riscado por etéreas nuvens e palmeiras balançavam ao vento. Aquele seria um belo lugar se não fosse um único detalhe: era todo como num filme antigo, todo em tons de cinza.

Estel achou-se nesse lugar e, não sabia como, ao contrário das coisas ao redor, estava colorido. Vestia-se de branco com os pés descalços. A areia era morna e o vento refrescante trazia a maresia para suas narinas. Aquele lugar não lhe era estranho...mas não lembrava de quando estivera nele, ou mesmo se esteve algum dia.

Observando mais a frente, viu um rústico porto de pedra carcomido pelas ondas e reconstruído pelos corais e algas. Havia alguém no porto. Uma mulher, colorida e trajando roupas brancas também. Estava absorta olhando para o mar, seria confundida com uma estátua não fossem seus cabelos e roupas ao vento.
Estel queria chamá-la, conhecia-a, mas não lembrava o nome. Mas como?! Ele nunca a vira na vida! Será...?




— Estel, está tudo bem?

Estel abriu os olhos e se deu conta de tudo diferente ao redor ainda meio tonto. Havia sido um sonho. Estava deitado sob a sombra de uma árvore ao pé dos morros de pedra. Pela claridade já era manhã alta. Solenni, ao seu lado, segurava-lhe o braço e a cabeça.

— Estel, tá tudo bem? — perguntou ela, pela segunda vez, numa voz preocupada.

— Tá...eu acho. — respondeu o outro, sentando-se e esfregando o rosto. — O que houve?

— Você começou a falar, não entendi o que era, e começou a esticar a mão, como se quisesse pegar alguma coisa. Depois de um dia inteiro dormindo, pensei que estivesse se sentindo mal.

— Hãã?! Um dia inteiro dormindo?! Como?!

— Não lembra o que aconteceu?

— Sim...mas não pensei que fosse ficar tão baqueado por causa... Ei! Como estão suas mãos?!

— Quase cicatrizadas. — a espártaca mostrou as mãos enfaixadas. — Ainda um pouco doloridas, mas bem.

—...consegue mexer?

— Sim. Como eu disse, só um pouco doloridas ainda.

—...

— Não se culpe, Estel, você não foi o responsável por isso. Aliás, se não fosse por você, não seriam somente minhas mãos que estariam machucadas. Salvou nossas vidas, era disso que devia lembrar.

—...

— Está com fome?

— Muita.

Minutos depois, uma refeição foi preparada e consumida.

— O que aconteceu depois que eu “dormi”? — indagou Estel, com a boca entupida.

— Eu o trouxe para cá, onde deixamos nossas mochilas. — respondeu a outra. — Felizmente você não tinha nada além de exaustão, então deixei que dormisse. Nada, nem ninguém, apareceu. Aproveitei para nos acharmos.

Solenni abriu o mapa, de papel velho e tinta verde desgastada, que usara dias antes. Ele tomava Espártaca como ponto central.

— Estamos aqui. — disse ela, apontando para pequenos triângulos desenhados. — Se continuarmos indo para o leste, chegaremos a Magussíria, o reino mais próximo de nós agora. Mas vai depender do que o escudo nos disser.

— Falando nele, onde está?!

— Junto das nossas mochilas. Está muito diferente, dormiu redondo e acordou daquele jeito.
O garoto só entendeu o que a outra dissera quando olhou para a arma...era impressão dele ou o escudo crescera?!

— Meu deus! — exclamou Estel admirado, colocando o escudo no braço. A arma agora cobria da sua cabeça até o meio da perna.

E não somente isso. O escudo de Estel mudara de forma e aparência também. Na forma, não era mais circular, transformara-se numa ponta de flecha ligeiramente convexa com as pontas arredondadas. Na aparência, toda a parte verde da versão anterior mudou para cristal, para vespertrita. As bordas de metal e a estrela do meio foram a únicas coisas que permaneceram, apenas aumentando na proporção do novo escudo.

—Ei, onde está a litta?! — lembrou-se Estel.

— Acho que foi ela quem modificou o escudo. Quando você desmaiou, soltou a litta que estava na sua mão, daí eu a coloquei do lado do escudo. No dia seguinte ele ficou assim e a litta havia desaparecido. — explicou Solenni, pensativa. — Estel, o escudo não está pesado?

— Não, está mais leve por incrível que pareça. Nem acredito como escapamos dali...

— Você sabia o que estava fazendo?

— De jeito nenhum! Eu estava tão apavorado que pensei que fosse vomitar...mas saiu aquela frase estranha... A litta estava queimando na minha mão... Foi muito bizarro.

— Mas salvou a gente.

— É...deixa eu ver para onde vamos agora.

Mal Estel ergueu o escudo e a seta de luz verde apareceu, continuando a apontar para o leste.

— Acho que ele está com pressa. — comentou o defensor.

Instantes depois Estel e Solenni estavam andando. Resolveram atravessar os morros, ao invés de contorná-los, encontrando uma subida suave que do outro lado se transformava numa rampa gramada. A planície continuava do outro lado, mas agora aqui e acolá os garotos viam pedras perfeitamente ovais da altura das árvores. Aproximando-se de uma destas, Estel viu que nela estava esculpida a figura de um homem com cabeça de lobo virado para o leste.

— Solenni, e essas pedras?! — indagou o garoto, curioso. — Você sabe o que é? E quem fez, foram homens-lobo mesmo?

— Sim. Mas quem as fez foram Lupinaras. — disse a jovem. — Eles vivem nas savanas, em grandes tribos bem longe daqui. Já me encontrei com um grupo deles, são muito gentis com viajantes, acreditam que dão boa sorte. Mas...se estão trazendo essas pedras até aqui, é porque a situação deles piorou. Esses obeliscos são a representação do que eles chamam de espíritos ancestrais. Eles dizem que os espíritos têm contato direto com o Sábio-Rei e a Coroa Branca, e pedem para os vivos uma boa caça, colheita farta, saúde e etc. Eles estão tendo que vir até muito longe de casa para tentar resolver as coisas, o que eles odeiam. Ah, Estel, e uma coisa, não diga que eles são “homens-lobo”, ele preferem a parte lobo que a parte homem, por isso, chame-os de Lupinaras mesmo. Quer dizer “corpo de homem, coração de lobo”.

Estel respondeu um “certo” muito distante, estava pensando no fato dos Lupinaras gostarem mais de serem lobos do que homens. Pelo o que estavam passando? Fome? Doenças? Ou quem sabe os dois e outras coisas mais... De certa forma parecia que tinha voltado para seu mundo e estava assistindo ao noticiário... Os mesmos problemas surgidos de formas diferentes. Eternia era uma Terra com nome estranho.

Ao meio-dia, Estel e Solenni recostaram-se numa das pedras, escondendo-se do sol abrasador. A espártaca abriu o mapa mais uma vez.

— Estamos mais menos aqui. — falou. — Essa planície é longa, levaremos uns quatro dias para atravessá-la, isso parando apenas para comer e dormir. Todo dia antes de partir vamos consultar o escudo. Se continuarmos nessa direção vamos chegar aqui, no Lago Náiade, o que seria ótimo já que nossas garrafas de água não vão durar muito.

— Opa! Foi mal...tô com sede. — defendeu-se Estel, sem jeito, que percebeu que bebera uma garrafa de água quase por inteiro. —Aqui faz um baita calor! Quer um gole?

Levantaram acampamento e seguiram viagem sem esperar que o sol baixasse. O defensor colocou o escudo sobre a cabeça e assim conseguiu uma sombra permanente. Bem que ele queria oferecê-la também para Solenni, mas além de realmente não haver espaço, ele não sabia como fazer o convite sem gaguejar. Fora que ela não parecia tão incomodada com o calor e a luz. Então ficou na dele.

Os outros dias não trouxeram nenhuma novidade, seja no calor ou na paisagem. E para a alegria deles, o escudo os levou para onde queriam e precisavam.

— Ali está. — apontou Solenni, para uma enorme superfície espelhada mais adiante. — O Lago Náiade, um dos maiores de Eternia.

—Muito bonito... — admirou-se Estel.

Bonito e, principalmente, confortável. O lago trazia para os jovens tudo que eles mais queriam: sombra e água, muita água fresca. Além também de comida e uma brisa constante que dissipava o calor.

— Vamos passar o resto do dia aqui. — declarou Solenni, num raro momento de total relaxamento, esticando as pernas ao se sentar embaixo de uma árvore a beira-rio. — Mas amanhã acordamos cedo para continuar.

— Eu não acho ruim. — falou Estel, largando-se preguiçosamente no chão fofo e de grama macia.
— Acho vou passar um tempo de molho dentro do lago... Ei, Solenni, você não se importa...

O garoto olhou para trás e parou de falar. Solenni havia caído no sono.

— “Deve ser a primeira vez que ela descansa de verdade depois daquela noite.” — pensou Estel, aproximando-se. — “Eu devo estar dando trabalho...”

Estel sentou-se silenciosamente ao lado da outra e pôs-se a observá-la. A expressão séria de Solenni permanecia também quando ela dormia, como se, até inconscientemente, continuasse a vigiar tudo ao redor. Mas, pensando bem, era a seriedade que a deixava bonita. Lembrou-se da conversa com Mestre Leônidas...lembrou-se do sorriso dela.

— O que você diria se eu falasse que...gosto de você? — soltou Estel, sério, tão baixinho que parecia estar falando mais para ele mesmo. — Não sei como se fala por aqui...será que é namorar também? Mas...eu nem sou daqui, você não ia querer arriscar, não é? Deixa pra lá, Solenni, falei besteira.

Estel acariciou de leve a mão enfaixada de Solenni. Voltou para onde estava e largou-se novo no chão. Aquele sentimento estava frustrando-o, não sabia o que fazer. Apesar do que o mestre disse, o receio de falar com ela era maior. Além de que, quando tudo terminasse, Estel voltaria para Terra. E aí?! Como ia ficar? Nunca mais a veria? Não teria escolha? Por isso não podia fazer o que queria fazer? Aquelas dúvidas estavam lhe dando dor de cabeça e sono.

Dormiu.

Eu estava esperando por você. — falou uma voz suave e triste. — Estou esperando há muito tempo o dia em que finalmente você me encontraria. Não tema, sua estrela o guiará. Eu preciso muito da sua ajuda...ele até mais do que eu. Mas, por hora, descanse, você merece. Acalme-se e continue, tudo pelo que você anseia,virá.

O som do mar dominava o ambiente. A mulher, que estava no porto de pedra virou-se, porém outra imagem tomou o lugar do seu rosto. Arcos de pedra movimentavam-se onduladamente, não possuíam começo nem fim. Riscos amarelos no escuro começaram a se abrir. E mais uma vez, a lótus desmanchava-se em sangue... Estel! Estel!

O garoto abriu os olhos, zonzo.

—Oi...oi, Solenni! — espantou-se Estel, ao ver a outra muito próxima. — Faz tempo que está acordada?

— Não. — respondeu ela. — Vim ver como você estava. Sonhando de novo, não era?

— É...sempre a mesma coisa. Estou numa praia cinza e, quando acho que vou conseguir ver o rosto da mulher no porto, surgem outras imagens sem sentido. Os riscos no escuro, a flor que vira sangue, e agora arcos de pedra que se mexem como uma cobra. E você, como está?

— Bem...por que a pergunta?

— Porque eu vi o jeito que você despencou de sono ali. Solenni, não precisa chegar a esse ponto por minha causa. Eu já disse que estou aqui para ajudar e não para dar mais trabalho a você. Não quero ver você assim de novo.

Mesmo na luz fraca do entardecer Estel notou as faces avermelhadas da outra. Ela virou o rosto e disse:

— Não se preocupe, se me esforcei a esse ponto foi porque eu quis. Eu também não quero ver você mal, Estel, mas se ficarmos pedindo um ao outro para fazer ou não fazer alguma coisa nunca chegaremos num acordo. Fazemos como meu avô nos aconselhou. Concorda?

— Claro, eu confio em você plenamente.

Estel deu um franco sorriso para Solenni, que lhe deu as costas e saiu rapidamente.

Vamosatrásdojantar. — disse ela, de uma vez só.

Estel deu uma risadinha baixa, acabava de descobrir uma coisa engraçada na espártaca: no auge da vergonha, ela ficava com as orelhas da cor dos cabelos.

A refeição àquela noite foi farta. Solenni mostrou a Estel como caçar peixes usando um galho talhado de arpão, e, claro, a garota foi sensacionalmente melhor que ele. Ela também mostrou as coisas que eram comestíveis ali, como cogumelos, frutas a até algumas flores. De uma dessas flores, uma enorme e vermelha que crescia na beira da água, Solenni tirou bolinhas amarelas e gelatinosas que cresciam no centro. Fez com elas um suco que lembrou muito a Estel uma laranjada. Ela disse servir também como um ótimo anti-inflamatório.

— Solenni, você também continua a ter sonhos estranhos? — indagou o defensor, pensativo.

— Sim, mas é apenas um. Não vejo tantas coisas como você. — respondeu ela, sincera. — Agora vejo um oásis...e ouço a voz de alguém me chamando lá, a voz de um homem. Nunca chego perto o suficiente para ver o rosto dele. Está preocupado com alguma coisa que sonhou?

— Com o que poderia me preocupar, não tem sentido no que sonho! Mas não sei se eles tivessem, seria melhor, meu primeiro sonho teve “sentido”, só que eu não entendi nada e, no fim, tive que esperar acontecer.

— Então faça isso, deixe as coisas acontecerem. Melhor do que ficar com a expectativa de uma coisa que você nem sabe o que é.

