quinta-feira, 7 de abril de 2011

Aviso aos navegantes

Oi, gente! Estou aqui para avisar que, se por algum motivo do universo vocês continuam esperando atualizações aqui, o site do livro agora é outro:
Peço mil desculpas se demorei tanto a avisar, mas estou me redimindo agora. Todo o material que já coloquei aqui, já está lá também, além, é claro, de outras novidades. O site novo possui galeria com mais desenhos referentes ao livro, um arquivo falando do projeto em si e outro falando do próprio mundo de Eternia. Já foi publicado mais um capítulo e uma ilustração colorida. Espero que vocês curtam. Até mais!

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Coroas de Eternia - O Escudo, A Espada e O Cetro

Décimo Segundo Escrito – Seguindo viagem


— Ô, meu filho, coma mais um pouco. — pediu Dona Guilhermina, preocupada. — Você deveria estar mais animado agora que tudo acabou.

— Não... — disse Estel, baixinho e sério. — Só começou.

Era tarde da noite e a hospedaria estava fechada.

Depois do tumulto pode-se dizer que Diamantina voltou à normalidade. Tepúc Amaru, após sua aparição triunfal, desapareceu numa esfera de luz verde que entrou no peito de Luan. O magussírio, desacordado, não viu que uma multidão crescera ao seu redor em segundos, uns (poucos) querendo coroá-lo rei e outros (a maioria) querendo esfolá-lo vivo. Quem lhe salvou de qualquer um dos dois destinos foram os caçadores, que traziam no carro de resgate Solenni e Estel também inconscientes.

Quando os três deram por si, estavam na hospedaria. Descobriram que Dona Guilhermina, Rosa e os outros hóspedes estiveram todos juntos e presos dentro de um dos quartos. Os garotos ficaram desconfiados com a clériga, mas a anã explicou o que aconteceu em tão curto espaço de tempo e eles voltaram tratá-la normalmente.

Aquele era o quarto dia depois de tudo.

— E aí, Dona Guilhermina, qual foi o prejuízo que eu dei a cidade pela bagunça daquele dia? — indagou Luan, pesaroso.

— Rosa disse que desistiu de metade da carga que levaria para Arthuria para pagar a sua fiança e os consertos da cidade. — respondeu a senhora. — Ô, não fique com essa cara! Ela não está chateada, fez questão de ajudar vocês depois do que houve! Além dela mesmo ter levado parte dessa culpa... E ela ainda tentou segurar aquele cretino, ou aqueles...sei lá!

— E porque temos de ficar trancados aqui por mais cinco dias? — perguntou Estel.

— Porque esse foi o determinado, filho. — continuou Guilhermina. — Juro que é bem mais
saudável para vocês cumprirem esse prazo. Algumas pessoas ainda estão revoltadas com que aconteceu, acharam um sacrilégio...e acharam também que até o seqüestro daquela menina foi armação para que vocês pudessem acordar aquela coisa... Um bando de fofoqueiros que não tem o que fazer da vida! É tão ruim assim ficar aqui?

Estel e Luan ficaram sem jeito, não queriam ter passado essa impressão para Dona Guilhermina.

— Não, de jeito nenhum! — disse o magussírio. — É que não queríamos ser trancafiados como criminosos...

Houve um silêncio muito chato na cozinha onde os três estavam. Estel foi quem interrompeu a quietude.

— Será que Rosa já terminou? — indagou.

— Acho que sim, meu filho. — respondeu a senhora, sorrindo. — Já passou a meia hora que ela disse que precisava para cuidar da menina Solenni. Vá lá dar uns beijinhos nela, quem sabe assim a cara de vocês melhore um pouco.

— Ah...é...então com licença. — disse o defensor sem jeito, saindo do aposento.

— E eu como fico? — indagou Luan, num tom de brincadeira.

— Ô, meu filho, eu não tenho uma namorada para você. — respondeu Guilhermina, rindo, mas ao mesmo tempo com pena. — A única coisa que posso lhe dar é um beijo e um abraço como uma mãe faria. Você aceita?

—... Aceito.

Luan sentiu-se reconfortado, mesmo que o abraço de Dona Guilhermina tivesse quase quebrado uma de suas costelas. Ele sentia muita falta da mãe.


Estel não pode atualizar Solenni dos acontecimentos, pelo menos não com os detalhes que ele queria, por conta do “tratamento” que Rosa estava fazendo na espártaca. A clériga lhe disse que como ela quase teve um demônio retirado de seu corpo, era possível que alguns vestígios de magia maligna ainda estivessem nela. Solenni passou a maior parte dos dias dormindo devido à exaustão que tal maldição causara, e quando não estava assim, estava com Rosa nesse “tratamento de limpeza”.

Mais cedo a clériga veio conversar com ele, falar sobre algo que acontecera.

— Olha, Estel, com toda sinceridade...nunca tinha visto isso em minha vida. Primeiro, o fato de a alma de Solenni ter saído intacta desse episódio; pelo visto, apesar da maldição ter feito o que fez com ela, feriu-a apenas superficialmente. Segundo, você ter suportado duas almas, Estel...você agora deve ter noção do quanto “pesa” uma alma, e a sua deve ser feita de vespertrita pura, pois não “quebrou” apesar tudo. Pessoas comuns entrariam em colapso, sem saber quem é ela quem é a outra pessoa...

“Terceiro e, o mais impressionante, foi o resultado dessa união dentro de você. Houve uma transferência de você para Solenni e vice-e-versa. Vocês têm agora uma pequena, mas significante, parte da alma de um, no outro. Se os dois já eram ligados, serão muito mais agora...e não estou falando apenas de sentimento, é algo concreto, imutável e eterno.”

Sentado no banco do lado de fora do quarto, Estel refletia sobre essas palavras, sem entender muito bem, mas sabendo que eram verdadeiras.

Rosa saiu do quarto, tirando o defensor de seus pensamentos.

— Está acabado, não vejo mais motivo de manter o tratamento. — concluiu ela, sorrindo. — Ela está limpa. Acho que o único problema dela agora é tristeza e preocupação, mas disso você saberá cuidar. Com licença.

E saiu. Um minuto depois Solenni apareceu. Fisicamente agora só tinha uns leves arranhões. Contudo o que mais preocupou Estel foi a expressão de desânimo dela e os cabelos vermelhos completamente soltos.

Espártacas prezam muito por seus cabelos, mas elas só os soltam por poucos motivos. Ou quando estão impossibilitadas de lutar, ou quando são desistentes ou derrotadas em uma batalha”, o defensor lembrou-se. Solenni deveria estar assim por não ter conseguido fazer nada, mesmo que realmente não pudesse, e assim trazido tantas preocupações.

— Nesses dias em que estive dormindo, eu tive sonhos e visões muito estranhas. — ela falou, antes sequer de olhar para ele. — Vi cenas que não pertencem as minhas memórias, mas que me eram muito familiares, como se realmente me pertencessem. Foi quando num desses momentos eu vi que era você, que estava no seu lugar. Fui maltratada por pessoas que me xingavam, fui posta a tapas para fora de uma sala, ouvi grosserias, provocações, preconceitos. Vi minha mãe chorando, vi pessoas me rodeando e me tocando assustadas. Passei vergonha várias vezes... Vi meus dois únicos amigos acabarem me enganando também por medo de me dizerem a verdade. De um eu queria a amizade, da outra mais que isso...mas não tive nada de nenhum dos dois. Daí, quando a oportunidade veio, eu fugi. Parei em Eternia. Fiquei porque não queria voltar. Deixei minha mãe para trás... Mas aqui ainda sinto o mesmo medo, de ser rejeitado, de ser taxado de anormal, de não me encaixar. Tenho medo agora também de não cumprir o que prometi, o que prometi pela pura vontade de não voltar... Estel, me desculpe, fiz pouco caso da sua dor. Apesar de você ter me contado, não fazia idéia do quanto você sofreu e ainda sofre... Soltei meus cabelos como modo de honrá-lo, porque agora eu compartilho do que você sentiu e sente, literalmente.

Solenni ergueu a cabeça, mostrando um olhar gentil, mas pesaroso. E ela continuou a olhar quando algumas lágrimas caíram. Estel não teve outra reação senão abraçá-la com toda força e vontade que guardara aqueles dias.

— Ei, tá tudo bem. — disse Estel, numa mistura estranha de felicidade e pesar. — Não sei se serve de consolo, mas fiz pouco caso de você também, antes do seu avô vir me contar tudo e eu ver com meus próprios olhos.

E finalmente pode contar todo o ocorrido, até mais que isso. Queria saber também se a voz que ouvira era a dela.

— Sim, tentei muito falar com vocês. — respondeu a espártaca, voltando a sua bela normalidade séria. — Não queria que se separassem. Foi isso que falaram para nós.

— Mas como fez isso? — indagou o defensor, intrigado.

— Eu não sei... Eu estava num lugar completamente escuro, e, só conseguia me enxergar porque havia uma luz dourada em mim. E por causa dessa luz eu conseguia desviar das mãos que tentavam me pegar, só que numa hora elas se tornaram tantas e tão grandes que não conseguia mais me mexer. Foi quando vi você lutando, e no seu peito havia uma espécie de janela, pequena e rodeada de vespertritas. E ela estava aberta, soube que ali eu poderia ir e ficar segura. Então voltei a falar com você...e saíram palavras que eu nem conhecia... O seu escudo abriu caminho para mim e entrei na tal janela. Mas ali, apesar de seguro era muito apertado...lembro que, antes de voltar para o meu corpo, fiquei presa num dos cristais.

— Que coisa maluca.... — Estel olhou para o próprio peito.

— E o Luan, como está?

— Está bem, mas só se ele ficar quietinho dentro da hospedaria. Metade da cidade quer trucidá-lo por....como foi que eles disseram... "Roubo premeditado de relíquia ancestral – nível 10 de criminalidade"; e até nós fomos colocados no meio, como cúmplices. Seu seqüestro foi dito como encenação. Nos interrogaram para saber onde Hazaniel havia ido, mas pelo menos isso acreditaram que não sabíamos. Solenni...você disse que viu a mim a ao Luan...você também viu esse cara?

— Sim. E foi ele com quem me encontrei tempos atrás.

— O que será que ele tanto quer com você?

— Eu sinceramente não sei, mas com certeza não se trata só de vingança pelo que fiz a mão dele.

— Que venha. Da próxima vez vou deixar o nariz dele inteiro.

Solenni soltou um leve sorriso e apoiou a cabeça no ombro de Estel, que voltou a abraçá-la, desejando internamente que nunca existisse essa próxima vez.


Aproveitando que ficariam de molho mais alguns dias, os regidos renovaram seus estoques de viagem (com ajuda de Dona Guilhermina, a única que possuía passe livre pela cidade) e puderam ver que caminho eles tomariam agora. A senhora anã mostrou para eles uma abertura no sótão da hospedaria que dava para uma espécie de alpendre, onde, à noite, eles levaram o Cetro e o Escudo. As armas apontaram para o norte, a de Estel com mais intensidade do que a de Luan.

— Eu espero realmente que tenhamos uma viagem tranqüila, sem maldições, seqüestros, ou destruição de cidades pela metade... — comentou o magussírio, de volta a cozinha, enchendo o prato de comida.