— Verdade...mas eu espero que seja algo bom, muito bom. Não agüento ficar esperando muito tempo, já bastaram esses nove anos sonhando a mesma coisa.

Depois do jantar, Solenni e Estel deixaram tudo pronto para a partida de manhã. A garota retirou as ataduras das mãos, deixando o outro mais aliviado, os cortes estavam praticamente fechados.

Naquela noite, excepcionalmente, ninguém ficaria de guarda, contudo a fogueira ficaria seguramente acesa. Solenni logo caiu no sono outra vez sob o olhar protetor de Estel, que também observou de novo a Estrela Vésper antes de adormecer. Queria muito que as palavras que ouvira no sonho fossem verdade.

A manhã veio muito fria e com fios de névoa. O defensor acordou com um cheiro intenso e cítrico que invadiu suas narinas.

— Bom dia. — disse Estel, soltando um enorme bocejo. — Ei, tá tudo legal com você?

— Tá, tirando o frio. — respondeu Solenni, sentada perto da fogueira enrolada em seu cobertor. Ela espirrou três vezes.

Estel levantou e colocou o seu cobertor sobre a espártaca.

— Espero que ajude. — disse.

— Muito. Quer um pouco? — falou a outra, oferecendo sua caneca fumegante.

— O que é isso?

— Chá de Solenni.

— Hãã?!

— Lembra árvore de flores amarelas do jardim? Pois é, a flores amarelas se chamam solennis. O chá que se faz com elas é a única coisa que me esquenta em dias assim.

A guerreira colocou em outra caneca um pouco de um líquido ocre-claro fumegante. Estel bebeu-o. Era muito gostoso, mas indiscutivelmente forte. Era como uma mistura de todas as frutas cítricas que Estel conhecia.

— Ei, esse negócio esquenta mesmo. — comentou o garoto, sentindo agora o vento gelado da manhã como uma brisa fresca.

— Consulte novamente o escudo, Estel. Vamos confirmar pela última vez se teremos que entrar em Magussíria. — pediu Solenni.

O defensor o fez e eles tiveram a confirmação. Colocaram as mochilas nas costas e saíram.

— É, está tudo saindo como a gente pensou. — disse Estel.

— Até agora, sim. — contrapôs a outra. —Mas Magussíria é tão grande quanto Espártaca, vai ser complicado achar uma litta ou regido lá.

– Ele pode até ter sonhado com você ou com nós dois, mas e se ele não acreditar? E se ele não souber quem somos nós?

E a discussão continuou até que as possibilidades fossem tantas, que eles decidiram chegar primeiro e pensar depois.

As nuvens cinzentas do céu se desmancharam numa chuva fina e rápida, logo depois a claridade voltou a reinar sobre as coisas. Estel descobriu que Magussíria era realmente muito próxima do Lago Náiade. No horizonte já despontavam grandes pontas atrás de um muro cinzento.

— Estel, acho melhor precavê-lo de algumas coisas antes de entrarmos no reino. — declarou Solenni, parecendo um tanto ressentida. — Magussíria é formado principalmente de pessoas ligadas a magia. Magia para eles é a essência de todas as coisas do mundo e, por saberem mexer com ela, acham que estão acima dos outros.

— Como assim “acima dos outros”? — estranhou o defensor.

—Se magia é a essência de todas as coisas, logo, a magia é a essência da Coroa Branca. É isso que eles defendem. Acham que são abençoados, escolhidos... enfim, acreditam que os que não usam magia são tolos, e os que usam de “força bruta” mais tolos ainda, selvagens até.

— Todos são tão ridículos assim?

— Infelizmente a maioria. Os que não são tão obtusos assim têm a decência de sair do reino e conhecer outros lugares e pessoas. Existem até alguns deles em Espártaca. Mas aqui vive a maioria, então...

— Então nossa estada aqui vai ser mais complicada do que eu imaginei.

O chão gramado se transformou numa estrada de terra e, em seguida, numa de pedras cinzentas e redondas. O Reino de Magussíria erguia-se com muitas torres de cúpulas de estampas coloridas e até algumas que flutuavam, ligadas a outra construção por correntes. Estel achou-as muito parecidas com os castelos russos que já vira em seus livros.

Chegando num enorme portal de entrada, Estel e Solenni foram barrados por quatro sentinelas, além de duramente observados pelas enormes torres de vigia que possuíam forma de gárgula. Os quatro homens não se pareciam com soldados, vestiam só roupas elaboradas de tecidos azuis e cinzas, além de segurarem um longo cetro negro nas mãos.

— Alto lá! — disse um deles. — Identifiquem-se.

—Somos de Espártaca. — respondeu Solenni, com as mãos ao longo do corpo. Estel adotou a mesma posição. — Solenni Apollux e Estel Elecktrion.

— O que fazem aqui? — as sentinelas apontavam sem pudor os cetros para a cabeça e o coração dos viajantes. —Se bem que não é a primeira vez que a vejo por aqui. Mesmo assim, vou lacrar as mãos de vocês, ninguém mexe com armas laminadas aqui em Magussíria.

— Estou em mais uma das minhas viagens. Vim para repor suprimentos.

— E ele?

— Sou o escudeiro dela. — respondeu Estel, antes de a outra falar qualquer coisa.

— Hã?! — não entendeu o guarda.

— Escudeiro, uma espécie de carregador. Eu levo as coisas da Mestra Solenni.

— Você, todo armadurado assim ainda é um aprendiz?!

— Sim, e é por isso que ando protegido! Não quero me machucar! Nem esse escudo aqui é meu. Só estou andando por aí afora porque meu mestre mandou, e não há desonra maior para um escudeiro que desobedecer ao mestre. Mas se não, eu...

— Tudo bem, tudo bem! Eu não vou lacrar você, olhos de gato, já a sua mestra, sim. Não confio na força bruta. Se você fizer alguma gracinha, vamos saber! Ah, se vamos. Apresente o escudo e espada, espártaca.

Solenni, muda, fez o que a sentinela lhe ordenara. Ele fez uma cara desconfiada ao notar o sol e estrela nas armas. Uma luz acinzentada surgiu na ponta do cetro, a qual foi passada nas armas e nas mãos da garota.

— Quanto tempo pretendem passar aqui? — indagou a sentinela. — E onde vão ficar?

— Três dias, no máximo. Vamos nos hospedar no Torre Verde. — respondeu Solenni. A sentinela olhou para a torre-gárgula, a qual piscou os olhos de pedra três vezes.

—... Podem prosseguir, cadastramos vocês. Nada sai da memória das gárgulas...estão avisados.

E sob os olhares inquisidores das sentinelas e das torres-gárgulas, Estel e Solenni entraram em Magussíria. Quando estavam seguramente distantes, o garoto perguntou:

— O que fizeram com você?

Solenni não respondeu e levou as mãos ao cabo da espada. Estel notou que ela não conseguia fechá-las em torno do objeto, por mais força que colocasse.

— A mesma coisa acontece se eu tentar me aproximar do escudo. — completou a espártaca. —
Portanto, em relação a lutar, estou inútil. Ainda bem que você fez aquilo...mas como foi que teve a idéia?

— Depois do que você me falou, achei que eles não nos dariam boas vindas. Então aquele cara falou em lacrar nossas mãos, aí tive certeza. — respondeu Estel, dando de ombros. — Saiu de supetão, que bom que deu certo. Para onde vamos agora?

— Para o único lugar daqui que aceita “estrangeiros selvagens”, o Torre Verde.

As ruas do lugar estavam em ebulição. Eram muitas pessoas para lá e para cá, carregando coisas, discutindo outras, saindo e entrando em todo canto. Solenni os levou por algumas ruas já certas.

As pessoas não paravam de olhar para eles, umas com desprezo outras com uma cara que Estel jurou ser de choro. Ela parou a poucos metros de um prédio alto, onde os quadrados que eram os andares estavam distribuídos de um modo que lembravam uma árvore, os “galhos” eram escadas com tetos arqueados cobertos de folhas e flores, e ele era verde e branco.

Havia uma pequena aglomeração na porta do local, mas os transeuntes não ligavam para ela. Um grupo de uns vinte garotos cercava uma jovem. No meio, estavam ela e um dos garotos. Loiro, cabelos grandes presos num rabo-de-cavalo baixo que descia até o meio das costas. Ele passou a mão pelo rosto, impaciente, e disse:

— Iona, é a última vez que eu peço, coopere. É pelo seu próprio bem.

— Não acredito nas suas ameaças, Luan. — retrucou a garota, irritada. — Porque elas não passam disso, ameaças. Você e seus cães de guarda são uns covardes!

Os garotos da roda gritaram, ofendidos. O garoto louro não disse nada, suspirou fundo e fez um gesto com a mão. Os que estavam atrás deles fecharam o círculo.

— Iona, é a última vez, senão...

— Senão o quê?

Todos do grupo viraram as cabeças para Solenni, que acabava de chegar ali com Estel. O jovem loiro assustou-se e ficou branco, como quem acabava de ver um fantasma. Ele pigarreou um pouco, passou a mão pela cabeça outra vez e disse:

— Você de novo. Não se cansa de se meter em assuntos que não são da sua conta?

— É da minha conta sim. — respondeu Solenni, muito séria. — Eu é que pergunto se você não se cansa de perseguir Iona. Pelo Sábio-Rei, deixa a garota em paz!

— Se ninguém aqui me dá ordens, porque você, uma selvagem de fora, me daria?

— Olha lá como fala, idiota! — exclamou Estel, que não estava entendendo nada, mas entrou na discussão. — Você só é atrevidinho assim porque está ladeado de outro monte de idiotas!

— Olha lá como fala, você, olho-de-basilisco!

Iona e Solenni exclamaram de horror, enquanto os garotos gritavam aquele nome em alto e bom som. Algumas pessoas da rua começaram a espiar.

— Retire o que disse, imbecil!! AGORA!! — gritou Solenni, raivosa, como Estel nunca a vira antes.

— Ficou nervosa? Por quê? — desdenhou Luan, rindo e se aproximando. — Ele é seu namorado?

— E se for?! Algum problema?! Mais um motivo para eu quebrar a sua cara por essa ofensa. Retire o que disse!!

— Se eu fizer isso, o que eu ganho em troca?

O garoto loiro puxou a mão de Solenni para bem perto do rosto, como se fosse beijá-la. O susto dela durou o tempo em que Estel fez uma careta de indignação. No outro instante a espártaca já torcia o braço do garoto, colocando-o nas costas dele de um modo terrivelmente desconfortável.

— Da próxima vez, vá tentar agarrar um dos seus puxa-sacos, estúpido!! — disse Solenni, fazendo o outro gemer de dor sem piedade. — Alguém mais se habilita?!

Os outros garotos tiraram dos bolsos cada um uma jóia de cor e tamanho diferente. Elas se transformaram em cetros, que foram apontados para Estel e Solenni. Quando Estel tencionou em tirar o escudo, Luan gritou:

— Não, não façam nada! Eu retiro o que disse, garota, agora me larga!

— Com prazer, já me sujei demais!

— Eu vou denunciar você, selvagem! — ameaçou ele.

— Ah, não vai não!! — exclamou Iona, decidida. — Atreva-se e eu denuncio você. Seu pai não vai ajudá-lo de novo.

— E então, desiste? — indagou Solenni.

— Por enquanto. — respondeu ele, a raiva contida. — Vamos embora, pessoal.

Os garotos falaram mais alguns palavrões e saíram pela multidão.

— Meu Sábio-Rei! Solenni, obrigada por me salvar mais uma vez. — disse a jovem, respirando fundo. — Eles estão cada vez piores.

— Não há de quê. — respondeu a espártaca, apertando a mão da outra.

— Alguém pode me explicar o que foi isso. — falou Estel, perdido. — Por que aqueles cavalos estavam cercando você?

—É uma longa história, mas, para resumir, o chefão dos estúpidos quer uma planta muito rara que só a minha família produz. — explicou a jovem. — E exatamente por isso, eu não posso ficar dando amostras grátis por aí. Aquele idiota do Luan está desesperado por ela, sei lá pra quê, mas está. Ei, a Solenni eu já conheço, ela sempre se hospeda aqui quando vem a Magussíria, além de me salvar. E você?

— Estel. — o garoto achou muito bom que o cumprimento ali fosse igual o da Terra, não se sentia tanto a diferença dos mundos. — Sou o escudeiro de Mestra Solenni, carrego as coisas dela. Parece que eles incomodam muito...por que ninguém faz nada?

— Primeiro, porque os mais velhos acham que não passa de “coisas de jovem”, sabe. Eles não dão muito crédito, dizem terem coisas mais importantes com o que se preocupar. — Iona bufou. — Segundo, porque o loiro energúmeno é filho de um dos Anciões do Conselho de Magussíria, um importante. O pai o salva de tudo, não importa o quanto a gente reclame. Mas vamos mudar de assunto. Vocês vão ficar aqui?

— Sim, vamos. Três dias apenas. — respondeu Solenni.

— Pouco tempo, mas com você é sempre assim, mal chega já sai. Depois desse novo salvamento, vou pedir a meu pai um desconto pra você. — comentou Iona. — Pelo menos vão poder curtir a festa que vai haver hoje à noite. 482 anos da criação da Academia Arcanum. Vai ter um monte de gente da nossa idade por lá.

— Mas será que tão legais quanto você? — questionou Estel, sincero.

— No meio da diversão todo mundo fica igual, ninguém vai ter crachá de identificação. — falou a outra, dando uma piscadinha e rindo. — Vamos, vai ser legal e...

E continuou falando enquanto levava para dentro seus clientes.



Há alguns metros dali, sentado com seus amigos baderneiros num beco, Luan respirava ansioso, pensando no que acabara de acontecer, de se tornar real. Os dois estavam ali, como Magnus falara. Mas a garota não tinha olhos dourados nas mãos, como sonhara. Ele não tinha muito tempo, faria alguma coisa para atraí-los. Era tudo verdade. Depois de tanto tempo ele tinha como provar.



— Então, estão bem acomodados? — indagou Iona, recebendo Estel e Solenni na recepção da hospedaria.

— Sim, obrigada. — respondeu Solenni. — Mas seu pai não precisava nos dá-la de graça.

— Não, não! Nós fazemos questão. Meu pai também não suporta aquele garoto e o pai dele.
Sempre quando você vem para cá ele se afasta, e eu agradeço por isso. Eu não agüento mais essa perseguição dele.

— E esse cara não tem família, não, além do pai?! — indagou Estel, indignado.

— Não, não tem. — respondeu Iona, com uma frieza que espantou os outros dois. Aquela informação era nova até para a espártaca. — A mãe dele morreu, o pai nunca tem tempo para ele e a irmã, é um viciado em trabalho e essa irmã está doente. Ela até tenta ter uma vida normal, mas nunca vai conseguir. Bom, tenho que resolver umas coisas para o meu pai agora. Se o Luan aparecer, vou dizer que você está como minha guarda-costas, escondida em algum canto. — Iona riu. — Pode ser?

— Sem problema. — disse Solenni, ainda processando a primeira parte da informação.
Iona deu um “até a noite” e depois saiu. Estel e Solenni entreolharam-se, não acreditavam a naturalidade com que a outra falara das desgraças do tal Luan.

— E aí...o que a gente faz agora? — indagou o defensor, esquecendo a conversa anterior. — Consultei o escudo antes de sair do quarto, mas ele só brilha, não mostra seta nenhuma.

— Não faço a mínima idéia, então. — falou Solenni, sincera. — Espero que como aconteceu comigo, que sonhei com você; ou como você, que teve aquelas intuições do nada, as circunstâncias nos levem até um regido ou uma litta. Só podemos tornar as coisas mais fáceis andando por aí.

E foi o que fizeram. Rodaram boa parte da tarde pela cidade, porém não encontraram nada demais. Solenni aproveitou para comprar alguns medicamentos extras, mesmo sob o olhar desconfiado do vendedor, que não acreditava que uma “de fora” soubesse tanto sobre remédios.

Eles decidiram então ir para a tal festa, afinal, iria haver uma concentração de gente muito maior e a chance de achar algo ou alguém seria maior também. Pelo menos era assim que eles esperavam.

À noite toda aquela parte da cidade morria. Era uma das cinco partes em que se dividia o reino, sendo aquela mais voltada ao comércio. Quando o expediente acabava, a maioria ia para suas casas, ficando somente uns gatos pingados ainda abertos. O lazer estava na parte de onde as luzes e as vozes vinham. Estel e Solenni estavam bem mais leves agora, sem armaduras, somente com roupas que eles costumavam usar em espártaca. Eram guiados por uma Iona vestida de azul e com uma longa trança castanha presa numa fita da mesma cor balançando nas costas.

— Você nunca solta seu cabelo todo, Solenni? — Indagou Iona, que pareceu notar esse costume da outra. — Por quê? Eles são tão bonitos.

— Obrigada, mas não. Espártacas prezam muito por seus cabelos, mas só os soltam por poucos motivos. — respondeu a outra, que exibia uma longa trança colocada de lado cheia de fitas brancas. — Ou quando estão impossibilitadas de lutar, como quando estão doentes, feridas, de luto, ou grávidas. Ou quando são desistentes ou derrotadas em uma batalha.

— Huumm... e como se sabe a diferença?

— Pelo cuidado, pela aparência. Quando nos sentimos derrotadas, com algum sentimento de arrependimento ou desistência, não sentimos vontade de cuidar nem de nós mesmas.

— Sei... e para vocês a morte não é motivo de tristeza?

— Não, exatamente. Quando se morre de morte natural, ficamos abalados, mas celebramos tudo que aquela pessoa fez em vida, para que a dor se amenize. Para os espártacos é importante que fique a saudade da lembrança da pessoa em si, e não a da hora da sua morte.

Iona fez uma cara de surpresa e de estranhamento. Estel escutou aquelas palavras lembrando-se das coisas que Mestre Leônidas lhe contara... Infelizmente Solenni não pode seguir aqueles costumes, as pessoas de quem ela mais gostava não se foram de um jeito natural... Lembrou-se também daquele dia que a viu de cabelos completamente soltos no jardim. Ela deveria sentir-se culpada, derrotada.

— E você, Estel? — chamou Iona, tirando o defensor de seus pensamentos. — O que você é da Solenni mesmo?

— Escudeiro. Eu carrego as coisas que a mestra precisa para suas viagens. Não apareci antes porque não era necessário, agora ela vai passar muito tempo longe, precisa de provisões e equipamentos extras.

—Hum...sei. E para onde estão indo?

— Mestra Solenni é uma exploradora, não tem destino certo.

— É muita coragem de vocês, do jeito que as coisas estão esquisitas por aí...

— E por aqui, não tem nada de esquisito?

— Ah, muitas coisas, mas já se tornaram comuns, se é que me entendem. A “coisa esquisita” mais recente são alguns tremores de terra que vem e vão de repente. Sem explicação até agora.

— Mais alguma coisa?

— E você queria mais o quê?! Só se forem esses seus olhos de gato, até brilham no escuro!

— Desculpa...era só curiosidade.

A conversa acabou quando os três jovens chegaram numa gigantesca praça cheia de luzes, cores e gente.

— Bom, a gente se separa aqui. — anunciou Iona, sorrindo. —Boa festa pra vocês, até mais!
Os outros dois acenaram um adeus. Em seguida, Solenni virou-se para Estel e perguntou:

— Por que insiste nessa história de ser meu escudeiro? Eu me sinto meio incomodada com isso. Eu ensinei você, mas não acho que precise ser chamada de mestra...

— Desculpa, mas é que acaba dando certo, entende? — disse Estel, meio rindo meio sem jeito. —
Um assunto puxou o outro, até que eu tentei saber de alguma coisa de diferente por aqui...vai ver ela podia conhecer alguém que tivesse sonhos estranhos, ou ser dono de uma jóia exótica. Queria agilizar um pouco as coisas, olha esse mundo de gente!

— É verdade...pelo menos você tentou. Não imagino absolutamente nada que possamos fazer, a não ser andar por aí e esperar por um milagre.

— Bom, já que temos que esperar alguém anunciar que achou uma litta numa gaveta de meias velhas, ou um regido aparecendo e dizendo “Oi, sonhei com você minha vida inteira, vamos arriscar nossas cabeças juntos?”, então não custa nada nos divertir um pouco enquanto isso não acontece.

Estel notou que arrancou um riso de Solenni, isso fez seu peito e estômago formigarem. Os dois, então, perderam-se na multidão. Estel admirou as barracas cheias de coisas estranhas, árvores lotadas de lanternas e os balões coloridos no céu que voavam em acrobacias sozinhos soltando bolhas de sabão. Eram tantas pessoas, tanta as possibilidades que ele não conseguia se concentrar direito. Fora que, às vezes, pela sua mente lhe saltava a idéia de que parecia estar num encontro com Solenni. Ela estava linda...queria fazer alguma coisa para ela, mas não sabia o quê. Pensou, enquanto mastigava vários bolinhos um deles igual a um sonho de morango...que bom que em Eternia existia aquele tipo de coisa.

— Ei, pra você. — disse Estel, entregando a Solenni uma lanterna de metal antigo, muito bela e detalhada, segurada por uma corrente fina.

— Hã?! Não...não precisava, Estel...é, obrigada...!! — respondeu Solenni, as orelhas ficando da cor do cabelo. Para disfarçar ela continuou. — Mas você disse que ia ao banheiro, não sabia que estavam distribuindo isso por lá.

— É, eu menti, mas foi por uma boa causa. Desculpa se não é algo assim...mais legal...bem, para garotas. Só que foi uma única barraca onde achei um jogo que não usava mágica e eu entendi o que era pra fazer. Tirei um excepcional quinto lugar. Abre aí, até que ela é bonitinha.

Solenni notou que a parte de cima da lanterna era uma tampa com dobradiças. Ao abrir, deparou-se com um amontoado de brasas grandes onde uma criaturinha esguia se mexia em cima dela. Era um lagarto vermelho-escarlate, olhos redondos laranja-vivos e com três pares de patinhas inquietas. Quando respirava, veios incandescentes apareciam em seu corpo.

— O que é isso? — indagou a espártaca, surpresa.

— O homem da barraca disse que era um filhote de salamandra-rubi. — respondeu o outro. —
Diz que traz sorte...e pensando no que pode nos acontecer, acho bom carregarmos ela para todo o canto.

— Adorei.

Estel admirou-se com o elogio e ainda mais com a reação da outra. Solenni apoiou a mão livre em seu ombro e beijou-lhe a testa. Porém não lhe deram tempo de aproveitar aquilo, uma voz familiar e irritante falara com eles:

— Humm, acho que a gente não chegou numa boa hora. — ironizou Luan. Sua gangue toda vinha atrás, rindo como babacas. — Atrapalhamos o que vocês estavam fazendo?

— Você não é conveniente em hora nenhuma. — disse Solenni, irritada. — O que fazemos ou deixamos de fazer não é da sua conta! Por que inventou de nos perseguir agora?!

— Calma. É que você tem uma coisa que eu preciso muito, mais do que a erva - daninha da Iona.

— E o que seria essa “coisa”? — indagou Estel, rangendo os dentes.

— Agora é a minha vez de dizer: isso não é da sua conta. — retrucou Luan. — Olho – de - basilisco.

— Mas é da minha! — resmungou Solenni. — Você e seus cachorros vem nos perseguindo desde que chegamos aqui...estava só esperando a hora em que dariam as caras!

— Oh! Bela percepção. — comentou Luan, com mais ironia, fazendo os garotos trás deles rirem. — E agora que demos nossas caras, vocês vêm com a gente.

Os outros garotos que acompanhavam Luan começaram a cercar Estel e Solenni. Estes não tencionavam reagir, mas se fosse o caso...

Foi quando um forte tremor quebrou a tensão do momento.

Ele foi tão rápido quanto veio. Houve gritos no local e depois um silêncio pesado de expectativa.
Então no segundo seguinte o tremor voltou, mais violento e demorado. A gritaria das pessoas uniu-se ao som de pedra se partindo, árvores e barracas caindo, o chão rachando.

— Vamos embora aqui!! — gritou Estel, tentando manter-se de pé.

Estel, Solenni, Luan e os outros garotos tentaram correr, mas só conseguiram dar alguns passos cambaleantes. Até por que, de um grande buraco do chão, saiu algo que os paralisou.


. . .

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Estel Elecktrion - rascunho

Este é apenas um rabisco que fiz de Estel essa manhã. Quero postar coisas mais elaboradas, mas o tempo (e admito, a preguicinha...) não deixa. Mas prometo que vou fazer. Prometo! Até o fim dessa semana estarei colocando o sétimo capítulo e outro desenho. Até mais e obrigada por acompanharem o blog!!

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Coroas de Eternia - O Escudo, A Espada e O Cetro

Sexto Escrito – Primeiro caminho

No dia seguinte, Estel já acordara sabendo que Solenni não estava em casa. Fora chamada para escoltar mais uma leva de mantimentos para o entreposto das Montanhas Rubras. Foram três dias de espera, frustração e ansiedade. Quando ela finalmente voltou, já era final da noite da véspera da partida deles. Não houve tempo para conversas, havia muito que preparar.

Quando acordou pela manhã, bem cedo, lembrou que logo iria embora de Espártaca e que passara a noite sonhando com cristais verdes.

Ao descer, encontrou-se com Solenni e Mestre Leônidas à mesa com alguns pacotes.

— Bom dia, Estel! — anunciou o homem, com muita alegria. — Venha, discípulo, queremos presenteá-lo.

— Hã?! — espantou-se Estel, arregalando os olhos sonolentos. — Bom dia, Mestre. Bom dia, Solenni. Hoje não é meu aniversário, então por que isso?

— É costume em Espártaca os mestres presentearem seus discípulos ao término de um treinamento. — explicou Solenni. A voz dela estava calma e sua expressão séria como sempre. Ela estava bem. Estel aliviou-se por dentro. — Como o seu acaba hoje, queremos dar-lhe algumas coisas.

Estel então abriu os pacotes. Dentro do primeiro, vários tipos de roupas e dois pares de sandálias de couro reforçado.

— Nossa, obrigado. — falou o garoto, sorrindo. —Estou merecendo tanta coisa assim?

— Se você acha que necessidade pode ser chamada de merecimento... — disse Leônidas, divertido. — Estava na hora de você ter algumas roupas suas, de verdade, garoto, Caésar não podia ficar nu para você levar as roupas dele.

Estel riu. Abriu o segundo pacote. Havia nele outras vestes, mas estas eram mais elaboradas, resistentes. Em cima delas um colete de couro com um reforço alto no ombro direito e outro na cintura feita com dois grossos e largos cintos com fechos quadrados de metal. Do lado, um bracelete comprido de metal. E também uma braçadeira, equipamento que Estel usava em seus treinos com o escudo, era um tipo de armadura especialmente feita para o braço, no caso dele, para o esquerdo. Começava com uma grande ombreira redonda, seguindo com proteções interligadas para o braço, o cotovelo, o antebraço, uma mais forte no pulso, e, por fim, para a mão. A braçadeira que ganhara era incrível, feita de um couro muito duro e revestida com argolas metálicas, mas leve e flexível.