— Para onde vocês vão, meus filhos? — indagou Dona Guilhermina, com um quê de tristeza que penalizou os garotos.

— Não sabemos exatamente...vamos onde nossas armas nos levarem. — respondeu Estel, sinceramente. — E agora elas apontaram para o norte.

— Ô, meus filhos, cuidado redobrado, por favor. — pediu a senhora, a mão pousada sobre a boca.

— As caravanas que estão chegando a Diamantina só trazem notícias ruins do mundo.

— Nós sabemos, mais do que ninguém, o que está havendo, Dona Guilhermina. — respondeu Solenni, bondosamente. — Mas não podemos parar.

— Vocês não têm idéia até onde precisam ir em direção ao norte? — perguntou Rosa. — Estou voltando para Arthuria, que fica nessa direção, e posso dar uma carona para vocês até lá e, se houver como, arranjar transporte para o resto do caminho. Aceitam?

— Com certeza. — responderam os três garotos em uníssono. Uma viagem com transporte parecia muito mais segura (e menos cansativa) que a pé.


Na madrugada seguinte, Estel, Solenni e Luan colocaram as bagagens no carro flutuante de Rosa. Um modelo bonito, branco, que misturava em si aspectos decorativos e modernos. Deram agradecimentos a uma emocionada Guilhermina e partiram.

Mesmo àquela hora havia pessoas trabalhando e elas fizeram questão de interromper o serviço para olharem para o grupo de partida e cochichar sobre ele. Durante todo o caminho até os portões os caçadores ficaram vigiando-os, assegurando que nem os do carro nem possíveis revoltosos começassem outra confusão na cidade.

Depois de alguns metros dos portões de Diamantina a motorista e os passageiros conseguiram relaxar.

— Pelo Sábio-Rei, que tensão! — comentou Luan, respirando aliviado. — Podia jurar que se déssemos um suspiro mais forte, atirariam na gente.

— Não os culpem. — disse Rosa. — Esses tempos difíceis tem deixado a todos muito estressados. A idéia de que Eternia está morrendo é bem assustadora... Além disso, é claro, o que aconteceu alguns dias atrás.

— Eles têm esse medo, mas não fazem nada contra ele. — falou Solenni. — Os reinos se fecham, as pessoas se trancam ao invés de ajudarem umas as outras e fazerem com que esse medo diminua. Parece que gostam de sofrer e de ver os outros na mesma situação.

— Concordo com você, Solenni, mas, por outro lado, pense que não é fácil deixar sua “segurança” para “se meter” nos problemas dos outros. Claro, isso explica, mas não justifica. Se todos usufruem de Eternia, todos deveriam protegê-la e mantê-la. O medo existe em todo lugar, em todo ser, até mesmo naqueles que carregam uma profecia nas costas. Vocês chegaram até aqui porque tem medo de perder coisas queridas, perder a própria vida. Contudo esse medo, ao invés de retraí-los, empurrou-os. Todos nós deveríamos agir assim, mas a verdade é outra. Sinceramente, não tentem entender as atitudes e os sentimentos de todo mundo, isso é uma carga muito pesada para poucas costas. Continuem seguindo a vontade de vocês, o que vocês acreditam, e Eternia estará em ótimas mãos desse modo.

Alguns segundos de silêncio acompanharam a reflexão dos regidos. Contudo Estel foi um pouco mais longe quando disse:

— Então tenho pena do Sábio-Rei...ele deve ter as costas muito mais doloridas do que as nossas.




— Ei, acordem! — chamou Rosa, contente, despertando os três regidos. — Chegamos.

Estel, Solenni e Luan, zonzos por conta das poucas horas de sono que conseguiram no apertado espaço do veículo, viram-se num estacionamento subterrâneo gigante com vários outros carros flutuantes em diferentes formas, tamanhos e cores. Ouviam-se ali ecos de muitos barulhos.

— Onde estamos? — perguntou Estel, no meio de um bocejo.

— Em Arthuria, mas numa parte que não é tão interessante assim. — respondeu a clériga. — Vamos subir.

Rosa guiou os jovens para uma porta que levava a um elevador. Levou alguns segundos para que os regidos entendessem o que a outra falara, contudo, quando o fizeram, foi juntamente com exclamações de admiração. O elevador subia agora por uma torre vazada, abrindo a visão para um cenário fantástico. Arthuria era uma espécie de castelo descomunal, onde todo um mundo existia por trás de grandes muros, torres de todos os tamanhos, pátios, ruas, pontes e jardins. Um reino-castelo. Flâmulas azul-escuras balançavam ao vento e carros voadores brilhavam e zuniam à luz do sol como abelhas de metal.

O elevador continuou a subir até a que as pessoas do nível mais baixo do reino-castelo transformaram-se em formigas coloridas. As portas se abriram e Rosa, Estel, Solenni e Luan caminharam sobre uma larga ponte que ligava a torre do elevador a um pátio jardinado. Neste erguia-se uma miniatura de Arthuria (se comparado ao tamanho do reino sem si, mas grande o suficiente para se admirar) onde havia mais gente e agitação. Carregavam de tudo para todos os lados: armamentos, armaduras, mantimentos e montarias (que, por sinal, era o mais estranho dali, pois eram grandes aves, lembrando avestruzes avantajados na forma do corpo e águias, na cabeça. Suas cores variavam do amarelo-ouro ao negro. E alguns deles estavam com armaduras adaptadas.). Havia também um grande número de soldados completamente cobertos de metal, alguns deles com apenas a ponta do nariz e a boca de fora; as outras pessoas trajavam-se com roupas mais leves e muito distintas entre si, algumas com cores muito escuras, outras já completamente brancas. Contudo, por qualquer um que passassem, Rosa ganhava uma reverência.

— Rosa deve ser alguém importante por aqui... — comentou o magussírio, para os outros dois. — Muito importante mesmo...

— Kain! — chamou Rosa, de repente.

No meio da multidão uma pessoa destacou-se para atender o chamado. Um dos soldados completamente vestidos, este especificamente com uma armadura azul-marinho que possuía detalhes que lembravam um dragão, como escamas, garras, e cabeça dando forma ao elmo, veio de encontro a clériga. Tomou-a nos braços num laço apertado e carinhoso.

— Rosa! Pensei que você não fosse chegar a tempo! — disse ele, sorrindo, a voz jovial, mas com um quê de preocupação. Ele saiu do enlace e retirou o elmo, mostrando-se idêntico a outra, masculinamente falando. — Todo mundo aqui ficou maluco quando recebemos as notícias de Diamantina, principalmente seu marido. Ele estava uma pilha esses dias...

— Meu Sábio-Rei...incrível como essas notícias correm mais rápido que o vento. — disse a outra, sorrindo sem jeito. — E com certeza com algumas distorções. Preciso contar minha versão ao nosso pai para tentar justificar toda essa confusão... Trouxe até testemunhas! — e virou-se para os regidos — Estel, Solenni e Luan, este é o meu irmão, Kain.

Agora estava explicado. Enquanto os jovens cumprimentavam o irmão de Rosa, ouviram-no falar:

— Nas notícias que recebemos também ouvimos o nome de vocês, mas junto com eles não vieram coisas muito boas...

— Já imaginávamos. — comentou Luan, dando de ombros. — Quase não conseguimos chegar aqui inteiros e ainda saímos como os vilões...uma má fama aqui outra acolá não faz muita diferença.

— Pelas caras de sono, vocês chegaram agora a pouco, não? — perguntou Kain, depois de rir abertamente. — Leve-os para comer, minha irmã, quem sabe de estômago cheio o ânimo deles melhore.

— O movimento aqui está de um jeito que nunca vi. — falou Rosa, preocupada. — Vão partir em breve, não é?

— Amanhã antes do raiar do dia. Ficaremos fora três semanas. A situação em Mysidia não está nada boa e... Ah! O “chefão” tá vindo aí!

Entrando no meio da multidão e falando com todos que vinham até ele, um cavaleiro. De armadura prateada e vestes brancas, recebia tantas reverências quanto Rosa. Quando chegou ao grupo que conversava, pediu um “com licença” a todos e em seguida ergueu a clériga do chão num abraço e beijou-lhe a face com veemência.

— Por Mazda! Pensei que fosse partir sem vê-la, Rosa! — disse o cavaleiro, no mesmo tom de alegria e preocupação que Kain. — Se demorasse mais um pouco, eu mesmo iria buscá-la em Diamantina.

— Por isso que resolvi tudo e cheguei antes disso. — respondeu Rosa, as faces rosadas atravessadas por um sorriso. — Cavaleiros de armadura brilhante sempre carregam essa vontade insaciável de salvar tudo, principalmente, princesas.

— É... E princesas conseguem resolver tudo de um jeito muito mais eficiente...preciso me acostumar com essa idéia.

— Princesa?! — falou Estel, pensando alto.

— Ela não disse? Ah, é assim mesmo, minha irmã adora agir em surdina, não sei como até agora tem usado o nome verdadeiro, jurava que já tinha arranjado uma identidade secreta. — falou Kain, fingindo cochichar. — Esta é Rosa Guinevere Del Lunarian, princesa de Arthuria.

— Não é nada disso. — contrapôs a outra, séria. — Desculpem-me por não ter dito antes, mas o status de “princesa” não traz nenhuma liberdade quando o assunto é trabalho, entendem? Não quero que façam tudo por mim ou me tratem como um vaso de cristal... Nosso pai me tornou responsável por ligações comerciais em vários reinos, e ser “princesa” não dá muita credibilidade nesse meio. Em Diamantina acham no máximo que sou uma diplomata, e prefiro que continue assim.

— E vocês três devem ser Estel, Solenni e Luan. — falou o cavaleiro. — Eu sou Cecil Galahad. Minha esposa contou sobre sonhos que teve com vocês, apesar de não saber realmente que eram vocês...disse-me que viriam para cá. E o sonho se cumpriu. Mas eu gostaria de saber o que houve antes disso.

E Rosa contou, juntamente com os três regidos.

— Agora preciso contar essa história ao nosso pai, tentar justificar a perda de metade da carga de metais. — comentou a clériga, suspirando. — A outra já chegou?

— Sim. — respondeu Cecil. — Quer que eu a acompanhe?

— Por favor. Apoio moral nunca é demais.

— Essa perda vai lhe prejudicar tanto assim, Rosa? — perguntou Solenni, preocupada.

— Nãão! Minha irmã está fazendo drama, nosso pai nunca ficou realmente bravo com ela. — disse Kain, cruzando os braços e rindo. — Ele vai acreditar no que ela disser. No máximo vai fazer uma cara feia e depois fica tudo bem.

— Não sei se dessa vez vai ser tão simples assim. — contrapôs a irmã, sorrindo. — Não que a culpa seja de vocês, por favor, foi o fato dos diamantinos não terem entendido o que houve...e tivemos de pagar por isso. Mas obrigada pelo incentivo, Kain. Até logo e bom trabalho. — e deu um beijo no rosto do irmão. — Vamos, garotos, no caminho para a sala de nosso pai falaremos com Cecil sobre a carona de vocês.