— Ei, bem que eu podia ter ganhado essa antes, não? — indagou Estel, brincando.

— Ora, rapaz, não diga blasfêmias! — exclamou o mestre, gargalhando. — Esses meses foram para você provar que merecia aquela braçadeira velha com a qual treinava. Só que não gosto que levem minhas coisas, por isso, resolvi dar-lhe esta. Agora vá se vestir, quero ver se fica bem de defensor espártaco.

— “E fica mesmo.” — pensou Solenni, tentando manter-se indiferente diante da figura de Estel.

— Ficou perfeito! — disse o mestre, dando uma sonora tapa nas costas de Estel, que, mesmo armadurado, sentiu o baque. Ficou pensando se a armadura era boa mesmo ou se o mestre é quem era fora do comum. A segunda opção, com certeza... — E é bom que você esteja vestindo isso toda vez que por o pé na estrada, rapaz, ela está aí para fazer você sentir a menor dor possível.

— Obrigado, Mestre. — falou Estel, saudando o outro à moda espártaca. — E obrigado a você também, Solenni. Se não fosse por vocês eu estaria morto uma hora dessas.

— É verdade. —confirmou Solenni. Estel riu. — Só está faltando uma coisa. Sente-se, Estel.

E o garoto o fez. Ele viu que Solenni retirou dos cabelos uma das fitas que os amarravam e usou para amarrar os dele.

— Ah, valeu! Já não agüentava mais eles caindo na minha cara. — disse Estel, que na verdade só tinha notado naquele instante o tamanho dos cabelos, mechas desarrumadas sobre os ombros e cada vez mais negras. — Era tanto o que fazer que acabei me esquecendo disso.

— Não há de quê. — respondeu a outra.

Estel espantou- se ao ver Solenni lhe dar um sorriso, mas um sorriso aberto e satisfeito, muito diferente do que ela comumente fazia. Ele queria que isso acontecesse mais vezes, era estranho, mas legal, sentir o coração dar várias cambalhotas... Estel só saiu do torpor quando Leônidas lhe deu outra tapa nas costas, dizendo que só deixassem para namorar num lugar seguro. O garoto engasgou-se, contudo, felizmente (ou não), percebeu que Solenni não estava mais ali para ouvir o que o avô dissera.

No meio da manhã, Solenni (com a velha expressão) e Estel estavam prontos. O dia estava quente e prometia ficar assim até depois do cair da noite. Despediram-se de Caésar na casa mesmo, Leônidas é que fazia questão de acompanhá-los até o grande portão sul. Algumas pessoas que passavam saudaram o mestre e sua neta, mas todos comentavam a presença do jovem estranho preparado para viajar, juntamente com Solenni.

— É aqui que eu os deixo, meus filhos. — disse Leônidas, abraçando cada um. —Cuidem-se e protejam um ao outro, será mais que necessário a união entre vocês. Estel, saiba, a força real de um espártaco está no guerreiro ao lado dele.

— Então posso ficar tranqüilo. — disse Estel, olhando para Solenni. Ela de repente ficou muito interessada nas flâmulas esvoaçantes do portão.

—Ei, folgado, não dependa dela para fazer alguma coisa. Se eu souber que você não a protegeu...

— O mestre pode me espancar.

—Não me dê idéias, Estel. Boa sorte para você, rapaz.

— Obrigado, Mestre.

— Até a volta, minha filha.

— Até a volta, meu avô. — falou Solenni, dando um beijo na testa de Leônidas

— No dia que ganhar um desses, Estel, sinta-se o homem mais afortunado do mundo.

E o espártaco foi-se, deixando os dois partirem um tanto constrangidos.



A idéia era atravessar a estrada sul da Floresta Elísia (a qual haviam chegado a Espártaca seis meses atrás) e dali seguir o caminho que o escudo lhes dissesse. A espada de Solenni não indicaria direções porque a única litta da espártaca já estava num local definido. Agora o porquê disso ela não sabia.

— É impressão minha, ou aqui está mais frio? — comentou Estel, pouco tempo depois de entrarem na floresta. — E mais escuro?

— Não é impressão. — respondeu Solenni, olhando constantemente para os lados — A floresta está realmente assim, em algumas partes até pior, por causa das aracnéias. Onde elas se estabelecem, espalham uma substância que deixa o ambiente assim, escuro, úmido e frio. Está sentindo o cheiro?

— Sim, e é horrível.

— Com esse clima, fungos nocivos estão se proliferando, por isso o cheiro. Se continuar assim, o ar vai ficar venenoso demais para se respirar. Fique de olho, Estel, ataques estão mais fáceis de acontecer do que há seis meses.

Estel acenou com a cabeça. Porém a caminhada prosseguiu tranqüila, até demais para eles. No começo da noite chegaram ao limiar da floresta, onde a estrada terminava e se confundia com a grama. Estel dali podia ver o Templo do Escudo Vésper escondendo-se no céu escuro que avançava.

— Vamos nos afastar o mais que pudermos das árvores. — aconselhou Solenni. —Melhor evitar chamar a atenção das aracnéias.

Os dois seguiram para leste, até que as árvores ficassem relativamente distantes. As torres de Espártaca eram meras pontas cor de areia. Sentaram-se numa depressão gramada e acenderam uma pequena fogueira.

—Aqui deve ser seguro consultar o escudo. — disse Estel. — A luz não vai atrapalhar o sono de nenhuma aranha.

— Verdade. Mas pode afastá-las de vez também, elas não devem ter uma lembrança muito boa da sua arma. — comentou a espártaca. — Me diga a direção que a luz apontar que vou olhar no mapa.

O garoto fez como da primeira vez, concentrou-se na estrela central do escudo. E como da primeira vez, dela saiu uma seta de luz verde, que apontou para o leste.

— O que tem para lá? — perguntou Estel.

—Uma planície que segue até um bosque, e depois até uma faixa de morros de pedra. — explicou
a garota. — Até aí, nada de especial...eu acho.

— Solenni...

— Diga.

— Por que decidiu ir? Qual...o seu motivo?

— Poder voltar para casa.

—...?

— Quando estava no templo com Andrômeda, ela me perguntou a mesma coisa. Não queria que eu participasse de uma guerra pelo simples fato de que fui jogada nela por uma profecia. E eu respondi isto a ela. Eu poderia muito bem ficar ao lado do meu avô e me preocupar apenas com os problemas do meu reino, esperando que outros dessem um jeito em Eternia. Mas não suporto essa idéia. Digo, não sou tola dizendo que quero salvar o mundo inteiro. É pela vontade de ficar ao lado do meu avô que eu estou partindo. Não agüentaria ficar inerte, tendo uma segurança certa, mas momentânea... Se me é permitido correr riscos e, no final, não ter que me preocupar com mais nada, assim eu farei.

“Acho completamente injusto que a guarda de Eternia esteja nas mãos de tão poucas pessoas. Se todos usufruem de Eternia, todos deveriam cuidar dela. Claro, se os Vigilantes e nós fomos escolhidos, é porque temos algo a mais para fazer isso, mas não acho que deva ficar somente nas nossas costas ou nas deles.”

— Perseu me disse que há muito tempo atrás teve uma guerra que envolveu todo o mundo.

— Sim, mas porque os reinos não tiveram alternativa. Porque estava afetando demais a vida deles. Infelizmente ficamos acomodados com a proteção dos Vigilantes e do Sábio-Rei.

— Acha que vão fazer o mesmo conosco?

— Não, a exigência vai ser maior ainda. Todos conhecem a profecia. Mas, se bem, que ainda precisaremos provar que somos os verdadeiros regidos. Enganador por aí é o que não falta.

— É, todo mundo olhou desconfiado para o meu escudo.

— É, Estel, mas isso no final não importa muito para mim. Estou correndo riscos para salvar o mundo, a Eternia, onde meu avô, pessoas que eu conheço, lugares que eu gosto e até eu mesma estão, entende?

— Entendo. Solenni....desculpa por aquele dia, fui um idiota...você só disse a verdade.

— Tudo bem, Estel, eu aprendi a ser muito direta e isso às vezes machuca até a mim mesma. E você Estel, o que vai fazer?

— Depois desse tempo que passei aqui, vou acabar fazendo a mesma coisa que você, mais ou menos. Mas também tem a minha mãe... E eu quero saber o porquê de eu, uma pessoa que não tem nada haver com Eternia, ter sido chamado. Além do que, dar uma ajudazinha não dói...ou pelo menos eu acho, eu espero que não.

Solenni fez um sinal positivo com a cabeça e deu um discreto sorriso. Estel sentiu de novo a cambalhota.

Eles armaram as esteiras para se deitar, ficariam revezando na vigília. Solenni foi a primeira a dormir, não descansara muito depois da chegada da missão de escolta. Estel deitou-se também, mas para olhar para o céu azul-escuro pontilhado de estrelas. Havia uma delas, enorme e verde, que logo lhe chamou atenção. A Estrela Vésper. Lembrou-se do sonho, aquela estrela havia entrado na sua mão esquerda. A sensação de morno no corpo apareceu de novo, como no sonho. Naquele momento ele se sentiu tão calmo e seguro...aconchegado. Lembrou-se também das palavras do Sábio-Rei: Você nasceu sob a proteção de Vésper, a Estrela de Eternia. Mesmo que te encontres na escuridão, ela será tua guia. E acreditou naquelas palavras.

A noite passou tranqüila. Não fizeram o desjejum antes de sair, comeram já andando as glicosinãs que Solenni trouxera. O dia veio mais quente e seco que o anterior. O gigantesco tapete gramado que se estendia diante deles era pontilhado de pedras de vários tamanhos e solitárias árvores. Quando o sol estava tostando suas nucas, os jovens encontraram um riacho nas proximidades do bosque que Solenni mencionara ontem. O que foi um alívio para suas gargantas e cabeças. Não se demoraram muito ali, mas não se esqueceram de encher muitas garrafas com água. Caminhar no bosque foi um descanso para os pés que durou pouco para eles. O chão logo ficou pedregoso de novo.

Era fim de tarde. O céu dividia-se em amarelo, laranja, rosa e anil. Solenni olhou para o muro cinzento que crescia no horizonte.

— Ali estão os morros. — disse a espártaca. — Será que estamos na direção certa? Não é melhor consultarmos o escudo de novo?

— Não vai ser preciso. Vésper está muito brilhante. Nós estamos no caminho que ela ditou, sem erros. — respondeu Estel, numa certeza que espantou a outra e a ele mesmo. — Ei...fui eu mesmo quem disse isso?

Quanto mais eles chegavam perto dos morros de pedra, mais a sensação de segurança e certeza enchia Estel. Ele olhou para o céu. A estrela verde estava logo abaixo de um dos morros, o qual apresentava uma boca discreta.

— É ali. — apontou ele, sem medo.

— O que tem ali? — indagou Solenni.

— Uma litta.

A resposta saiu tão naturalmente, como se Estel sempre soubesse que ali estava uma de suas littas. O defensor estava estranhando essas intuições repentinas. Os jovens esconderam as mochilas atrás de alguns arbustos que cobriam os pés do morro de pedra. A subida para alcançar a boca não foi tão difícil, mas ela não tinha uma aparência muito convidativa. Eles não conseguiam enxergar nada da parte dentro.

— Me diz que a gente trouxe uma lanterna, vela, qualquer coisa assim. — falou Estel.

— Não, eu trouxe algo muito melhor. — respondeu Solenni.

A garota retirou a espada e começou a entrar na caverna com a arma erguida sobre a cabeça. No segundo seguinte, a jóia central emitiu uma luz amarelo-ouro muito forte, parecia que estava incandescendo.

— É realmente isso é muito melhor. — concordou Estel, entrando na caverna também.

Com luz, eles tiveram idéia do caminho a frente. Há poucos passos da entrada descia uma garganta irregular. As pedras eram farpadas, o que tornou a descida complicada, apesar da profundidade da garganta ser pequena. Ao descer, eles divisaram um corredor longo e estreito, que seguia até a luz da espada não conseguir iluminar mais.

O silêncio ali era pesado como as pedras da parede e deixava os jovens completamente tensos. Estel ia à frente com o escudo erguido, mas, à medida que caminhava, mais tinha certeza de que não encontrariam nada...nada para chamar de normal. Aquela era a mesma sensação de quando entrara pela primeira vez na Floresta Elísia...e o que veio depois não fora agradável.

— Ei, veja! — sussurou Estel, assustando-se ao notar algo ao longe. — Está vendo aquela luz verde?

— Sim. — respondeu Solenni, esfregando os olhos. — Parece haver uma curva mais a frente, a luz deve estar vindo depois dela. Vamos devagar agora, no escuro.

A guerreira fez a luz de sua espada desaparecer como quem apaga uma vela. Eles caíram quase na escuridão plena. Os riscos de luz verde eram o que permitiam ver adiante. A tensão aumentava juntamente com a luminosidade. Fizeram a curva, prontos para que o mundo caísse sobre eles, contudo nada aconteceu.

Os regidos encontraram um lindíssimo salão de caverna onde, no lugar das pedras, havia cristais verdes de todos os tamanhos e formas. Eram deles que provinha a luz, que agora dominava o ambiente dando-lhe um aspecto etéreo.

— Que...fantástico! — disse Solenni, não conseguindo conter a expressão maravilhada. — Nunca vi tantas vespertritas juntas, e ainda mais tão puras assim!

— Vespertritas?! — indagou Estel, com os olhos perdidos nos belos cristais. — É o nome dessas pedras?

— Um dos mais belos, raros e cobiçados materiais de Eternia. Esse cristal é a coisa mais resistente do mundo, até mais que qualquer metal. Na sua forma mais pura, emite luz.

— São...incríveis.

— A vespertrita é um dos símbolos do Escudo. Sabe por que o desenho da estrela do seu escudo tem as pontas em forma de cristal? Isso remete a uma das histórias da criação de Eternia. Quando a Estrela Vésper nasceu, sua primeira luz foi tão intensa que transformou as pedras do chão e do subterrâneo em cristais. Por conta disso, muitos procuram pelo cristal na sua forma pura, pois acreditam que o poder da estrela está nele.

— Então isso quer dizer que esse lugar causaria uma guerra...

— Com toda certeza. Mas esse mundo de cristais é só uma prova que o que estávamos procurando está aqui mesmo. Olhe.

Estel virou seu olhar para onde a espártaca apontava. Numa das paredes do salão havia uma ligação de cristais do teto ao chão formando uma coluna irregular. No meio dela, um ponto muito escuro chamava atenção. Era uma esfera perfeita de cristal verde-escuro, quase negro. O garoto sentiu um estalo. Era uma litta, a sua litta.

— Estel, cuidado!! — exclamou Solenni.

O defensor virou-se bem a tempo de segurar uma marretada com seu escudo. Ela veio do braço de uma estranha criatura humanóide feita de vespertritas.

— Solenni, tem vários deles aqui! — disse Estel, observando pedaços das paredes e do teto ganharem vida.

Lutar então se tornou inevitável. As criaturas começaram a encher o salão, cercando-os. O som de metal batendo iniciou seu soar. Mesmo não tendo boca, um ruído cavernoso saía dos homens-cristal. E quando um deles caía no chão, dois vinham para substituí-lo. A espada de Solenni cortava o cristal dos monstros como manteiga, e o escudo de Estel esmigalhava onde impactava. Os dois sabiam que aquilo só era possível porque estavam com armas fora do comum, qualquer outra coisa quebraria ou entortaria se se encostasse à “pele” daquelas coisas. E também tinham consciência de que a luta não podia durar muito tempo, o cansaço e a falta de espaço alguma hora iam vencê-los.

— Estel, tente pegar logo aquela pedra! — disse Solenni, tendo que gritar para se sobressair aos urros das criaturas. — Não podemos ficar assim para sempre!

— E deixar você só no meio deles?! — exclamou Estel, indignado. — Para de querer agüentar tudo sozinha, Solenni, não melhora nada! Eu to aqui pra ajudar!

Solenni estancou por alguns segundos, mas foi apenas o tempo para pensar, voltando em seguida a cortar cabeças de cristal. Ela se aproximou de Estel, os dois ficando costas com costas.

— Desculpa. — disse ela, bem rapidamente, entre um golpe e outro. — Só quero sair logo daqui, não vai haver mais espaço se continuar desse jeito!

— Tudo bem. — continuou o outro, batendo também. — Eu sei que antes eu era um completo inútil, mas não é possível que agora eu não consiga te ajudar!

— Certo...a jóia não está muito longe. Vamos nos concentrar em derrubá-los ou impossibilitados, passar por cima mesmo, pegar a pedra e sair daqui! “Destruir” não está adiantando nada mesmo!

— Por mim, ótimo!

- Pronto?!

— Quando quiser!

— Agora!!

Segundos desenfreados seguiram-se. Estel e Solenni atropelaram os homens-cristal. Não os destruíam mais por completo, cortavam ou quebravam apenas partes específicas como cabeças, troncos ou pernas. As criaturas caíam umas sobre as outras, emaranhando-se, o que facilitava por alguns segundos os movimentos dos que lutavam. Estavam ficando mais próximos da jóia. Com as frontes já molhadas de suor, eles apertaram o passo e a força.

— Pegue a jóia! — pediu Solenni.

O garoto deu um grande empurrão nas criaturas e afastou-se, a contragosto, deixando Solenni segurando o combate. A litta estava cercada de pontas farpadas, obrigando Estel a arranhar a mão para tirá-la da coluna. Quando ela ficou segura em sua mão, o escuro quase negro saiu e deu lugar à mesma luz que iluminava todas as vespertritas do ambiente. O morno familiar invadiu-o mais uma vez.

Solenni, naquele instante, pronta para receber a onda de homens-cristal que voltava depois do empurrão, respirou espantada e aliviada. De repente, todos eles haviam parado. A garota usou sua espada para cutucar um deles, mas não houve reação.

— O que foi isso aqui?! – indagou Estel, ofegante, chegando ao lado da outra. — Você tá legal?

— Sim estou. — respondeu Solenni, incrédula. — Não sei o que houve...quem sabe ativamos as defesas que cercavam a joia quando entramos aqui. Conseguiu?

– Sim — o garoto mostrou a esfera brilhante. – Será que quando tirei a litta eles desligaram?

– Pelo visto, sim. Mas é melhor não ficarmos aqui para descobrir. Pode acontecer...

Estel e Solenni pararam a conversa ao ouvirem grandes estalos. Das paredes, teto e das criaturas paralisadas, nasceram enormes estacas de cristal. E destas, com outro estrondo, nasceram outras.

—...alguma coisa. – completou Solenni, tensa. — Eu e minha boca.

– Deixa ela pra lá, vamos sair daqui! — falou Estel, ansioso, vendo o lugar diminuir cada vez mais.

Eles saíram em disparada. Cada novo passo era um estalo que os assustava. Pouco antes da saída, Estel e Solenni foram arremessados ao chão por conta de um muro de cristais que espocara na frente deles. Levantaram-se tão rápido quanto caíram, contudo a trilha estava bloqueada. Solenni atacou o muro com toda força, mas conseguindo apenas uma forte dor no pulso e um retinir fino da sua espada. Estel tentou também, não havendo muita diferença. Ele estava no auge da tensão, mais um pouco e seriam espetados e esmagados. A qualquer momento poderia haver mais um estalo, o último estalo para eles. Solenni olhava para ele tão tensa quanto, olhava para os lados em busca de uma saída que não existia. Agonia. Não queria morrer! A parede tremia, iria espocar! Estava com medo, o que poderia fazer?!! DROGA!! O QUE ELE IA FAZER!?!? O garoto sentiu ânsia de vômito. Seria ridículo aquilo acontecer agora, mas alguma coisa queria sair! Abriu a boca:

Sxildo Verda!! — gritou.

Outro estrondo aconteceu. Dessa vez não era o de cristais nascendo, e de sim, sendo triturados. Uma bolha verde com aspecto e cor verde como vidro de garrafa encobriu Estel e Solenni. O primeiro estava espantado com o que fizera; a segunda, com o que via.

— Como...como fez isso?!! — indagou a espártaca.

— Sei lá! — disse o outro, arfando, mas sorrindo. — Mas salvou nossas vidas!

— Eu sei, mas temos que sair daqui! Consegue se mexer?

Estel tentou andar e conseguiu. Não era a coisa mais fácil do mundo, era como carregar os jarros de Mestre Leônidas nas costas e nos braços. Solenni ouviu o comentário e soube, tinham pouco tempo. Devagar eles prosseguiram, vendo os cristais se espatifarem ao entrar em contato com a cúpula verde. Na parte do corredor a coisa complicou um pouco. Mesmo a proteção de Estel sendo flexível, moldando-se ao espaço, a onda de cristais tornou-se mais violenta e pesada. O defensor lutou contra o peso, erguendo o escudo. Era como conseguia se concentrar na proteção de vidro para que não se desfizesse, sentia-a como uma projeção da sua arma. Aquilo era a garantia de vida deles.

— Finalmente! O fosso! — exclamou Solenni, mais aliviada, olhando para cima. — Es..Estel!!

A espártaca virou-se bem a tempo de apoiar o defensor, o qual exibia um rosto pálido e exausto.

— Louco! Porque não disse que estava se sentindo mal?! — questionou ela, aturdida.

— Por que se eu falasse, até eu não agüentaria mais e a gente ia morrer. — respondeu o outro, fracamente. — Eu não quero morrer e muito menos quero que você morra.

— Então continue assim, vou nos tirar daqui. Mantenha o escudo erguido, o resto é comigo.

Solenni apoiou Estel no ombro e prendeu uma das mãos no cinturão da armadura dele. Com a outra, iniciou uma escalada contra o tempo. Solenni rasgou as mãos nas pedras, limpas de vespertritas pelo escudo, contudo conseguiu subir e arrastar o defensor para fora da caverna. O escudo de vidro verde se desfez. As vespertritas avançaram além da boca da caverna, assustando Solenni, mas ela viu que logo em seguida os cristais viraram pedra e pararam de crescer.

A garota soltou um longo suspiro cansado e voltou sua atenção para Estel. Recostou-o na parede de pedra e sentou-se ao lado e diante dele. Ele respirava mais leve agora, apesar das faces ainda muito pálidas e suadas.

— Solenni...? — chamou ele, lutando para manter os olhos abertos. — Tá...tá tudo bem...?

– Sim, está. Não fale, apenas respire. — disse a outra, que escondeu rapidamente as mãos sangrentas e trêmulas de dor.

Tarde demais, pingos escarlates no chão denunciaram o ferimento para Estel, que abriu os olhos outra vez.

— Não se preocupe, o importante é que você nos tirou dali. Eu...

Solenni espantou-se, mas não recuou quando Estel a abraçou. Ele tremia dos pés a cabeça.
— Está tudo bem agora, Estel. — disse ela, retribuindo ao aperto como podia sem as mãos, sua voz calma. — Está tudo bem.

A espártaca ganhou outro abraço apertado de alívio, antes de sentir Estel desmaiar em seu ombro.


. . .

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Coroas de Eternia - O Escudo, A Espada e O Cetro

Quinto Escrito - Solenni

— Como disse?! — espantou-se Leônidas, assim como todos ali.

— Solenni, mostre sua espada. — pediu Perseu.

Solenni puxou o cinto de sua cintura e nele o avô da espártaca notou uma bainha diferente. Era de couro escuro, detalhada com letras curvilíneas. Porém o que estava dentro foi o que realmente arrancou um suspiro admirado do velho ferreiro e de seus dois aprendizes. Uma espada comprida, levemente curva e um pouco mais fina da que Solenni comumente usava; sua base, em bronze, era um sol com pontas onduladas onde no centro brilhava uma joia redonda amarelo-ouro; o cabo era revestido de tiras laranja trançadas, terminando numa ponta maciça de bronze.

— Pela Coroa-Branca! — disse Caésar, com os olhos arregalados. — É uma maravilha!

— Concordo plenamente. — falou Leônidas, analisando a arma em mãos. — É uma cimitarra magnífica e, ainda ouso dizer, foi feita especialmente para Solenni. Tamanho e peso perfeitos para a estatura dela e o modo como luta, com mais rapidez e jeito do que força. Como isso aconteceu, minha filha?

— Vô, você se lembra dos sonhos que eu tive até hoje. O último finalmente tomou forma real. — respondeu Solenni, ainda arfando. — No caminho de volta para Espártaca, eu me encontrei com a Segunda Vigilante, Andrômeda. Ela me levou para o Templo Hórus, onde disse que eu era a Dama da Espada e me fez tirar a arma de dentro de uma arca. Depois disso, ela falou da minha litta, minha única litta no Deserto Sabloro. Daí ela teve que ir.

— Eu fui o encarregado de trazê-la de volta. — continuou o cavaleiro. — Mas alguma coisa ou alguém me impediu de sair dali...e fomos cercados por um grande bando de canigros.

— Canigros? — estranhou Estel.

— Um dos muitos monstros que surgiram em Eternia, cães negros sempre famintos. Conseguimos expulsá-los, mas não saímos ilesos.

— Pelo visto as coisas estão piores do que imaginei... — disse Leônidas, tenso. Ele aproximou-se da neta e retirou a bandagem improvisada. O corte na perna não era profundo, mas extenso e dele saía muito sangue. — Vamos dar um jeito nisso imediatamente. Estel, água; Caésar, medicação! Aquelas criaturas deram trabalho até mesmo para você, Perseu?

— Sim... — respondeu o Vigilante, decepcionado. — Digo que, se não fosse o apoio de sua neta, seria eu quem estaria assim. O Sábio-Rei tem se consumido muito para impedir a total libertação da Coroa Negra, o que acaba nos afetando também, pois fomos criados por ele. É por isso que temos pressa em reunir os Regidos e o Abençoado.

— Então fiz mal em ficar aqui? — indagou Estel, reaparecendo naquele momento com uma jarra de água, meio constrangido.

— De modo algum, Estel. Seria irresponsabilidade minha negar esse tempo de aprendizado para você. É o mínimo que eu poderia fazer por quem foi praticamente jogado no meio de uma guerra.

— Então você sabia de tudo? Digo...sabia que eu iria me encontrar com a Solenni e que eu ficaria aqui?

— Não, pedi apenas que se guiasse pelo seu Escudo. Ele o levou até uma Regida, como eu disse que poderia fazer. Mas em relação a ficar aqui, a aceitar uma ajuda, foi você quem decidiu isso, você que quis. Estel, você e os outros Regidos podem até terem sido colocados numa profecia sem que tivessem escolha, mas a partir do momento que sabem dela e do que precisam fazer, a escolha do que irão fazer é exclusiva de vocês.

— Então, se conheço minha neta, ela vai querer partir, não é mesmo? — indagou Leônidas, lançando um olhar sério, mas carinhoso, para Solenni. — Mas, espártaca, como seu mestre e avô, digo que só colocará os pés para fora de casa quando estiver plenamente recuperada.

Solenni não disse nada, apenas acenou positivamente com a cabeça.

— Agora que Solenni está em ótimas mãos, vou-me. — anunciou Perseu.

— Pra onde vai? — indagou Estel.