Os regidos despediram-se de Kain e acompanharam o casal por entre a multidão até o castelo. Dentro, mais gente ocupada e mais reverências, além da beleza do local. Enquanto andavam, Rosa perguntou para Cecil:

— Meu irmão comentou comigo que a situação em Mysidia não melhorou. O que está acontecendo?

— Os ataques aumentaram consideravelmente. — respondeu o cavaleiro, a feição fechada. — Os Atmas estão ficando mais fortes, resistentes às armas e as magias. Além disso, estão astutos, planejam cada ataque, conseguem interferir em nossas defesas como se soubessem o que vamos fazer. Estamos levando o dobro de clérigos dessa vez... Sábio Efraim está tentando buscar reforços com os druidas, o que nos surpreendeu, porque Arborim já era aliada de Mysidia, mas eles recusam-se a atravessar o Pântano Ocre e dizem já ter seus próprios problemas. Já nós, tentamos aliança com os reinos Valhol e Eólio, mas todos dizem já terem seus contratempos para se deslocarem até outra guerra.

— Entendo...e pedir ajuda em outro lugar demoraria demais.

— E ainda há outro detalhe.

— O que?!

— Você sabe que os mysidianos guardam uma relíquia importante, não é? Há três dias soubemos que houve uma tentativa de roubo.

— Pela Coroa Branca! Conseguiram pegar alguém?!

— Não, infelizmente. Desde então a segurança aumentou e, em relação a isso, por enquanto, não tivemos mais notícias ruins.

Eles pararam a frente de uma grande porta branca. Atrás dela, muitas vozes.

— Esperem só um instante, tudo bem? — falou Rosa, para os regidos.

E entrou. Cecil aproveitou para perguntar:

— Se eu não for me intrometer, posso saber por que vieram para Arthuria? Foi só por conta do que houve em Diamantina?

— Não, vamos dizer que também foi por isso. Nossas armas é que nos dizem que direção tomar, e como elas apontaram na direção de Arthuria, Rosa nos ofereceu a vinda até aqui e possivelmente transporte para o resto do caminho. — explicou Solenni.

— E para onde vão exatamente?

— Não sabemos. — respondeu Estel, sincero. — Elas nos mostram a direção e a gente segue, seja lá onde possamos parar. Tudo para encontrarmos ou um dragão ou uma litta, uma espécie de jóia.

— Uma litta...? Essa jóia...a aparência dela é redonda, verde-escura?

— Sim! — exclamou Luan, surpreendido tanto quanto os outros dois. — Ei...não me diz que...

— Exatamente. A relíquia sobre a qual comentei agora é essa que descrevi.

— Estel...é uma de suas littas! — exclamou Solenni, tensa. Estel engoliu seco.

— Nunca soube que se tratava de uma litta, da litta de um dos Regidos de Eternia. — continuou o cavaleiro, sincero, vendo as expressões fechadas dos jovens. — Sabia, sim, que se tratava de uma relíquia ligada à profecia, mas não a esse ponto. Os mysidianos sempre manteram sigilo sobre a verdadeira natureza dela.

Os três regidos estremeceram, Estel mais que todos. Um barulho de porta se abrindo tirou-os dos pensamentos. Rosa surgia com um sorriso, mas ao ver a expressão dos outros, perguntou preocupada:

— O que houve?

— Nós precisamos ir com vocês. — disse o defensor, resoluto. — Para Mysidia.

— Rosa, a relíquia dos mysidianos trata-se de uma das joias do regido Estel. — resumiu Cecil.

— Pelo Sábio-Rei...faz todo sentido...conhecemos a relíquia por ela estar ligada à profecia. Não me espanta agora o fato de vocês estarem seguindo na mesma direção que nós. — disse a clériga. — Não se preocupem, já falei com meu pai. Vocês poderiam seguir com a comitiva de Mysidia até onde precisassem...agora, de certa forma é bom saber que ficarão conosco a viagem toda. Ele só pediu uma coisa em troca.

— O que? — indagou Luan, tenso.

— O rei deseja conhecê-los. — e Rosa abriu o sorriso de antes. — Hoje à noite vocês jantarão com ele.



A idéia de que um rei queria conhecê-los, assustou e empolgou os regidos. Até aquele momento eles só se envolveram com pessoas próximas a eles mesmos ou comuns, e o único convite que receberam foi o de “por favor, retirem-se antes que vocês nos matem ou a gente mate vocês”.
Uma excursão por Arthuria foi um merecido momento de despreocupação, apesar da recente notícia de que uma litta quase fora roubada e dos rumores de guerra que pairavam sobre as conversas das pessoas. A visão daquele mundo-castelo, cheio de torres, jardins e casas, além da conversa descontraída sobre as histórias do reino, quase fizeram os regidos acreditarem que estava tudo bem.



— Ah! Vocês estão ótimos! – disse Rosa, chegando ao salão de entrada, belamente vestida assim como Cecil.

Os jovens pensaram que Rosa estava sendo mais gentil do que sincera. Eles não tinham pensado em levar roupas para uma ocasião tão formal, tendo de se arranjar com o que possuíam, o que significou vestes que depois de tantas idas, vindas e remexidas de viagem exibiam vincos e amassados.

Os três foram levados até uma ante-sala, onde Rosa pediu que esperassem um instante. Sentiam-se nervosos. Será que o rei desejava alguma coisa deles?

— Vamos, entrem. — disse Cecil, abrindo a porta para eles.

Estel, Solenni e Luan timidamente atravessaram o portal, esperando encontrar aquelas mesas retangulares compridas e requintadas. Contudo, o lugar onde estavam era uma sala espaçosa, sim, mas decorada com simplicidade e bastante confortável. Exibia grandes janelas abertas e uma porta de correr para a varanda; havia no chão acarpetado almofadões ao redor de uma mesa redonda e baixa já servida; estantes com vários livros e objetos estranhos preenchiam uma das paredes; a luz prateada da lua e a dourada dos lustres dividiam espaço harmonicamente ali.

Sentadas nos almofadões, duas pessoas: Cain e outro homem. Era uma versão de Cain anos mais velha, porém seus cabelos e barba aparada eram de um ruivo escuro.

— Boa noite, meus filhos! — cumprimentou ele, a voz grave e empolgada. — Que prazer recebê-los!

O homem levantou-se e foi diretamente para os regidos, apertando fortemente as mãos e os ombros de Estel e Luan, e beijando a mão de Solenni. Ele se vestia com elegância, parecendo um árabe para Estel, tendo até um turbante na cabeça.

— Todos me chamam de Majestade ou de Rei. — disse ele. — Mas aqui, chamem-me apenas de Baron. Por favor, fiquem a vontade! Tirem as sandálias dos pés, e deixem toda a formalidade com elas!

Os jovens se surpreenderam com tal recepção, tão simpática que os relaxou.

— Como é bom ver a mesa cheia! — comentou Baron, com um largo sorriso. — Ainda mais com convidados tão ilustres! Digam-me, meus filhos, vocês foram bem acomodados?

— Sim, senhor, obrigada. — respondeu Solenni. — E obrigada também por permitir viajar com suas tropas.

— Não há de que, Solenni. Pelo que vejo, espártacos são tão educados quanto são bons em batalha e, as espártacas, belas (as bochechas de Solenni ficaram rosa). Então, o que acharam de Arthuria?

E a partir daí uma conversa longa se desenrolou. O rei estava muito interessado no que acontecera aos regidos antes deles chegarem ali, de como era a vida de cada um (até a de Estel, mesmo que não tivesse entendido muito bem), seus gostos, medos e esperanças. Estel, Solenni e Luan sentiram-se aconchegados, quase como se estivessem em suas próprias casas, porém havia também uma ponta de desconfiança com tanta gentileza. Estavam envergonhados com esse mútuo sentimento, mas porque o rei seria tão atencioso com três completos estranhos?! Então Baron, parecendo ler isso no rosto deles, falou:

— Meus filhos, um dia minha amada Rosa veio me contar que teve um sonho. E nele estavam os Regidos de Eternia, os quais ela sabia que encontraria quando partisse. E eu disse a ela: “Filha minha, a você foi concedida tanto uma dádiva quanto uma maldição. Se seu caminho se mistura aos dessas pessoas, você levará consigo tanto as bênçãos que as cobrem quanto o peso da responsabilidade que carregam.”. E quando li a mensagem de Diamantina sabia que o sonho dela se tornara real. E que alegria a minha quando soube que viriam com ela! Fiquei ansioso para conhecer aqueles que carregam nas mãos a luz da Coroa Branca!

— Mas o senhor não tem medo de trazermos a parte da “maldição” para o seu reino? — indagou Solenni, séria.

— Não vou mentir dizendo que não, minha filha, mas vou me corrigir. Vocês não carregam essa “maldição”, ela os persegue. E vai ser assim até que Eternia esteja segura novamente. Contudo, seria covardia minha culpá-los por qualquer coisa que acontecesse aqui. Eu decidi, eu quis recebê-los em minha casa, portanto, ajudá-los-ia a carregar o fardo de vocês por quanto tempo permanecessem aqui. E é o que eu acho estar fazendo agora.

“Meus filhos, vocês desistiram de suas vidas para ganhar o mundo numa viagem que pode ser sem volta! Mas pelo Sábio-Rei que não seja assim! Mesmo que estejam fazendo isso apenas por seus interesses pessoais, ninguém tem ou terá o direito de condená-los, vocês estão se arriscando para salvar Eternia no fim das contas. E a menor coisa que se pode fazer é ajudar a tornar a vida de vocês mais feliz, despreocupada, nem que seja por um instante. No começo pode ser que as pessoas os considerem por vocês serem os Regidos de Eternia, mas depois que os conhecerem, farão por vocês serem Estel, Solenni e Luan. E perdoem aqueles que não o fizerem, eles nem imaginam a maravilhosa companhia que vocês três proporcionam.”.

Estel, Solenni e Luan emudeceram, não sabiam como reagir ao sentimento que os tomava. Era uma gratidão muito grande para se resumir num “obrigado”. Os outros quatro à mesa perceberam isso e sorriram. Kain então se levantou e disse:

— Alguém tá afim de jogar Batalhas Táticas?

— O que?! Não acredito, você joga isso?! — indagou Luan, o rosto iluminado.

— Não só eu! Esses outros aqui atrás de mim são viciados assumidos.

Estel e Solenni só foram entender a conversa momentos depois. O príncipe foi até uma das estantes e tirou de lá uma grande caixa cúbica de madeira decorada. Ele a abriu e remexeu, tirando de dentro duas outras caixas menores e, no final, transformou a maior num tabuleiro de xadrez bem grande e retangular. As casas mudavam de altura quando um botão era girado na lateral, criando uma espécie de terreno acidentado do jeito que se queria. Nas caixas menores havia inúmeras peças, mini-pessoas vestidas ou com armaduras ou vestes coloridas e armadas com arcos, lanças, espadas e cajados.

Luan explicou o tal jogo para os outros dois. Era como xadrez, mesmo, só que as peças podiam ser movidas com mais liberdade e a partida só acabava quando todo o exército inimigo era derrotado, o que queria dizer que todas as peças haviam perdido a cor e se tornado cinzentas. Elas se movimentavam sozinhas com comando de voz, seja para andarem pelo tabuleiro, seja para atacarem ou usarem magias. Cecil, Kain e Rosa contra Estel, Luan e Solenni; Baron ficaria de juiz e escolheria as regras da partida a partir uma carta que saia do tabuleiro antes da partida começar. Foi sensacional. Apesar do regidos só contarem com Luan de experiente no jogo, o outro time passou maus bocados com as idéias de Solenni, mas eles mesmo assim ganharam.

— E aí? Querem revanche? – indagou Kain, rindo.

— Não, meu filho, melhor não. – falou Baron, resoluto. — Eu não sou de ficar controlando horários, mas amanha será um dia cheio para todos. Fora que eu ainda preciso discutir algo sério com você, Rosa e Cecil sobre Mysidia. Rosa, minha querida, acompanhe Estel, Solenni e Luan até o hall. Desejo-lhes boa noite, meus filhos, foi uma noite da qual jamais me esquecerei.

Rosa ergueu-se e disse:

— Vamos então?

Kain e Cecil também se despediram, porém era notável que a expressão deles havia mudado, de repente ficaram fechadas e sérias. No caminho, Rosa falou:

— Vamos tratar agora de assuntos de guerra. Meu pai não deseja importuná-los com mais essa preocupação.

— Tudo bem. Se bem que a nossa "única" preocupação é nos mantermos vivos. — respondeu Estel. — Se ele achar que precisa da nossa ajuda é só chamar.

— É claro. Obrigada e boa noite.

E Rosa saiu. A caminho de seus aposentos, Luan olhou para Estel e perguntou:

— Ei, cara, foi impressão minha ou você foi meio irônico com a Rosa?

— Mais ou menos. — disse o defensor, sério. —Não queria ser rude, mas não consegui evitar.

— Por quê?

— Porque enquanto uns nos tratam como “detentores da destruição”, outros nos acham “condenados à morte”.

— Como assim, Estel?

— O Rei Baron foi ótimo conosco e não reclamo de nada que ele fez ou disse, mas.... não sei se você notou, para mim parecia que ele estava mais com pena da gente do que realmente gentil. Me lembrou Dona Guilhermina.

— ... E...você acha isso ruim?

— Não...ruim não é a palavra... Sabe, só queria nos tratassem como pessoas “normais”, se é que me entende. Olha, tudo bem que não possamos saber sobre táticas de guerra de verdade...mas fico imaginando, se fosse outro assunto, um que pudéssemos ajudar e dizer alguma coisa sobre ele, o Rei Baron não nos deixaria ficar por não “desejar importunar a gente com mais essa preocupação”? Enquanto outras pessoas, ao invés, nos esfolariam vivos se não resolvêssemos a menor das complicações... É estranho...quando queremos ajudar as pessoas nos negam, mas se dissermos não vão nos condenar. E eu não acredito que isso vai terminar depois que salvarmos Eternia...seremos outros Vigilantes.

—...... Então o que fazemos?

– O que temos feito até agora, nos manter vivos e continuar. — respondeu Solenni, que havia ficado inexpressiva até ali. — Sei que não é fácil simplesmente ignorar o que os outros dizem, isso incomoda até a mim e bastante... Mas se deixarmos isso tomar conta de nós, não faremos nada do que queremos, realmente nos tornaremos “novos Vigilantes”. Temos que saber nos intrometer quando nos negam e esquecer quando nos condenam. Todos dizem a mesma coisa para nós: lutem pelo o que vocês acham certo, pelo o que desejam. Então vamos fazer isso, continuar fazendo isso. Não precisamos conhecer qualquer estratégia de guerra para saber e querer ajudar no meio de uma. Esqueceram Magussíria? Não foi, nem seria, a última vez que teremos de agir daquele jeito.

Estel e Luan lembraram. Solenni estava certa.




Na manhã seguinte os regidos esperavam por Rosa, Kain e Cecil no saguão de entrada. Alguns minutos e eles apareceram. Kain e Cecil de volta às suas armaduras, o primeiro com uma lança e o outro com espada e escudo. Rosa deixara as roupas de clériga para se armadurar também, levando consigo um longo arco e uma aljava recheada de flechas.

— Desculpem a demora. Vamos, tomaremos o desjejum a bordo. — falou Rosa, mesmo que os outros três não tenham entendido a expressão “a bordo”. — Ah, gostaria também que me entregassem as armaduras e as roupas com que costumam viajar, o Rei Baron quer dar um tratamento especial a elas.

Os garotos gostaram (e entenderam) a ultima frase, principalmente Estel e Solenni, cujas vestes apresentavam mais desgaste da que as de Luan. O grupo seguiu até outro elevador do pátio externo e desceu até o pavimento mais baixo de Arthuria. Andaram por um longo corredor, chegando a uma porta guardada por um soldado.

— Bom dia, Soldado Vicks. — disse Cecil, educado. — Os navios já estão prontos?

— Sim, senhor. — respondeu o outro, respeitosamente. — Bahamuts, Wyverns e Pterodracos estão apenas esperando seu comando para zarpar, senhor.

— Obrigado.

Então o soldado abriu a porta. Estel, Solenni e Luan, que até agora não haviam entendido o porquê das palavras “navios” e “zarpar”, deixaram seus queixos caírem.

Eles acabavam de entrar em um hangar gigantesco, onde vários navios modificados estavam. Estes exibiam ao mesmo tempo velas e asas, seus cascos de metal eram vermelho-escuros com muitos detalhes e na parte detrás havia turbinas onde caberia uma casa dentro facilmente. O grupo foi até o maior deles, onde o nome “Asas Escarlates – Bahamut Fígaro” brilhava. Dentro, muitos corredores, salas e compartimentos cheios de pessoas em movimento. Chegando à cabine de navegação, Cecil, Rosa e Kain falaram com todos os presentes. Cinco minutos depois o som de inúmeros trovões ressoou, as turbinas eram ligadas. O teto do hangar abriu-se em vários pontos diferentes. Cecil trocou as últimas palavras com o soldado que estava de frente para uma espécie microfone.

— Pterodracos: Tzen, Albrook, Maranda e Nikeah, permissão concedida para decolagem. — ele disse então, a voz metalizada ecoando no hangar.

Estel, Solenni e Luan observaram das janelas da cabine os quatro menores navios ganharem altura. O barulho de mais turbinas sendo ligadas encheu e remexeu o ar. O defensor lembrou-se de lanchas agigantadas quando os observou. Ao atravessarem o teto, o soldado falou de novo:

— Wyverns: Veldt, Barren e Lethe, permissão concedida para decolagem.

E os navios medianos, que lembravam cargueiros para Estel, também subiram. E pela terceira vez o soldado anunciou:

— Bahamuts: Doma, Fígaro e Vector, permissão concedida para decolagem.

Os regidos sentiram um leve tremor, dessa vez eram eles que subiam. Estel não conseguia crer que três coisas que tinham envergaduras de porta-aviões conseguiam voar. A luz do sol fazia o cenário tornar-se mais irreal e sensacional ainda. Então todos da cabine se levantaram e olharam para o oposto de onde os jovens estavam. Eles olharam na mesma direção também. Uma figura diminuta estava numa varanda do castelo real. Rei Baron. Ele fez um gesto com as mãos que Cecil traduziu em palavras de comando:

— O rei nos dá a sua benção! Que se abram as Asas Escarlates!

Os soldados voltaram para seus acentos e posições. Um barulho metálico encheu o ar, vindo de todos os navios voadores. Os regidos viram os mastros com velas se abrirem, revelando um tecido estranho, meio transparente, que brilhava em inúmeras hexagonais avermelhadas quando o sol batia nele. Então eles começaram a se movimentar. Os jovens deixaram seus olhares na figura do Rei Baron e nos enormes muros de Arthuria, perguntando-se quando os veriam de novo.





— Quanto tempo demora a viagem até Mysidia? — perguntou Estel, os olhos pregados na vastidão abaixo dele.

— Se nada nos atrasar, três dias. — respondeu Cecil, que ao contrário do outro tinha os olhos concentrados nos navios.

Ele, Estel e Solenni estavam no convés. A sensação de irrealidade ainda pairava sobre os olhos dos dois regidos observando os gigantes que voavam. Abaixo deles uma imensa planície irregular verde, com muros de rochas brancas a enfeitá-la, algumas tão altas que pareciam penhascos. Seu nome era Calimanto. Aqui e acolá se erguiam torres cinzentas que Cecil disse serem postos avançados. O defensor e a espártaca encontraram um lago onde inúmeros cavalos de pelagem azul-escura, três pares de patas, crina e rabos prateados, com alguma coisa mais clara nas costas que eles não conseguiram identificar, bebiam água. Alguns deles pareciam bem nervosos, balançando as cabeças e trotando ao redor do resto do grupo constantemente.

— Uau... — foi o que o defensor conseguiu dizer.

— Bonitos, não são? — perguntou Cecil, aproximando-se. — São Sleipinires. Não são comuns dessa planície, eles vivem no Vale Bifrost, no meio daquelas montanhas ali adiante. Soube que o vale ficou frio demais, até para eles. Tiveram de vir para cá atrás de água e comida, mas isso assinou a sentença de caça deles.

— Por quê?! — espantou-se Solenni.

— Estão vendo que as costas deles são mais claras? Aquilo é uma camada de um mineral muito raro e, conseqüentemente, cobiçado; além que as crinas e os rabos são de fios de prata de verdade. Nos filhotes tudo isso se torna mais puro. Por conta disso Calimanto encheu-se de caçadores clandestinos.

— E não se pode fazer nada por eles? — questionou Estel.

— Infelizmente não, seria necessário um contingente de soldados e caçadores de que não dispomos. A planície é enorme e cheia de lugares onde só os bandidos sabem se esconder, fora que é necessário o flagrante de que realmente estavam caçando esses animais. São homens sem escrúpulos, capazes de tudo para conseguir o que querem.

Estel e Solenni fixaram a expressão “capazes de tudo” em suas mentes, enquanto os sleipinires voltavam a correr pela Planície Calimanto.

À noite do terceiro dia, Cecil devolveu as armaduras e roupas de Estel, Solenni e Luan. Eles não conseguiram reconhecê-las. Todos os rasgos e imperfeições das vestes foram consertados e se podia jurar que entre as linhas do tecido havia linhas metálicas. O peitoral de Estel foi coberto por uma camada grossa e fosca de metal cinza-azulado, o mesmo que cobria sua braçadeira em placas sobrepostas, seu bracelete e caneleiras. O peitoral, os braceletes e as sandálias com joelheira de Solenni exibiam uma cobertura escovada de um metal branco. Luan ganhou uma cota de malha feita de mínimas argolas cinza-escuras peroladas, onde no peito e nos ombros havia placas finas sobrepostas. Tudo era tão leve e perfeito que os garotos nem sentiram a diferença ao vestir.

— Mitrilo para o defensor, diamantina temperada para a espártaca, e platina-chumbo para o magussírio. — falou Rosa, sorrindo. — Esses são os presentes que o meu pai oferece aos Regidos de Eternia. Luan...você está se sentido bem?