— Para junto dos outros Vigilantes e, depois, para onde precisarem de nós. Desculpe-me pelo tempo que passei desaparecido, mas temos um mundo inteiro para zelar. Contudo digo mais uma vez que ajudaremos vocês no que precisarem. Estimo melhoras, Solenni. Que as graças da Coroa Branca e do Sábio-Rei caiam sobre vocês.

— Obrigada, Perseu. — respondeu a garota. — Agradeço também pela ajuda. Espero que esteja tudo bem com Andrômeda.

— Farei de tudo para mantê-la bem. Até outro dia.

E com um último aceno, o cavaleiro desapareceu.



Poucos dias depois Solenni já se mostrava bem melhor, apenas mancando por conta da perna machucada e dolorida. Leônidas queria que a neta ficasse em repouso, mas a jovem repudiava a idéia de ficar parada por muito tempo. Então o avô deu um jeito de deixar todas as tarefas do dia feitas em tempo recorde, o que foi obra de Caésar e Estel. Eles diziam entender Solenni, porém não a deixavam dar sequer um suspiro mais forte. Vencida, ela decidiu passar suas horas livres no jardim. Estel descobriu que Solenni sabia muito sobre plantas, e que todas as que estavam plantadas ali tinham alguma propriedade medicinal. Certas vezes ela preparava remédios para uso dos da casa. Era um conhecimento muito básico, dizia ela, mas que já impressionava, dizia o avô.

Estel estava mais animado do que nunca, afinal, Solenni era uma Regida e ele não teria mais que viajar sozinho, apesar de ter sido instruído para isso. Mas havia o fato de ser ela. Solenni sabia mais sobre o mundo do que ele e era uma lutadora incrível. Às vezes dura e séria demais, só que amigável e prestativa também, o suficiente para se ficar admirado.

Os dois perdiam horas conversando mesmo que o assunto fosse o mesmo: Eternia e Espártaca. Estel até que tentou descobrir mais da própria Solenni, mas ela sempre se esquivava desse assunto, então desistiu. Do mestre soube menos ainda, pois toda vez que o via, ou ele lhe mandava fazer alguma coisa, ou o próprio Estel se esquecia de perguntar. De Caésar a única informação que conseguiu foi que os pais de Solenni morreram muito cedo de um modo não muito feliz...mas exatamente como, não soube.



Num fim de tarde, enquanto arrumava o depósito de potes de pedra, Estel recebeu a visita de Solenni. Quando não estava com as vestes de batalha ou de viagem, Solenni vestia-se com roupas que o garoto vira em gravuras nos livros de história grega, mas elas não eram feitas de pedra, e sim de tecidos coloridos e com uma larga fita de franjas amarrada á cintura. Notou também que ela nunca soltava completamente os cabelos, que ondulavam até a cintura; havia, nem que seja, uma mecha presa (e isso era comum de todas as mulheres do reino, até as de cabelo mais curtinho davam um jeito de prendê-los). De uma coisa ele tinha certeza, em todos os casos ela ficava bonita.

A espártaca aproximou-se com sua comum expressão séria, porém junto com esta, havia um certo ar de constrangimento.

— Estel, será que a gente pode conversar? — perguntou ela. — Aqui no pátio.

— Tudo bem, mas...tem certeza de que quer ficar por perto? Passei o dia hoje ajudando o mestre na forja, então, estou sujo, suado e, com certeza, fedido. — brincou Estel, fazendo uma careta, tentando disfarçar as pontadas de ansiedade na barriga.

— Você está banhado e perfumado na frente das coisas que já vi por aí.

— Como está sua perna?

— Curada. Meu avô está providenciando tudo para nossa partida.

— É...ele comentou isso comigo hoje. Fica tudo pronto em poucos dias.
Eles se sentaram nos degraus que davam para o quintal da casa, onde árvores frutíferas cresciam e um poço velho dormia. Solenni começou:

—Bom, Estel, eu queria me desculpar com você...

— Hã?! Desculpar...?! — espantou-se o garoto, sentindo a barriga de ansiedade murchar como uma bexiga sem nó. — Se você fez alguma coisa de errado, então nem eu estou sabendo disso.

— Não foi algo de agora. Quando nos encontramos na floresta e falei dos meus motivos de acreditar em você, eu menti.

— É...isso eu realmente não sabia.

— Sua aparência, a arma que carregava, o jeito de falar e entre outras coisas foram, sim, motivos para eu acreditar, mas não o principal.

— Então o que foi?

— Sonhos. Desde que me lembro tenho sonhos estranhos, mas eles só começaram a tomar forma de uns tempos para cá. O que se resumiu em apenas dois: um eu me encontrando com alguém na floreta, e o outro eu me encontrando com Andrômeda para conseguir a espada. Quando encontrei aquele homem, os sonhos vinham, mas sem nexo ainda, então dei uma chance e acabei acreditando nele. O que se mostrou uma péssima idéia. Depois disso deixe de lado o que sonhava, não ligava mais. Então sonhei com você claramente. O rosto, as roupas, em que parte da Floresta Elísia estava e que uma aracnéia o estava atacando. Mas eu não disse isso a você por segurança.

— Não queria ser enganada de novo, não era?

— Exatamente. Contei o que houve comigo para intimidá-lo, caso você tivesse qualquer outra intenção, como aquele ladrão. Mas tudo ocorreu bem. Trouxe você para cá como uma espécie de teste também, afinal, estaria debaixo de três olhares ao invés de só um. Meu avô sabia desses sonhos que eu tinha, mas só soube do que eu tive com você no dia em que chegamos. Nesses seis meses estivemos o observando, procurando o menor sinal de mentira, só que não houve, para nossa alegria. Então tive a confirmação definitiva: Perseu e Andrômeda. Eles me perguntaram sobre você, como estava. Não tenho mais motivos para desconfiança, pelo contrário. Desculpe-me por isso, Estel.

— Tudo bem, Solenni. Para falar a verdade pensei que fosse algo pior. Deus me livre mentir para alguém como você e, principalmente, para alguém do tamanho do seu avô. Confesso que fiquei bem desconfiado com toda essa boa vontade...isso no meu mundo é muito raro, sem ter alguma coisa troca. Mas gostei de saber que você também sonha.

— Você sonhou também?

— Sim...e ainda sonho. Não vi você ou qualquer uma das pessoas que conheci aqui, mas vi a estrela e ouvi a voz do Sábio-Rei. Os outros sonhos são com muitas imagens, todas malucas...

— O que você vê?

— Uma praia cinza, uma mulher de costas numa ponte de pedra, cristais verdes, flores que viram sangue....você entende algumas dessas coisas?

— Sinceramente, não. São coisas malucas mesmo.

Estel bufou e riu. Continuou:

— Por que será que tenho esses sonhos?

— Não sei, Estel. Quem saiba seja o Sábio-Rei, mais uma vez, tentando lhe dizer alguma coisa. Eu não o vi nem ouvi em meus sonhos. Quem sabe, falar com você seja mais fácil para ele.

— Mas por que eu? Eu nem sou daqui.

– Não serei eu que vou poder responder isso, Estel. Mas...me diz uma coisa, você não sente falta do lugar de onde veio?

— A única coisa do que sinto falta é da minha mãe. Queria saber como ela está. Quanto ao resto eu não ligo muito...achavam que eu era doente, anormal. Tudo por causa dos olhos, e dos sonhos que me faziam falar e me mexer de repente. Tive muitos problemas por causa disso. Tinha que provar que não tinha nenhuma doença contagiosa ou mental. Minha mãe se esforçou muito por mim nesse ponto. Recebeu ajuda de um cara, mas ele só queria com ela.....só queria...você sabe. Os dois únicos amigos que tinha se escondiam de mim, porque tinham medo da “minha reação”. Eles também achavam que eu era maluco. NÃO, eu NÃO sinto falta do meu mundo.

—E o que vai fazer quando essa guerra terminar? Não vai voltar?

— Não sei... Perseu disse que assim que tudo terminasse, eu voltaria, mas não sei como isso vai acontecer exatamente. Se eu puder escolher, vou ficar. Não quero voltar.

— Mas, Estel, o que garante que aqui você não vai sofrer a mesma coisa que no seu mundo?

—Bem...é que...até agora ninguém me xingou nem me chamou de doido...nem você, nem Perseu, nem seu avô...

— Sem querer ser pessimista, Estel, são apenas três pessoas em relação a um mundo inteiro. Eu falei para você que achava seus olhos estranhos, as pessoas aqui de Espártaca que já o viram me falam sobre eles, me perguntam o porquê. E se aqui, você for discriminado também, como vai ser? Vai fugir para “outro mundo”?

—...

— E a sua mãe, como fica?! Será que todo o esforço que ela fez por você não vale por todo o resto? E Perseu, meu avô e eu, vamos valer pelo resto de Eternia? Estel, nunca vi olhos iguais aos seus, não conheço sua família, como vivia, onde vivia, nada. Isso para mim pouco importa, desde que o Estel que eu conheço agora não mude. Mas eu me pergunto se você vai reconhecer isso, se você vai se importar mais com que eu penso de você, do que com o resto de um mundo que nem se deu ao trabalho de conhecê-lo. Estel, não vou dizer que é fácil agüentar isso...mas você foi meio covarde em aceitar arriscar a vida ao invés de arriscar a paciência.

— Ah, você fala isso por que nunca aconteceu com você. Todo mundo fala bem de você e do seu avô.

— Você não conhece a minha vida, Estel.

— E nem você a minha, como você acabou de falar. Não se mete, tá legal?

— Tudo bem, desculpa. Se você não quer dividir comigo o que tem, eu farei o mesmo com você. Não o importunarei mais. Até o jantar.

E Solenni saiu. Não havia tristeza ou raiva em sua expressão, apenas uma leve decepção. A discussão fora calma, como quem conversa sobre banalidades, contudo ela pesava agora como uma bola de chumbo no estômago de Estel. Ele levou apenas cinco segundos para perceber que havia sido um estúpido. Solenni tinha razão, tinha toda razão...mas o orgulho de vítima era sempre assim, acima de qualquer verdade.

— Idiota, você é um idiota! — foi a única coisa que Estel conseguiu dizer, antes de ficar prostrado onde estava, vendo sozinho a noite chegar.

No jantar, Solenni não apareceu. Mestre Leônidas estava com uma expressão distante e entristecida. Será que havia acontecido alguma coisa?

— Mestre, eu...

— Depois do jantar ainda temos alguns afazeres, rapazes. — anunciou o espártaco. — Quero que esteja tudo em perfeita ordem para a viagem de vocês, Estel.

Estel respondeu apenas com a cabeça, não havia espaço ali para qualquer pergunta.

Já passava da meia-noite quando Estel pode finalmente ir se deitar. Estava quebrado, para não dizer chateado também. Subindo as escadas para seu dormitório, viu, mesmo com os olhos pregando de sono, alguém sentado embaixo da árvore central do jardim. E era Solenni.
Observou-a através da janela. Ela estava com uma expressão muito deprimida, mas sem choro; o corpo encolhido com as mãos muito fechadas em torno dos joelhos. O que ela tinha? O que havia acontecido? Teria sido a conversa daquela tarde? Não...deveria ter sido algo mais sério. Mas por que não procurou ninguém? Estel tinha que saber, queria saber.

Quando o garoto virou-se para descer, encontrou Mestre Leônidas. Teve que fazer um grande esforço para não gritar do susto.

— Preocupe-se com os outros, Estel, mas não deixe nunca sua guarda baixa Eu poderia tê-lo matado. — disse ele muito sério, e em seguida muito triste. — É horrível vê-la assim, não é?

— O que houve? — indagou Estel, aflito. — Por que ela está desse jeito? Não vamos fazer nada?

— Eu mesmo já tentei varias vezes ajudá-la, mas não consegui. Podemos conversar, Estel?

— Sim, claro, mas...

— Depois do que eu disser, você está livre para ir onde ela está.

Sabendo que com o mestre não adiantava discutir, Estel acompanhou-o até a grande mesa da sala, onde se acomodaram.

— O motivo de minha neta estar assim, Estel, vem de muito antes e também de agora. — disse Leônidas.

— Como assim? — disse o outro, sem entender.

— Minha neta não teve uma infância feliz. Nesta casa, vivíamos eu, meu filho, sua esposa e sua
filha. Solenni tinha 10 anos quando tudo começou a acontecer. Eternia, nesse tempo, já dava sinais de que não estava bem. Um desses sinais aconteceu aqui em Espártaca.

— O senhor está falando de uma guerra que teve aqui? Solenni comentou comigo muito por cima.

— Pois eu vou lhe contar tudo. Você já viu as Montanhas Rubras, não é? Pois bem, anos atrás, dela surgiu uma horda gigantesca de monstros. Criaturas muito piores do que as aracnéias que lotam a floresta agora. Elas invadiram Espártaca numa onda violenta, elas trouxeram a guerra. A situação estava ficando insuportável, mas não conseguimos ajuda de outros reinos, eles se fecharam para se salvarem. Eu não os condeno, Estel, mas foi duro saber que nós estávamos sozinhos. Os Vigilantes foram quem nos apoiaram, salvaram para ser mais sincero. Tivemos inúmeras baixas, o reino ficou em ruínas, antes que conseguíssemos trancar as criaturas nas montanhas. Por isso ir para lá é tão perigoso e está sob vigilância constante.

— Aconteceu alguma coisa com Solenni nessa época?