— Hã?! Quem?! Eu?! Ah, sim! Sim, estou...é só sono. — falou Luan, que se apoiava no cetro para não cair.

— Você está desse jeito desde o primeiro dia, parece um zumbi. Só acorda para comer. — comentou Kain, sorrindo com malícia. — Você tem medo de altura, não é?

— Não. — respondeu Solenni. — Se fosse isso, ele não teria dormido pendurado no para-peito ontem.

— Relaxem, eu tô legaaaaaaaaal... – continuou o magussírio, entre um bocejo. — Pensei que Estel e Solenni já tivessem explicado para vocês...eu passo o dia deitado, mas não dormindo. É que o velho não me deixa descansar.

E saiu, desejando boa noite a todos.

— O que ele quis dizer com aquilo? — questionou Kain, tão confuso quanto os outros dois.

— Vamos explicar. — disse Estel, rindo.


Antes de irem dormir, Estel e Solenni voltaram ao convés para ficarem um tempinho a sós. Enquanto olhavam para o céu sem lua, mas coalhado de estrelas, o defensor contou sobre o sonho que tivera na noite anterior, o que não foi nem um pouco romântico, mas falar com a espártaca acalmava. E ela sabia disso, tanto que, mesmo que não soubesse traduzi-los, ouvia com muita atenção. Havia chamas, água, pedras e vento se batendo; uma sala em preto e branco; pessoas gritando, sendo uma voz de homem bem mais forte que as outras; e no final um homem metade felino que corria.

— Bom, dessa vez, eu sei pelo menos o que significa uma parte do seu sonho. — disse ela, deixando Estel intrigado. — Conversei com Cecil, queria saber exatamente com quem ou com o que eles estavam em guerra. E ele me disse: Atmas. São espíritos naturais dessa planície que se manifestam na forma de algum dos quatro elementos.

— E por que eles estão em guerra? — questionou o defensor, mais confuso ainda.

— Isso Cecil não soube me responder. Antes os Atmas conviviam pacificamente com os mysidianos, até ensinaram a eles como manipular os elementos. Mas agora...dizem querer tirar deles o que mostraram...

Descobrir que uma parte do seu sonho tinha um sentido não deixou Estel lá muito animado, mais uma vez sonhava com coisas ruins... Só de imaginar o que poderia acontecer sentia dores na cabeça. Solenni então encostou sua testa na do defensor, tentando tirar a agonia que o incomodava.



Quando o sol mal riscou de luz o horizonte, todos já estavam de pé. Estel, Solenni e Luan permaneceram ao lado de Cecil na cabine principal, enquanto Rosa e Kain se juntavam a primeira tropa que desembarcaria.


—Por medidas de segurança, ninguém fica no lado de fora quando entramos no espaço aéreo de Mysidia. — comentou Cecil, visivelmente tenso. — Um ataque pode acontecer a qualquer momento.


Os regidos engoliram seco, até mesmo Luan, que depois de ouvir aquilo, perdeu o sono. A possibilidade de que o monstro voador em que estavam poderia ir de encontro ao chão fez a sonolência se transformar em tensão em dois segundos.

O Reino de Mysidia foi tomando forma logo abaixo deles. Um reino-jardim cortado por ruas curvas de pedras brancas com construções que lembravam mais templos, igrejas, oratórios e altares, com inúmeras e exuberantes fontes de água e pátios lotados de cascalhos vítreos e coloridos. Era como um vitral gigantesco.


— Preparar para o pouso. Formação de meia lua no lado leste. — anunciou Cecil.


A mensagem fora transmitida para os outros navios, que desceram até o chão numa formação semicircular. Ao redor do reino já havia tantos outros navios, alguns com sinais de danos (alguns deles bem assustadores), onde muitas pessoas se mexiam por dentro e por fora. Cecil deu mais algumas ordens e chamou os jovens a seguirem-no. Rosa e Kain os esperavam na saída do navio, onde muitos soldados já entravam em formação. O Bahamut Fígaro tocou o chão com uma incrível suavidade para seu tamanho titânico. Enquanto os soldados se espalhavam para cumprirem suas ordens, o grupo tomou um dos caminhos de pedras brancas que levavam ao interior de Mysidia. Lá, Estel, Solenni e Luan viram que o reino também exibia marcas da guerra, com seus muros quebrados, construções destroçadas e monumentos caídos.


— Vamos levá-los diretamente ao Sábio Efraim, falaremos sobre a litta. — falou Rosa, um tanto ansiosa. — Tenho certeza de que ele reconhecerá vocês e as suas insígnias. Queremos que o caminho de vocês esteja livre, não queremos atrasá-los.

Estel, Solenni e Luan entreolharam-se, acabavam de decidir por eles o que eles iriam fazer.

As pessoas do reino andavam apressadas e ansiosas, contudo não deixaram de olhar para os novos três transeuntes ao lado dos nobres de Arthuria. E os regidos não puderam deixar de notar os mysidianos, os quais andavam com roupas multicoloridas, leves e bastante adornadas, nem parecendo estarem no meio de um conflito, o máximo que alguns carregavam eram cetros brilhantes e bastonetes incrustados de jóias.

O grupo se dirigia a uma construção que lembrava uma igreja gótica, cheia de pontas e detalhes esculpidos na pedra. À frente dela havia um homem de meia-idade vestido de preto, branco e púrpura. Ele tentava manter a calma entre um grupo de pessoas que discutia sem parar. Mesmo de costas ele notou que se aproximavam e virou-se. Os olhares das pessoas se viraram junto com ele, o que, segundos depois disso, causou uma reação indignada e desesperada de uma delas:

— Meu Senhor Efraim! Pelo Vigilante Altíssimo!! Veja!!! É ELE!! O...O...DESGRAÇADO!!! O ASSASSINO!! O LADRÃO!!!

O dedo acusador e a voz incisiva da pessoa pesavam sobre Estel. Houve gritos e exclamações enquanto a voz raivosa do outro enchia o ar repetidas vezes. Entretanto o regido nada pode fazer para se defender, houve um lampejo branco sobre seu rosto e ele desmaiou.

. . .

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Aggra, a Xamã

Oi, gente, há quanto tempo, né?! Peço mil desculpas pelo "desaparecimento". Não queria ficar mais um dia sem colocar nada no blog e resolvi postar esse "fanart". Acabei de ler "The Shattering - Prelude to Cataclysm". Este livro faz parte da história do jogo World of Warcraft, especificamente parte dos acontecimentos que antecedem uma grande mudança no mundo do jogo. Essa é Aggra, uma das personagens que aparecem nesse livro, uma das mais legais, na verdade. Para quem não conhece e estranhar, Aggra é uma Mag'har, uma raça que existe no jogo -para quem conhece, ela é uma Orc.
Por favor, não pensem que me esqueci do livro ou da outra imagem colorida que prometi (que por sinal já está quase pronta), mas me empolguei com esse livro. Pena que ela seja curto.
Bom, é isso. Espero que vocês gostem. Até mais!

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Coroas de Eternia - O Escudo, A Espada e O Cetro

Décimo Primeiro Escrito – Maldição e liberdade



— Ainda falta muito? — indagou Estel, aflito.

— Cara, mais ou menos, pelo que a Ruivinha nos falou, vamos chegar lá no inicio da noite. — respondeu Luan, tão aflito quanto o primeiro.

A situação não estava muito boa entre os regidos. Dois dias depois dos acontecimentos no Templo do Cetro, Solenni começou a ter uma febre muito alta, fraqueza e dores nas costas. Nos pertences dela, Estel e Luan encontraram um minúsculo bicho que o magussírio notou logo ser uma quimera, uma invocação. A criatura possuía corpo de escorpião, patas de louva-deus e um rabo que na ponta, no lugar de um único ferrão, exibia quelíceras amarelas de aranha.

Luan seguiu as instruções que a irmã deixara na caixa de remédios para casos de picadas venenosas. Mas nenhum antídoto surtiu efeito completo, após algumas horas a dor e a febre voltavam.

— Por que nada funciona? — questionou Estel, impaciente.

Já era o quarto dia depois do aparecimento dos sintomas e a quarta noite que os três jovens não dormiam direito.

— Já disse, Estel, aquele bicho não era natural. — respondeu Luan, passando a mão pela cabeça. — Era uma quimera. Não faço a mínima idéia que tipo de veneno tinha naquela coisa, quem sabe seja uma mistura, ou um fabricado pela pessoa que o invocou. Temos muita sorte de estar pelo menos controlando a dor a febre.

— Mas não podemos continuar assim!

— E o que diabos você quer que eu faça?!

— Chega, os dois! — exclamou Solenni, séria, tentando disfarçar o incômodo que sentia. — Minha dor não vai passar com vocês discutindo. Há uma cidade perto daqui. Vamos para lá e decidimos o que fazer.

E foram. Estel e Luan tentaram manterem-se tão calmos quanto à própria Solenni tentava aparentar. O magussírio fez uma maca flutuante para a garota que desde aquela tarde já não conseguia mais nem ficar sentada por muito tempo. Já era o sexto dia depois do ocorrido e, no começo da noite como previsto, eles chegaram a uma cidade que ficava a leste do Rio Argênteo.

— Onde estamos? — indagou Estel.

— Em...Diamantina. — respondeu Solenni, fracamente.

— Sim, é mesmo. Já tinha ouvido falar dessa cidade, mas não imaginava que ela ficava por essas bandas. — disse Luan. — Recebemos suprimentos de metais e jóias daqui.

Estel só foi entender o comentário de Luan depois que passou pelos muros e pelos vigias (que olharam receosos para a doente e os acompanhantes). A cidade era bem grande, mas simples no sentido estrutural, com construções de madeira e pedra que chegavam ao máximo no segundo andar. Os postes de metal, com suas jóias brancas acesas, iluminavam as ruas pavimentas com seixos redondos e irregulares que, mesmo àquela hora, estavam cheias e movimentadas. Carros de todos os tamanhos (alguns deles flutuando centímetros do chão) eram carregados e descarregados a todo o momento e iam e viam sem parar, assim como as pessoas, apressadas, carregando ferramentas de mineração como picaretas, martelos, pás e tantas outras que o defensor não identificou. Ele também não entendeu porque a grande parte delas era tão baixa e tão forte. O barulho era intenso, tanto quanto as colunas de fumaça que riscavam o céu crepuscular.

Por onde passavam os jovens arrancavam diferentes tipos de olhar, desde o admirado até o cobiçoso.

Depois de algum tempo procurando, eles encontraram uma hospedaria. Perto da porta onde o fluxo de pessoas era intenso, duas mulheres conversavam.

— Com licença, as senhoras trabalham aqui? — indagou Luan. — Precisamos de um lugar para ficar, nossa amiga está doente.

— Ô, meu filho, claro que tem lugar! — disse uma das mulheres. A mais baixa e mais velha das duas, corpo robusto e estranhamente forte para uma senhora, rosto bondoso, olhos e cabelos muito escuros numa pele morena. — Ô, pela Coroa Branca, mas como é bonita essa menina! Ô, está tão pálida! O que a pobrezinha tem?

— Foi picada por um escorpião mágico, resumindo a história. — falou Estel.

— Escorpião mágico?! Ô, não entendo dessas coisas, se fosse um casca-roxa, ou patadaga eu até saberia o que fazer. — lamentou-se a senhora. Ela virou para a outra mulher. — Ô, Rosa, minha querida, você pode ajudá-los?

— Claro, se assim eles quiserem. — respondeu ela, que aparentava ter a mesma idade de Nívea. Alta, cabelos claros ondulados, e olhos de um azul suave. Lembrava Magnus no modo de se vestir, tendo até a jóia na testa, mas suas cores eram a verde e a branca. — Mas, primeiro, vamos acomodá-la, sim?

— Ô, é claro! Por favor, meus filhos, me acompanhem. — falou a senhora que, para a surpresa do defensor e do magussírio, colocou Solenni nos braços como se ela fosse uma pluma.

Lá dentro, mais movimento, barulho e fumaça. O movimento de pessoas andando de uma mesa para outra, o barulho delas conversando, xingando e cantando, e a fumaça que saía de seus inúmeros cachimbos.

— Guilhermina, minha doçura, venha pra cá! — gritou um dos clientes, as faces escarlates, agitando para todos os lados uma caneca que mais lembrava um balde. — E traga essas delícias que estão com você! A loirinha e a caidinha aí! Conheço um jeito ótimo de levantá-la!

— Cale essa sua boca imunda, Ferraço!! — exclamou a senhora, antes que Estel e Luan esboçassem qualquer reação. — Vá trabalhar seu anão vagabundo!! — depois ela se virou para os dois jovens. — Ô, meus filhos, desculpa, vocês não precisavam ouvir isso! Por mim aquele porco nunca mais entrava aqui, mas meus empregados têm medo dele...

— Tudo bem, tia...Guilhermina, né? Só pelo “vagabundo” já valeu! Aquele cara vai ficar uma semana em depressão e outra trabalhando tanto que nem vai parar para piscar. — respondeu Luan, rindo. Ele virou-se para Estel. — Não existe ofensa pior para um anão que chamá-lo de vagabundo.

Estel fez “hum rum” apenas por reflexo. Além da indignação que estava pelo comentário dito, estava também admirado de estar no meio de anões de verdade, como os das histórias: com grandes barbas e narizes, olhos atrevidos e feições rústicas. Só que ele não se lembrava de eles serem tão mal-educados assim...

— Pronto, este é o quarto mais tranqüilo da hospedaria, e o mais seguro também. — falou Guilhermina, colocando Solenni na cama. — Rosa, agora é com você, filha.

Rosa então, vendo o movimento de afirmação dos outros dois, sentou-se na cama e olhou algum tempo para a expressão sofrida da espártaca. Em seguida pôs sua mão esquerda sobre a testa, no local do coração, no estômago e, por último, no ventre da paciente.

— Preciso fazer um exame mais detalhado. — disse a mulher num tom sério que preocupou Estel e Luan. — Podem dar-nos licença?

Eles, então, saíram. Sentaram-se no banco que ficava ao lado da porta do aposento e esperaram. Esperaram.

— Ei, cara, relaxa, vai ficar tudo bem com a Ruivinha. — falou Luan, depois de uma meia hora de silêncio pesado, agoniado com a expressão fechada de Estel. — Aquela mulher, a Rosa, se não me engano ela é uma clériga, como o Magnus. São magos especialistas em magias curativas, medicina e coisas do tipo. Ela vai cuidar bem da Solenni.

— Tudo bem, acredito, mas o problema não é esse. — respondeu Estel, sério. Luan notou que o olhar do amigo estava distante, contemplativo. — O fato é que tem alguém atrás da gente... Não...atrás da Solenni.

— Como assim...?!

Foi quando a porta do quarto se abriu, revelando uma Guilhermina triste, de olhos vermelhos e lacrimosos.

— Ô, meus queridos, podem entrar agora. — disse ela.

Os garotos não gostaram da expressão da senhora, muito menos da de Rosa quando entraram no aposento. Séria e muito pálida, como de alguém que acabara de fazer um esforço muito grande, estando na eminência de um desmaio.

No criado-mudo havia uma tigela contendo um liquido branco-perolado muito brilhante. Na cama, uma Solenni deitada de bruços com as costas descobertas, dormindo suavemente como há dias não o fazia. Estel aproximou-se e apertou os olhos, havia manchas negras nas costas da espártaca, manchas que, lentamente, mexiam-se, expandiam-se. Por cima delas, um conjunto circular de várias letras estranhas na mesma cor que o líquido da tigela.

— O que é isso? — perguntou o defensor, tenso.

— Um selo contra invocação de demônios...! — respondeu Luan, horrorizado.

— Você conhece? — indagou Rosa. — Então sabia o que estava acontecendo?

— Pelo Sábio-Rei, não!! Não imaginava que a coisa era tão séria!!

— Alguém pode me explicar o que está havendo?! — exclamou Estel, confuso.

— Como vocês se chamam? — indagou Rosa.

— Estel.

— Luan.

— Vocês disseram que ela foi picada por um escorpião mágico, não foi? — continuou a clériga. — Como ele era?

— Ah, falamos isso apenas para resumir a historia. — respondeu o magussírio. — Na verdade era uma quimera, uma invocação. Era um escorpião preto, com garras de louva-deus e ferrão amarelo em forma de boca de aranha.

— Isso explica muita coisa. E reforça meu diagnóstico. Conheço todas as criaturas que fazem parte dessa quimera, mas, pelos sintomas da sua amiga, o que está nela não é nenhum dos venenos desses animais ou qualquer outro tipo de substância venenosa. — concluiu Rosa. — Essa jovem teve duas magias injetadas nela, uma invocação e uma maldição.

— O que?! — exclamou Estel, mais confuso ainda.

— Quer dizer que naquele bicho...tinha...mas é impossível! Não se pode colocar várias magias dentro de outra como se fosse um brinquedo de encaixe...!! — indignou-se Luan, andando de um lado para outro visivelmente perturbado.

— Concordo, mas por algum motivo sinistro a pessoa, seja ela quem for ou o que for, conseguiu. — falou Rosa, séria.

— Sim, mas o que isso quer dizer?! — questionou o defensor, agoniado. — O que vai acontecer?!

— Veja, Estel, como o Luan falou, este selo que desenhei impede, por um período de tempo, que um demônio, uma criatura maligna, seja invocado. — disse a outra, o mais calmamente possível. — E é isso que está acontecendo à sua amiga agora, uma criatura está sendo invocada de dentro do corpo dela. Só que, para que uma invocação aconteça é necessária grande quantidade de energia e, como a pessoa que começou a magia não está aqui para alimentá-la até que se complete, ela lançou também uma maldição que suga aos poucos toda a energia vital. Resumindo, essa pessoa está usando as forças da amiga de vocês para invocar um demônio. Se ela continuasse sem essa proteção por mais três dias, não haveria mais nada o que fazer...

Um silêncio atormentador concluiu a explicação de Rosa. Estel o quebrou para perguntar:

— Você falou... por um período de tempo... Como assim? Você não consegue desfazer isso?

— Infelizmente não... — respondeu Rosa, cabisbaixa. — Vêem a tigela com aquela água? É o reflexo da alma dela, ainda está imaculado, completamente branco, o que é surpreendente, julgando pelo estado avançado da maldição. Contudo apenas por enquanto...se a maldição não for desfeita dentro de quatro dias, que é o tempo que dura meu selo, a invocação vai se completar.

— E o que se pode fazer para quebrar essa maldição? — indagou o magussírio, tenso.

Rosa olhou para Solenni e para os outros dois respirando fundo muito tristemente. Os garotos não gostaram daquela reação.

— Só há um jeito. Trata-se de magias muito avançadas, profundamente maléficas e que são intimamente ligadas a quem as fez. Tem de se...destruir o executor dela.

Luan esfregou as mãos no rosto e falou um palavrão. Olhou para Estel. As mãos do defensor estavam tão fechadas que logo ficaram vermelhas. As costas, curvas de tensão. A expressão fechada, raivosa. Os olhos dele exibiam uma fina aura dourada...davam medo. Parecia que estava prestes a explodir...porém a única coisa que fez foi caminhar até a cama para se sentar ao lado de Solenni.

— Ela vai acordar? — perguntou Estel, com voz baixa.

— Não, até que a maldição ou meu selo sejam quebrados. — respondeu Rosa.

— Não existe mesmo outro jeito de desfazer essa coisa?

— Infelizmente, não...

— Luan...se você quiser ir dormir, cara, pode ir.

— De jeito nenhum, eu também vou ficar aqui com vocês. — disse o magussírio, resoluto.

— Vou descer e trazer um pouco de janta para vocês... — anunciou Guilhermina, depois de todo esse tempo de choro silencioso. — Pela Coroa Branca, quem poderia fazer algo tão ruim assim? O que vocês fizeram para merecer isso...?

— Nada não, somos só os Regidos de Eternia...bobagem... — ironizou Luan, jogando-se numa cadeira.

Rosa apontou para as bagagens dos jovens e Guilhermina notou as armas recostadas, mas não entendeu muito bem. Ela soluçou mais um pouco e saiu com a clériga.

Estel tirou alguns fios de cabelo que cobriam o rosto de Solenni enquanto dizia para si mesmo um ditado que aprenderacom Mestre Leônidas:

— Se ferirem sua face, atente, você terá duas escolhas: esquecer...ou revidar.




Estava descendo corredores rochosos com cristais de todas as cores brotando do chão e linhas de metais cobrindo as paredes.

— “Que lugar é esse?” — indagou-se.

— “Esta tem sido minha casa desde muito antes de você nascer, regido.” — respondeu uma voz grave e poderosa. — “Mas fui posto aqui justamente para esperar a sua vinda.”

— “Quem é você?”

— “Tepúc Amaru. Soberano da Terra. Um dos Dragões-Totem de Eternia.”

— O QUE?!

Luan acordou dum pulo, assustado, e assustando Estel também.

— O que foi isso, doido?! — exclamou Estel, entre dentes.

— Ô, Estel, desculpa...mas é que...acabei de sonhar! — respondeu o outro, agitado. — Tem um dragão aqui, cara, um dos dragões que Magnus falou!

— O que?!!

— É! Tepúc Amaru.

— E...você sabe onde exatamente ele está?!

— Numa mina....uma que é abandonada...

— Como você sabe disso?! Tinha no sonho também?!

— Não, isso que eu disse pipocou agora na minha cabeça.

— ...o que vamos fazer?

— Eu não sei...mas vou dar um jeito, não posso simplesmente ignorar o que sonhei. Tepúc Amaru é um dragão, Estel, e dragões eram as criaturas mágicas mais poderosas que já existiram! Ele pode ajudar a Solenni, tenho certeza! Tenho que falar com a Tia Guilhermina, ela deve saber onde fica essa mina!

— Calma, tá todo mundo dormindo já. É melhor esperar pela manhã, melhor não chamara a atenção de uma hospedaria inteira perguntando “onde achamos um dragão por aqui?”. Quando você descobrir alguma coisa, vamos atrás desse bicho aí de nome estranho.

— É tem razão...mas não é melhor você ficar com a Ruivinha?