— É isso que vou lhe falar agora. Esses monstros eram mais parecidos com demônios do que qualquer outra coisa, pois eram maldosos, astutos. Enviaram sobre nós uma nuvem de poeira vermelha, que nos enfraqueceu e adoeceu. Fomos impedidos de dormir, pois quem sucumbia ao sono era assaltado por pesadelos até enlouquecer. Com outros aconteceu algo muito pior: foram possuídos. E foi isso que aconteceu com todo um batalhão que o pai de Solenni comandava. Os guerreiros invadiram a casa com o intuito claro de matar a família. O pai e a mãe fizeram de tudo para segurar os invasores enquanto a filha fugia. Ela felizmente não foi pegue, mas não pode deixar de assistir o que aconteceu com os guerreiros e seus pais. Os primeiros se deformaram, finalmente tomando a forma dos demônios que os possuíram; os segundos foram devorados vivos pelos primeiros. Eu e outros soldados chegamos naquele momento, mas não havia muito que ser feito. Matamos os monstros e em seguida procurei desesperado por Solenni. Não consegui conter a emoção quando vi minha neta escondida num espaço mínimo num armário de armas, tentando segurar uma espada, completamente em choque.

“Desde então Solenni tornou-se uma criança séria, fechada, quase não falava. Tinha pesadelos constantes com o ocorrido. Dedicou-se viciadamente aos treinos com a espada, culpava-se pela morte dos pais, e ainda hoje o faz. Por ter sobrevivido a um massacre, as pessoas de Espártaca consideram Solenni um sinal de mau agouro, de morte. Não querem muito se aproximar dela. Isso a deixou mais deprimida e isolada, e mesmo que não demonstrasse, eu sabia que ela sofria com isso. Estava solitária. Eu não consegui suprir essa necessidade dela e me recrimino muito por isso, minhas obrigações como um dos Cinco Grandes me tirou da minha neta. Ela literalmente se criou só. “

“Alguns anos mais tarde, quando ela tinha 14 anos, Solenni criou uma inesperada e ótima amizade com meu escudeiro antes de Caésar, Rômulus. Um rapaz muito expansivo e com muita necessidade de falar, e queria que os outros falassem também. Ele tinha 17 anos. Venceu minha neta pela insistência. Ela estava começando a abrir a tranca que ela mesma havia posto.”

“Só havia uma coisa que eu recriminava em Rômulus: sua necessidade de vingança pela perda da família na guerra. Mesmo não sabendo em quem, ou no quê fazer isso, era o objetivo da vida dele. E tal objetivo, infelizmente, acabou virando o da minha neta também.”

“Nessa época as aracnéias começaram a aparecer na floresta. Rômulus se preparava para se juntar as patrulhas que iam para lá. Dizia haver um responsável por ela estarem ali, o mesmo que enchera Espártaca de demônios. Num certo dia, ele soube que uma patrulha morrera na floresta por conta dos monstros, e um dos guerreiros dessa patrulha era um grande amigo seu. Seu desejo de vingança tornou-se insuportável e ele queria sair daqui. Eu o proibi, e não há desonra maior para um escudeiro do que desobedecer a seu mestre. Mas ele não se importou, armou-se e foi para a floresta. Solenni ficou com medo que algo lhe acontecesse e, então, seguiu-o. Quando descobri o que os dois haviam feito, corri para a Floresta Elísia com vários patrulheiros. Achei-os no lado norte da floresta cercados por um bando enorme dos monstros. Foi uma luta violenta, mas vencemos. Ao final, Solenni estava muito ferida, olhando em choque a aracnéia fugir com seu amigo na boca.”

“Tudo que Solenni havia melhorado com a presença de Rômulus, esvaziou-se com a morte. A única coisa que ficou nela foi a culpa pela morte do amigo e a frustração de não haver nada nem ninguém em que ela pudesse descontar sua raiva e tristeza. A não ser que se considere Eternia, o Sábio-Rei ou a Coroa Negra como culpados.”

“Quando um ano se passou, Solenni resolveu sair de Espártaca, queria ver o mundo. Ou esquecer tudo que passou aqui. Eu não podia impedi-la, era maior de idade, sã e saudável, além de Mestra. Toda vez que a via voltar era um alívio, mas também uma grande preocupação. Solenni podia estar perto de mim, mas não estava bem. Com a cabeça vazia, os pensamentos e os sonhos ruins voltavam. E ela logo partia de novo. Foram dois anos nessas idas e vindas.”

— Esses sonhos, incluem os que ela teve comigo?

— Sim, mas ela só sonhou com você mesmo um dia antes de encontrá-lo. Mas foi por causa desse sonho que ela partiu da última vez, alguém precisava de ajuda e ela queria achar esse alguém.

— E aí ela encontrou aquele canalha.

— Quanto a esse tipo de situação eu não me preocupo. Solenni sabe como se defender e tenho pena daqueles que tentam enganá-la. Digo a você que ela foi muito bondosa em cortar apenas a mão de alguém que tentou violentá-la.

— !! ... Mas...porque me contou isso, mestre?

— Por que eu quero sua ajuda, Estel. Solenni finalmente encontrou outra pessoa que a fizesse reagir, assim como Rômulus.

— Mas eu não sou ele...

— Exatamente por isso. Desde que tudo isso aconteceu Solenni não deixou que mais ninguém se aproximasse dela ao ponto de se tornar um amigo. Ela acha que assim vai evitar uma nova perda. Mas com isso, ela está indo contra a própria vontade de não querer se sentir mais solitária. Todas as lembranças e sentimentos ruins que ela guarda estão brigando com a vontade dela de esquecer, e essa vontade apareceu há três meses.

— ?!

— Isso mesmo, você. E eu sei disso, perdoe-me de antemão, porque ouvi a conversa que vocês dois tiveram mais cedo. Não estava em nossos planos contar a você que o estávamos observando, mas ela quis ser sincera. Queria contar também tudo o que aconteceu a ela, queria saber se mesmo com todo esse passado infeliz você continuaria a ser amigo dela, e não considerá-la um mau agouro.

— Mas eu estraguei tudo...desculpa.

—Não é a mim que você deve se desculpar, Estel. Solenni só disse aquilo para você para alertá-lo, para que não fizesse o mesmo que ela, fugir das coisas ruins, trancar-se em si mesmo. Ela tem um carinho muito grande por você e, eu sei, que você também tem por ela. Vi como vocês dois ficaram no dia em que ela partiu para passar uma semana longe. Solenni só disse a verdade de um modo um tanto rude, mas minha neta não cresceu vendo o que é delicado.

— E porque acha que fui eu mesmo que a fiz mudar?

— Porque você sempre esteve com ela. Eu, como disse que foi antes e ainda hoje é, não posso ficar o todo tempo ao lado dela, mesmo que seja meu desejo. Caésar a trata com deferência, mas só isso. Você, mesmo que estivesse aqui só para estudar, sempre estava com ela, conversando com ela. Isso fez toda a diferença.

— E tem algo a mais que eu possa fazer? O senhor quer que eu faça alguma coisa?

— Estel, responda-me com toda a sua sinceridade. Você gosta da minha neta? Não sei como os jovens falam, então serei direto, você a ama? Seja em que sentido for esse amor: irmão, amigo, ou mais que isso, ou tudo isso.

Estel se surpreendeu com a pergunta. Será que todo espártaco era assim tão direto, ou era só a família de Solenni? Tentou se concentrar numa resposta ignorando o constrangimento que fazia bolhas de ar papocarem em seu estômago. Então respondeu, nervoso:

— Sim...no sentido “mais que isso”...ou tudo isso. É, acho que é isso...

— Então faça o que fez até agora, fique perto dela. Ainda mais agora que ambos vão precisar muito um do outro.— Leônidas levantou-se devagar, como alguém que precisasse fazer muito esforço nesse movimento; seu rosto finalmente exibia a idade que tinha, mas o sorriso que atravessava seu rosto tornavam esses sinais irrelevantes. — Bom, rapaz,se me der licença, vou me recolher. Você tirou um peso enorme das minhas costas. Fiquei muito feliz com o que acabei de saber, e mais feliz ainda pelo fato de ser você, Estel, que é uma ótima pessoa. Pode ir falar com Solenni, mas já é tarde, vocês não fiquem muito tempo lá fora, pois têm muito que fazer amanhã.

Estel ficou muito vermelho com o comentário, dito tão normalmente como se ele e Solenni já namorassem há anos, mas uma cócega de empolgação ao pensar nisso remexeu sua barriga. Ele viu o mestre subir as escadas pesadamente, porém parecendo bem aliviado. O garoto estava grudado na cadeira de tensão, tanto pela história que acabara de ouvir quanto pelo o que confessara a si mesmo. Dois sentimentos se digladiavam: o de ir até lá com a cara e a coragem, e o de ficar com a sua vergonha.

Levantou-se da cadeira e não pensou mais, faria isso quando estivesse com ela. Contudo Solenni não estava mais lá. Há quanto tempo tinha ido embora? Será que ouvira a conversa? ... Não, ninguém passou por eles na sala. A noite estava fria e ele muito cansado. Subiu sem falar nada, sem namorar ninguém, a vergonha tomando o lugar do impulso. Não havia outra coisa a fazer senão dormir.

. . .

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Coroas de Eternia - O Escudo, A Espada e O Cetro

Quarto Escrito – Muitos ensinamentos

Estel despertou com a luz do dia que entrecortava as folhas das árvores. Sentou-se. O braço direito agora estava apenas um pouco dolorido. Ficou pensando no sonho que tivera. O primeiro diferente depois de tanto tempo sonhando com o mesmo. Havia uma mulher num porto de pedra, ela parecia esperar por alguma coisa ou alguém; depois dois riscos amarelos pairavam no meio do escuro; e, no final, um lótus branco se abrindo e se desmanchando em sangue. Ter um sonho diferente não foi exatamente uma alegria, afinal o dessa noite foi tão sem sentido quanto o outro.

— Bom dia. — disse Solenni, chegando ao local com uma bolsa carregada. — Está se sentindo melhor? Está com uma cara preocupada...

— Hã?! Eu?! Não, não é nada não. Meu braço que amanheceu dolorido, nada demais. — mentiu Estel. Não tinha pra que Solenni saber dos seus sonhos malucos, podia ser que ela não tivesse o mesmo pensamento de ontem para com eles. — É...eu me mexi muito durante a noite? Pode ter sido por isso que o braço ficou assim.

— Não, na verdade não. Esse dolorido é normal, logo passa. Trouxe algumas frutas para comermos antes de ir. Não quero me demorar mais aqui, na casa de meu avô comeremos melhor.

A garota retirou da sacola uma dezena de frutas que lembravam pêssegos no formato e tamanho. Sua casca era de um amarelo muito claro.

— Chama-se glicosinã, é muito comum por aqui. Ou pelo menos era, antes de as aracnéias aparecerem. — disse ela. — Para abrir é só enfiar a unha na casca e puxar.
Estel fez exatamente como a outra fizera. Dentro a fruta tinha cor de goiaba, mas textura e sabor de banana. Gostou tanto que comeu três. Os dois então juntaram suas coisas (mais as de Solenni, pois Estel só tinha o escudo) e partiram.

— Por que jogou aquelas flores nas brasas? — questionou Estel.

—Aquelas flores têm um cheiro muito forte quando são queimadas. — respondeu Solenni, olhando atenta para os lados. — Vão despistar o nosso cheiro, caso uma aracnéia chegue ali. Mas fique atento.

E Estel ficou. Tão atento que não pode deixar de notar as olheiras que preenchiam a parte debaixo dos olhos de Solenni. Ela deveria estar mais cansada do que aparentava, porém estava concentrada demais para deixar transparecer. Estel tinha a impressão de que ela já vivera muito, apesar da pouca idade...era estranho. Havia algo de familiar em Solenni.

A caminhada durou mais algumas horas. A atenção de Estel então descobriu muros enormes cor de areia que se erguiam mais a frente. Neles, e nas torres de mesma cor, balançavam ao vento flâmulas de vários tamanhos. Depois disso um mundo se espalhava diante de seus olhos. Era como estar de volta à Grécia ou a Roma antiga: construções de cores claras com colunas altas e decoradas; ruas de pedras cinzentas bem pavimentadas, braseiros enormes (que àquela hora estavam apagados), um mercado lotado com tendas coloridas, um anfiteatro, um hipódromo (que parecia ter mais do que só cavalos) e um coliseu. Árvores amplas e em flor, estátuas e fontes faziam a decoração. Algumas pessoas se vestiam com túnicas, robes e mantos, e outras com armaduras e capacetes brilhantes.

O garoto estava tão perdido na beleza do lugar, que nem notou os olhares curiosos que lançavam a ele e a seu escudo. Só quando alguns reverenciaram na direção deles, é que percebeu: os gestos eram para Solenni.

— Por que estavam fazendo aquele movimento para você? — perguntou Estel, curioso.

—Por que eles respeitam o meu avô, Mestre Leônidas. — respondeu a garota. — Ele é um dos Cinco Grandes de Espártaca. Um dos generais que trouxeram a vitória ao reino quando a guerra se espalhou por aqui.

Estel quis saber mais, contudo o rosto de Solenni adquiriu um tom sombrio quase de dor ao falar aquilo. Melhor não continuar. Eles atravessaram mais algumas ruas, até finalmente parar diante de uma enorme e bela casa branca. Havia nela um jardim com diferentes plantas e uma árvore central de flores amarelo-ouro de um lado, e um campo de areia rebaixado e ladeado por degraus de concreto do outro. Eles caminharam pela varanda colunada até Solenni dizer:

— Espere aqui um instante.

E a garota se separou dele, entrando numa das portas laterais de madeira trabalhada.

— Olá! — disse uma voz à direita de Estel, pouco tempo depois. —Você deve ser o jovem que a Mestra Solenni comentou.

Estel espantou-se um pouco. Um garoto, que aparentava ter mesma idade que Estel, vinha na sua direção carregando nos ombros um longo bastão de madeira onde grandes potes brancos balançavam numa ponta e na outra. Ele tinha cabelos com cachos escuros e uniformes, olhos cinzentos e incisivos, mas sorriso amistoso. Ao lado dele, Estel sentiu-se raquítico. Contudo, julgando pelo barulho que os potes fizeram ao serem colocados no chão, lembrando pedras se batendo, estava explicada a envergadura do outro.

—Eu me chamo Caésar. — disse o jovem, colocando o punho direito fechado sobre o peito esquerdo, o mesmo gesto que fizeram para Solenni momentos atrás. — E você deve ser Estel, não é? Mestra Solenni me pediu para lhe fazer companhia enquanto ela conversa com Mestre Leônidas. Ei, seus olhos são tão esquisitos! E suas roupas também...

— É...ah, obrigado...mas, por que você chama Solenni de “mestra”? — indagou Estel, intrigado, querendo mudar de assunto.

— Ora, porque é isso que ela é, uma mestra. Solenni é a mestra-espadachim mais nova de Espártaca. Foi desafiada muitas vezes, mas sempre venceu. Eu não seria louco de fazer uma coisa dessas, é pedir para morrer duas vezes.

Estel não entendeu o “duas vezes”, contudo, no momento que iria perguntar o porquê daquilo, as portas laterais abriram-se. Solenni reaparecia agora acompanhada de um homem alto e muito forte (Caésar era o raquítico agora). Sua pele era bronzeada, marcada de músculos e cicatrizes. Os olhos sérios eram da mesma cor dos de Solenni, os quais tinham o tal quê de agressividade muito maior do que o da outra. Seu cabelo grisalho só lhe dava mais experiência e não velhice.

— Então, você é o tal Estel Elecktrion? — disse o homem, em sua voz grave.

— Sim. — respondeu Estel, um tanto tenso. Sentia que o homem lhe passava um raio-x de cima a baixo com o olhar severo.

— Você veio de “outro mundo”?

— Sim, isso mesmo. Se chama Terra.

— Sabe onde está? Que lugar é esse? Quem o trouxe?

— Estou em Eternia, e aqui é Espártaca, não é? E quem me trouxe foi o Sábio-Rei...pelo menos foi o que Perseu me disse.

— Quem o recepcionou em Eternia? Sabe o nome do símbolo que carrega? Sabe o que você é?

— Foi o Perseu quem me recebeu e o símbolo você diz é a estrela ou o escudo?! Se for a estrela, é Vésper o nome dela! E o que eu sou, bem, Perseu me chamou de um nome bem esquisito, mas significa Guardião do Escudo!

— Por que estava na Floresta Elísia?

— Porque eu precisava ir para lá! Quer dizer, Perseu me disse que o meu escudo estava apontando para cá, daí eu vim!

— Por que incitou uma aracnéia a atacá-lo? Sabe manusear o escudo?

— Ei! Eu não chamei aquele bicho para ele me comer!! Não sou doido a esse ponto e NÃO, eu NÃO sei usar o escudo!

— Qual seu objetivo em Eternia? Você foi forçado ou é seu desejo ajudar esse mundo?

— Eu não tive escolha, tá certo?! É, fui meio forçado por assim dizer!! Fui trazido para cá sem aviso nenhum, me jogaram uma profecia maluca e a porcaria desse escudo que eu nem sei usar! Perseu me chamou de Ŝirmilo þildo, mas do que adianta?! Eu quase que morria algumas horas depois de chegar a Eternia! Solenni me ofereceu ajuda e eu aceitei, porque eu estou completamente perdido aqui! Agora dá pra parar com a merda desse interrogatório?!!

Estel bufou aborrecido, não acreditava no que havia feito, mas o homem lhe enchera o saco com tantas perguntas de uma vez. Porcaria de interrogatório, por acaso ele era algum criminoso?! Porém, para o espanto do garoto, que imaginou que o homem ficaria ofendido com sua grosseria, viu-o rir abertamente e olhar para Solenni dizendo:

— Sim, minha filha, sem dúvida é ele mesmo!

— Como assim?! – exclamou Estel, indignado.

— Minha neta me passou todas essas informações que você disse, garoto, tirando a palavra antiga para Guardião do Escudo e a sua voz impaciente, claro. Eu precisava de provas de que você estava falando a verdade, e as tive! Principalmente pela palavra antiga, só os Vigilantes sabem das palavras originais da profecia. Fora outro detalhe importante também.

— O que?!

— Isso não importa agora. Até, porque, se depois disso tudo, você estiver nos enganando, esse escudo vai parar na sua garganta ao invés de colocado no braço.

— Nossa, que convidativo. Espártacos são sempre assim “simpáticos”?!

— Gostei de você, Estel! — o homem deu uma sincera e alta risada, acompanhada de uma sonora tapa na omoplata esquerda de Estel. O garoto jurou que sentiu o ombro deslocar. – Você não esconde o que pensa e nós, espártacos, apreciamos isso! Meu nome é Leônidas, mas chame a mim com um sonoro “mestre” na frente a partir de hoje, pois você é meu aluno agora. Caésar, pode providenciar algumas vestes de verdade para esse jovem? E um dos quartos também?

— Sim, mestre! — respondeu o jovem, saindo rapidamente com os potes nos ombros.

— Quanto a vocês dois, já fizeram o desjejum?

— Comemos algumas glicosinãs mais cedo. — respondeu Solenni.

— Não é o suficiente. — contestou Leônidas, olhando para Estel. — Principalmente para alguém que logo vai pegar no pesado, só esperar que esse braço remende. Vamos, faço alguma coisa para vocês.

Enquanto todos comiam, Solenni relatava ao avô todas as novas notícias que conseguira naqueles seis meses longe de casa. Leônidas prestava atenção aos mínimos movimentos de Solenni, matando as saudades da neta. Estel achou melhor deixar os dois conversando enquanto ele reorganizava os fatos em sua cabeça. Coisas irreais haviam acontecido com ele apenas em algumas horas, era tanta informação que chegava a ficar zonzo. Tudo aquilo parecia sonho, mas o medo, a dor e a fome o faziam compreender que era real. Tão real que lhe dava um frio tenso na barriga. Tirando a preocupação com a própria vida (o que não era uma preocupação qualquer), Estel só pensava na mãe. Quanto tempo já havia se passado por lá? Será que ela já estava louca a procurá-lo? Será que de tão preocupada já pedira ajuda àquele tarado do Luciano (ele esperava com todas as forças que não)?! Se ao menos pudesse falar com ela!

— Estel! — chamou Solenni. — Está tudo bem?

— Si...sim! — respondeu ele, voltando si. — Por quê?

— Você estava fazendo uma cara de dor. Tem certeza de que não está sentindo nada?

— Eu tô legal, sério. Só estava pensando em tudo que aconteceu comigo...tanta coisa doida! Em tão pouco tempo! Nem sei o que fazer primeiro!

— Imagino que você esteja confuso mesmo. — falou Leônidas, francamente. — Ser colocado no meio de uma guerra que não tem nada a ver com você. Isso é estranho.

— Verdade. — concordou Estel. — Eu perguntei a Perseu o porquê de eu ser chamado, mas ele pareceu que não sabia responder.

— Por hora, deixe isso de lado, garoto. — recomendou o espártaco. — Não sofra por antecipação, isso não vai lhe trazer nenhuma solução, muito menos uma resposta. Em algum momento todas as suas dúvidas serão sanadas.

— Assim espero... — falou o garoto, mas sem muita convicção.

— Bom, pelo menos nos próximos seis meses, você vai estar ocupado demais para pensar nisso.

— Seis meses?! Mas eu não sei se...

— Estel, diga-me, como acha que vai fazer qualquer coisa, se não sabe nem ao menos se defender ou saber onde está? Se não estou enganado, foi minha neta que o salvou de ser devorado.

— É... Mas seis meses vai ser o suficiente?

— Para o básico, com certeza! Você está falando com Leônidas, Estel! Grande parte dos guerreiros que você viu por aí fui eu quem treinou. E eles começaram como você, do zero. Mas, de certo modo, de você eu exigirei mais, porque sei que você pode, senão não carregaria uma das três armas da profecia. Em seis meses, rapaz, você vai ser outro. Estou disposto a ajudá-lo, pois você se dispôs a nos ajudar, seja lá porque motivo for. Aceita?
Estel não respondeu de imediato, contudo não tinha muito no que pensar. Não podia recusar essa ajuda, vindo que quase milagrosamente. Perseu disse que havia pressa, mas saber uma ou duas coisas para sobreviver viriam muito a calhar.

— Aceito. — respondeu o garoto, sorrindo. — E obrigado.



E assim, seis meses se desenrolaram.



Durante eles, Estel recebeu todo tipo de treinamento. Com Leônidas aprendeu a manejar o escudo, pois o mestre era um Defensor, um guerreiro especializado em manejar esse tipo de armamento (por sinal, o mais forte de Espártaca). Uma coincidência incrível e exigente, motivadora e severa. Além disso, descobriu a melhor maneira de carregar jarras cheias de areia, metal, madeira e etc, como Caésar fazia, já que Leônidas também era um exímio ferreiro.

Com Solenni aprendeu o estilo de luta corpo-a-corpo dos espártacos. Um tolo poderia pensar que esse treinamento teria um lado bom, afinal Solenni era muito bonita. Mas o que ela tinha de bela, tinha de dura como mestra, não tolerava a mínima imperfeição e a costas de Estel nunca foram ao chão tantas vezes em seis meses. Aprendeu também com ela uma boa parte da geografia de Eternia, os melhores caminhos para cada lado do mundo e como sobreviver nele. Os dois fizeram excursões para as regiões próximas ao reino. Numa delas foram atacados por aracnéias, o que só fez comprovar que o treinamento estava surtindo efeito, pois Estel lutara com primor, mesmo que no final ainda tenha saído com alguns cortes e arranhões.

Com Caésar foi, de certa forma, mais leve. Quando se tratava de andar dentro de Espártaca, ele era especialista. Caésar era o Escudeiro de Leônidas, um faz-traz-carrega-leva-etc-e tudo. E como Estel fora encarregado desses serviços diários também, comumente os fazia com ele.


Então, para a surpresa de Estel, os seis meses estavam terminando. Os dias passaram tão rápidos (e tão cansativos) que nem notara, a não ser quando via sua imagem num espelho. Ele tinha que começar a pensar no que fazer, apesar de que a perspectiva de viajar sozinho por aí não era nada encorajadora, mesmo que tenha aprendido tanta coisa. Ele poderia não ter a mesma sorte de encontrar outra Solenni pelo caminho. Contudo ele tinha que ir, não podia estacionar ali para sempre, assumira um compromisso. Falando em compromisso... Perseu... Ele não aparecera para Estel nesse tempo. Será que estava bem? Outra pessoa que gostaria de saber se estava bem era a mãe. Seis meses longe. Era agoniante ficar especulando o que estava acontecendo no seu mundo. Além de tudo isso, havia os sonhos estranhos que voltaram com força total: uma praia cinzenta, cristais verdes, a mulher que esperava no porto, os riscos amarelos no escuro e o lótus branco que virava sangue. Não havia coisa com coisa naquilo! Quantos anos teria de esperar de novo para ter um sonho com “sentido”?! E nem pensar de contar alguma coisa para alguém, já bastavam os olhos chamarem toda a atenção. Então, no fim das contas, era seguir o conselho do Mestre Leônidas: esperar.



— Solenni está demorando. — comentou Estel. — Não era para ela ter voltado hoje de manhã?

— Sim. — respondeu Leônidas, com a feição fechada. —Quando ela chega aos entrepostos sempre manda uma mensagem junto com a troca de sentinelas. Mas todos já passaram e nada.

— Espero que não tenha acontecido nada com a Mestra. — disse Caésar. — As patrulhas têm trazido notícias péssimas esses dias, a quantidade de aracnéias dobrou e algumas partes da floresta estão apodrecendo por causa delas.

O comentário do jovem não deixou o clima ali mais feliz. Solenni saíra de Espártaca há uma semana para escoltar uma carga de suprimentos para o entreposto mais distante do reino, próximo as Montanhas Rubras ao sul. Estel falou em voz alta, contudo mais para si mesmo que para os outros:

— Vai ficar tudo bem com ela. Não aconteceu nada, não aconteceu nada.

— Eu vou até o entreposto oeste, o que ela comumente fica antes de voltar. — concluiu Leônidas, a preocupação aumentando à medida que uma noite sem estrelas se expandia sobre Espártaca.
— Vocês...

Houve então batidas na porta principal. Estel num pulo estava lá para abri-la. Tomou um susto ao ver quem estava diante dele: Perseu, com uma aparência muito cansada, vestes rasgadas em alguns pontos e arranhões pelos braços fortes, que carregavam uma Solenni duas vezes pior que ele, acrescentando uma perna enfaixada no improviso que exibia uma enorme mancha de sangue.

— Solenni!! — exclamou Estel, assustado. — Perseu, o que foi que houve?! O que...

— Acalme-se, Estel. — pediu o cavaleiro, arfando. Ele entrou na casa e procurou um assento próximo onde colocou a jovem. — Na medida do possível, ela está bem.

O garoto aproximou-se de Solenni que arfava também, completamente exausta, a testa coberta de pingos d’água. Ela retribuiu a preocupação com um olhar tranqüilo, dizendo que o pior já passara.

— O que um dos Vigilantes está fazendo junto à minha neta?! — indagou Leônidas, aturdido. — O que houve?!

— Eu fui chamado para me encontrar com Solenni na saída do Templo Hórus. — respondeu Perseu, sério. — Ela é Glavo Damo, a Dama da Espada.

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