— Verdade, mas também não posso deixar você tentar resolver um pepino desses, sozinho. Sabe-se lá o que vai ter nessa mina, você pode precisar de ajuda. Pedimos para a Rosa cuidar da Solenni enquanto isso.

— Certo. Valeu, Estel!

O magussírio voltou para sua cadeira e refletiu sobre o sonho até cair no sono de novo. Estel voltou para o lado de Solenni. Estava triturado de cansaço, contudo só de olhar aquelas manchas negras a vontade de dormir lhe fugia. Virou o rosto rapidamente para o recipiente com água, que continuava a ondular suavemente em branco. Jurava ter visto reflexos negros e dourados na superfície... devia ser o cansaço e a preocupação...





Tomando café na grande cozinha da hospedaria, Luan não parava de pensar no sonho, o qual tivera mais uma vez naquela outra horinha de sono. O sol começava a entrar pela janela do cômodo, tingindo-o de luz.

— Ô, meu filho, o que foi? — perguntou Guilhermina, trazendo consigo um número impressionante de bandejas. — Está com uma cara tão séria, tão pensativa...

— É...por causa da Ruivinha...a nossa amiga. — respondeu o outro, coçando a cabeça. — Dona Guilhermina...me diz uma coisa...onde ficam as minas daqui?

— Depende, meu filho, a gente tem 20 delas espalhadas pela cidade.

— E...tem muita gente trabalhando nelas?

— Ô, sim! Considerando que vivemos de minerar, e que metade da cidade é de anões ou meio-anões que não conseguem passar muito tempo longe de uma picareta ou de um martelo... a não ser o porco do Ferraço, que mais bebe que trabalha...

— E...não tem nenhuma que foi...abandonada?

— Não, claro que não! Nunca deixamos minas sem funcionamento. Se elas não podem mais funcionar, nós a aterramos de novo.

Luan quase cospiu café na mesa. Dona Guilhermina se assustou e Luan fingiu rapidamente um engasgo.

— Ô, meu filho cuidado! — disse a senhora. — Mas porque está perguntando isso, menino?

— Ah! Nada! Curiosidade....

A senhora olhou-o como uma mãe que já desconfia da próxima traquinagem do filho. Luan concentrou-se na sua caneca de café para evitar aquele olhar. Guilhermina deu um breve suspiro e disse:

— Olha lá o que você vai fazer, hein, menino... Vou levar alguma coisa para o seu amigo comer, ele mal tocou no jantar e não pregou os olhos. Está tão abatido, ele...

E saiu falando consigo mesma. Luan colocou a caneca na mesa e falou:

— Pode sair, Rosa.

A clériga entrou na cozinha por outra porta, surpresa. Perguntou:

— Como conseguiu saber que era eu?

— Não sei. — respondeu Luan, dando de ombros. — Senti um cheiro muito doce e de repente sua imagem me veio a cabeça...você atrás dessa porta ouvindo minha conversa com a Dona Guilhermina.

— Desculpe-me, não pude evitar. Mas isso foi incrível...mesmo alguém muito habilidoso em magia não tem tanta precisão em perceber pessoas como você o fez agora...

— É...foi tão incrível que não serve de nada para ajuda a Ruivinha...

— Não se cobre por algo que você não pode controlar. Ainda mais porque agora virá algo muito difícil para você.

— Do que está falando? Está dizendo isso por causa da conversa?

— Também, eu diria.

— ...?

— Eu sonhei com um dragão e com vocês três.

— O que?! Quando?!

— Uma vez antes de vir para Diamantina, outra quando dormi aqui a primeira noite e a terceira vez ontem.

— Você sabia de nós e não disse nada?

— Desculpe-me, precisava ter certeza...nos sonhos eu não os via claramente, nem a voz me revelou seus nomes. Só disse que viriam e que eu ajudasse o magussírio a encontrar o Soberano da Terra.

— ...

— Então, posso acompanhá-lo? Ajudarei no que puder.

— Certo, mas não fale nada com o Estel, é melhor ele ficar com a Solenni. Você sabe de alguma mina abandonada na cidade, uma que não tenha sido soterrada?

— Sim. Guilhermina se esqueceu de mencionar uma vigésima primeira que foi fechada, mas não completamente.

— Por quê?

— Bem, disseram que apesar de muito rica, a mina era muito instável. Tremores de terra, deslizamentos, rachaduras...sinais considerados de mau agouro para um anão. Ela era tão insegura que os mineradores não conseguiram fazer os procedimentos de aterragem.

— Ah!...pela Coroa Branca, porque as coisas mais poderosas do mundo tendem a serem escondidas nos lugares mais inapropriados...?

— Para ver se os que vão atrás delas realmente as merecem.

— Se isso era para me “encorajar”, não deu certo.

— Tudo bem, no fim eu sei que você vai conseguir mesmo. Você se importa muito com sua amiga, vai fazer o que for preciso para ajuda-la.

— É verdade... Dona Guilhermina não vai desconfiar de nada?

— Não, ela sabe que tenho negócios a tratar aqui, vai pensar que o levei comigo para se distrair.

— É, de certa forma...

— Tem certeza de que não vai avisar Estel?

— Sim. Vamos.




“Não se separem.”

“A benção da Coroa Branca está sobre vocês, lhes protegerá.”

“Não deixem que ela se quebre, não se separem.”

“Não se separem.”



“Foi isso que disseram para nós.”




— Estel. Estel, acorde!

O defensor, que se sentara numa cadeira próxima para tirar um cochilo, levantou o olhar para quem o chamava.

— Hãã...oi, Rosa. — falou, com a voz engrolada de sono. — Acabei desmaiando aqui mesmo...

— Não é para menos. — disse Rosa. — Precisa descansar um pouco Estel. Eu trouxe café, aceita?

— Sim. Onde está Dona Guilhermina e Luan? — perguntou.

— Guilhermina está cuidando do café dos hóspedes lá embaixo. — respondeu a outra. — Mas o Luan...não o vi ainda hoje.


Não se separem. Foi isso que disseram para nós.”



O pensamento estalou na mente de Estel que se arrepiou da cabeça aos pés. A imagem de Luan descendo uma espécie de caverna surgiu ante seus olhos, seguida da de uma sombra com riscos de chamas corpo.

— Estel, está tudo bem? Você ficou pálido de repente. — comentou Rosa. Tinha algo de estranho na voz dela....estava feliz. — Deixe que eu cuido de Solenni.

Estel sentiu um segundo arrepio, esse tão forte que o fez pular da cadeira. Como ela sabia o nome de Solenni?! Tinha certeza de que não comentara com nenhuma das duas mulheres! Mas o mundo começou a rodar, a ficar escuro e ele desmaiou.




Evitando as ruas principais e as de muito movimento, Rosa e Luan iam para a ala sul da cidade, bem próximo de onde o segundo havia chegado horas atrás. Passavam rapidamente por armazéns, ferrarias, depósitos e garagens. O magussírio sentia-se desconfortável, se esgueirando de tudo e de todos como se fosse um ladrão; ele olhou para Rosa, vendo um semblante sério e concentrado. Ela realmente estava determinada a fazer aquilo, pensava Luan, admirado e agradecido, pois a idéia de ir sozinho lhe causava calafrios.

— Rosa, tem certeza de que não seremos seguidos? Alguém pode desconfiar. — indagou o magussírio, tenso.

— Certeza eu não tenho, mas estou fazendo o possível para isso não acontecer. — respondeu a outra. — Vamos por ali, é uma série de casas abandonadas, vão nos esconder por essa parte do caminho.

Eles esperaram que três carros flutuantes passassem, para seguirem até as casas desocupadas. Descobriram então o motivo do abandono: elas ficavam ao lado de uma grande carvoaria. Contudo, apesar do sufoco e da pouca visibilidade por conta da fumaça preta que invadia o lugar, os dois tiraram vantagem disso para continuarem a caminhada furtiva. As pessoas que trabalhavam ali não tinham expressões muito felizes e estavam concentradas demais em acabar logo o serviço ingrato para notar quem quer que fosse.

Depois da carvoaria seguia-se uma área de pedras, de todos os tamanhos, sendo cortadas e lixadas em variados formatos. Ali foi mais difícil manter-se oculto, a pedreira formava um labirinto, e várias vezes Rosa e Luan se perderam ou quase trombavam com alguém.

— Corra para aquele ferro-velho! — pediu Rosa. — Estarei logo atrás de você.

Luan seguiu a ordem e, como louco, correu na direção das carcaças de metal, separadas de onde eles estavam por alguns metros perigosos de passagem livre. Atrás do metal retorcido, o magussírio voltou seu olhar para procurar por Rosa. Assustou-se. Um homem com um carrinho de mão atravessava a passagem que a clériga acabava de entrar também. Ele a viu e logo começou a questionar o que ela fazia ali. Rosa, sem saída, ergueu a mão e lançou um jorro de luz branca no rosto do homem, que não teve outra reação a não ser cair ao chão.

— O que você fez com aquele cara? — indagou Luan, recuperando-se do susto.

— Eu o pus para dormir. — respondeu Rosa, respirando fundo. — Não tive escolha. Em algumas horas ele vai acordar e nem vai lembrar o que viu. Vamos, estamos quase lá.

Enquanto Rosa e Luan adentravam o ferro-velho, um anão encontrou o homem caído no chão. Tentou acordá-lo, sacudiu-o e nada. Chamou outro trabalhador para examiná-lo. Este se assustou e disse que o homem estava morto.


— Veja, ali está. — indicou Rosa, um círculo de carcaças de carro.

Atrás dele, um alçapão trancado com correntes e coberto com pedras.

— Agora começa o trabalho pesado. — suspirou Luan, apontando o cetro para os escombros.

Dez minutos depois o alçapão estava aberto, mostrando uma rampa de pedra que se desfazia num fundo escuro.

— Hum! Bem convidativo... — comentou o regido.

— Melhor fecharmos a passagem quando entrarmos. — disse Rosa, olhando ao redor constantemente. — É mais uma segurança para não sermos seguidos.

— Não vamos morrer sufocados?

— Não. Ao construir uma mina os anões podem até fazer apenas uma entrada de pessoas, mas nunca se esquecem de fazer milhares das de ar.

Luan ergueu o cetro e logo a jóia da ponta iluminou-se de branco. Rosa fez algo parecido, sendo que segurava sua luz na própria mão. Eles entraram e com alguns movimentos trancaram o portão com correntes, fechando a passagem.

A área iluminada que produziam mostrava um corredor de pedra com sustentações de madeira velha e carcomida, quebrada em várias partes. Teias de aranha disputavam espaço no teto com lanternas enferrujadas. As paredes exibiam muitas partes rachadas, mas também partes intactas e talhadas, tudo confirmando que um dia o local foi usado.

Luan agora, juntamente com a tensão de estar fazendo algo ilícito, sentia uma estranha sensação de familiaridade...aquele era o lugar do seu sonho. Ele esperava que fosse um bom sinal.

A caminhada dos dois iniciou-se lenta e assustada. A rampa de pedra era ruim de andar, coberta de pedregulhos. Depois dela o chão aplainou-se e o corredor alargou-se, contudo não ficou mais firme estruturalmente falando, dividindo-se numa linha reta e uma curva para a esquerda. Nesta havia trilhos no chão, tão velhos e desgastados quanto os suportes do teto.

— Luan, o que vamos fazer agora depende de você. — falou Rosa, sinceramente. — Esta é uma entrada secundária da mina, pelo que vejo, um tipo de atalho para se chegar mais rápido ao centro na escavação, mas existem vários como esse, o que quer dizer que entramos em um gigantesco labirinto.

Luan nem precisou pensar muito para perceber o quão arriscado era aquela expedição baseada num sonho. Ele olhou para os dois caminhos e respirou fundo, não queria passar o resto da vida perdido ali. De repente, começou a sentir uma vibração sob os pés e, com o susto que aquilo lhe causara, apoiou-se na parede, sentindo a mesma vibração entrar pela sua mão e chegar até o ombro.

— Luan, o que houve? Algum problema? — indagou Rosa apreensiva.

— Eu...estou sentindo a terra mexer, sei lá...onde eu encosto, sinto uma vibração. — respondeu o magussírio, olhando para as mãos e para as paredes.

— Deve ser algum tipo de sinal, a caverna deve estar lhe falando para onde deve você ir.

— Como você sabe?

— Primeiro, porque eu não estou sentindo nada disso; segundo, quem precisa de verdade achar o dragão aqui é você. Para quem acha que mostrariam o caminho?

Luan achou o argumento bem válido. Voltou a encostar as mãos nas paredes e a sentir a vibração. Ela ficava mais intensa quando ele continuava em linha reta, a terra praticamente estava empurrando seus pés.

Alguns minutos de caminhada começaram a revelar sinais significativos que o jovem estava chegando ao objetivo. Fios de cristais de rocha estampando as paredes e a sensação de familiaridade crescendo cada vez mais. Porém, junto com o barulho de pedras sendo pisadas, Luan e Rosa escutavam ao longe um chiado agudo.

— Que som é esse? Esse chiado? — questionou Luan. — Você está ouvindo, não é?

— Sim, e eu sei o que é. — respondeu Rosa, tensa. — Se você puder se apressar será ótimo para nós. Essa caverna ficou vazia de pessoas, mas só delas.

— Outro ótimo argumento.





Estel abriu os olhos, assustado. Tudo à volta estava rodando, sentiu-se nauseado, o corpo dormente e mole.

Ele, pelo menos, achava-se no quarto. O que havia acontecido? Teria sido por conta da noite mal dormida? Não...já tinha passado noites em claro e nunca tinha ficado tão mal. A única coisa de que se lembrava era de ter tomado um gole de café e, em seguida, caído ao chão...Rosa havia trago a bebida para ele... Virou o rosto em direção a cama....Vazia.

Solenni!

Um choque percorreu todo o corpo do defensor, acordando-o de vez. Levantou-se dum pulo. Outro choque. Respiração ofegante, peito dolorido, a cabeça a mil por hora. Tinha que fazer alguma coisa. Elas não poderiam ter simplesmente sumido. Não tinha muito tempo. A água da bacia era uma mistura medonha de branco e negro.





— Corra, Luan! Mais rápido!! — exclamou a clériga, ofegante.

— Estou tentando!! — gritou o outro. — ESTOU TENTANDO!

Luan e Rosa corriam enlouquecidos pelos corredores de pedra. O som que antes os perseguia agora tomara forma, uma forma horrível. Uma minhoca gigante, de pele asquerosa, leitosa e melada de alguma coisa pior ainda; não possuía olhos, mas boca até demais, sendo três círculos de dentes que abriam e fechavam sem parar, fazendo o chiado irritante.

O verme aparecera de repente, quase derrubando uma parede em cima deles. Além disso, por conta da necessidade da fuga, Luan não pode mais se concentrar nas paredes, perdendo-se sem a possibilidade de volta, pois a passagem fora bloqueada.

— O que a gente vai fazer?! — indagou Luan, desesperado.

Os dois que corriam estancaram. Haviam chegado num corredor repleto de vagões empilhados que quase obstruíam a passagem. A clériga jogou sua esfera de luz mais a frente, revelando um buraco no meio da pilha.

— Continue, continue, tem uma passagem ali! — pediu Rosa.

Se a perseguição já estava apertada, agora se tornara mortalmente colada. Subir, desviar e atravessar destroços de madeira e metal era complicado e machucava. O verme não parecia sofrer a mesma coisa, tudo era triturado por seus dentes. Ele, então, levantou o corpo gigante e começou a se debater contra as paredes, fazendo tudo tremer, principalmente as pilhas de vagões.

— Vai, Luan, passa por aí, você cabe! Vai logo! — mandou Rosa.

— Como assim?! Mas e você?! — retrucou o magussírio.

— Esse espaço é muito pequeno e com toda essa movimentação vai ficar mais apertado! Vai logo antes que tudo caia!! Passa LOGO, pelo Sábio-Rei!

O mostro debateu-se com mais força, fazendo alguns vagões caírem, encurralando mais os outros dois.

— O que você está esperando!? — exclamou Rosa, nervosa. — Você é quem precisa continuar!

E jogou o regido dentro da passagem, que continuou sem mais hesitação. Ele virou-se e viu que a outra já tentava entrar na passagem apesar do aperto. Contudo, a minhoca deu mais um encontrão, dessa vez contra o chão. O que estava, por algum milagre, mantendo-se sustentado ainda, desabou de vez. O estrondo e a fumaça encheram o corredor, pedras começaram a cair e Luan teve que correr novamente. Seguiu assim até chegar numa dobra do caminho, no qual se jogou para não ser esmagado pela chuva de rochas e madeira.

Descobriu a cabeça quando o silêncio retornou, apenas para perceber que estava sozinho no escuro.





Estel desceu as escadas da hospedaria ainda tonto e assustado. E a sensação aumentou mais ainda quando viu o lugar vazio e fechado. Rosa havia mentido? O que diabos estava havendo?! Será que ela era quem estava esse tempo todo atrás deles?! Onde estava Dona Guilhermina?! O que Rosa queria com Solenni?!

O clima do local estava tão pesado quando as costas do defensor, que não sabia se procurava por alguém ali ou se corria para a cidade.

...

Dona Guilhermina que o perdoasse, ele iria atrás de Solenni.

A cidade fervilhava, não havia sinal de que havia acontecido algo de diferente. A luz do dia já ia alta, cegando-o por alguns instantes. Será que ninguém estranhou o fato da hospedaria ainda estar fechada?! Estel andava de um lado para outro alucinado. Numa das ruas que percorria, reconheceu duas pessoas que estavam no restaurante da hospedaria na noite anterior.

— Com licença. — disse o garoto, afobado. — Vocês viram Rosa, a mulher que estava com Dona Guilhermina? Ela é alta, loira, roupas brancas e verdes.

— Sim. — respondeu uma das pessoas, para satisfação de Estel. — Eu a vi bem cedo acompanhada de um jovem até parecido com ela, pele clara, loiro também... Pois é, eu os vi indo para o lado sul da cidade.

— “Luan...” — concluiu Estel, mas sem entender. Rosa havia dito que não vira Luan...e de repente saiu com ele?! Será que fora no meio tempo em que passou desacordado?! Mas se foi, o que ela fez a Solenni?!

— Foi mesmo? — falou a outra pessoa, estranhando. — Pois tenho certeza de que a vi passar uma hora atrás para o lado leste, para a área dos transportes. O carro dela estava carregado, acho que já estava de partida da cidade.

— O que?! — exclamou o defensor, aterrorizado. — Você viu se ela levava alguém?!

— Alguém, eu não sei. Mas como disse, o carro estava bem carregado...

— E onde fica esse lugar aí?! O dos transportes?! Onde?!

— Por aqui, rapaz, pode ir direto, garanto que você vai saber qual é. Mas o que houve? É tão ruim assim?

— Péssimo! Péssimo!

E Estel deu às costas as pessoas e correu alucinado. Que Luan o perdoasse, ele iria atrás de Solenni.





Luan, ainda acuado no esconderijo que achara, encontrava-se num frenesi interior atordoante. Os sons de madeira e metal se triturando, os chiados agudos do verme enquanto ele se debatia nas paredes, Rosa sendo coberta pelos destroços e pelas pedras, tudo se misturava loucamente na sua cabeça, fora a sensação de que estava completamente só. Ele tinha que encontrar o dragão, mas mal conseguia se mexer...

— “Acalme-se, garoto”. — ribombou uma voz, a qual Luan reconheceu no mesmo instante, nas paredes de rocha. — “Escute a voz de Tepúc Amaru e venha ao meu encontro! Tire-me dessa dormência secular! Eu quero ver a Lua novamente!”.

O magussírio deixou-se levar pelo pedido veemente que ouvira, erguendo-se e seguindo os comandos que a voz lhe ditava. Mais uma vez a terra voltou a lhe empurrar, a vibrar sob suas mãos e pés.

Vira, desce, sobe...após algum tempo que Luan não contou, ele desistiu de decorar o caminho que seguia. Num dos corredores que entrou, a luz do cetro encontrou mais cristais, que agora saiam do chão como lanças coloridas, e fios metálicos desenhando o teto. O cenário do seu sonho era aquele, tornara-se definitivamente real. O ar estava se preenchendo com uma presença muito poderosa.

— Pelo Sábio-Rei...!! — admirou-se Luan.

O regido esqueceu-se de tudo que embaralhava sua mente e a dor no corpo ao ver onde chegara. Um gigantesco fosso ovalado com escadas de pedra que espiralavam até o fundo. A luz do cetro tornara-se inútil ante aos cristais que se amontoavam no teto, brilhando como estrelas. Vagões e ferramentas de mineração abandonados ali e acolá diziam que o local não fora de escavação e exploração, mas sim de escultura. Espirais quadradas, retângulos, triângulos e detalhes retilíneos estavam nas paredes juntamente com mais cristais e metais trabalhados.

—“Deixe para apreciar minha casa depois, garoto!” — exclamou a voz de Tepúc, grave e apressada. — “Venha até aqui! Liberte-me da maldição do estático!”.





Estel encontrava-se na parte mais caótica de Diamantina, cheia de carros flutuantes e normais, pessoas, cargas e máquinas. Havia pouco espaço e muito barulho.

Mais a frente os muros da cidade eram divididos em nove portões por onde os transportes saíam. No quinto, um tumulto. O sentiu uma fisgada de tensão no ombro. Era para lá que devia ir. Correu.

— Perdoe-me, senhorita, você não vai poder passar! Este carro não está registrado para sair hoje e pior ainda, não está no seu nome! A não ser que você se chame Oscar. — exclamou um anão, mal-humorado, olhando para os símbolos que havia na lateral do carro à sua frente. — Se quiser passar vai ter de fazer uma vistoria na bagagem e... Se não estou enganado, não é a senhorita responsável por um carregamento de diamantita e mitril que vai amanhã para Arthuria?!

— SEGUREM ESSA MULHER! — gritou Estel, rasgando a garganta de tanta raiva, tentando se desvencilhar dos guardas do local, que o seguravam. O defensor entrara tão desembestado pelas pessoas e pelos carros que chamou a atenção (e a revolta) de muita gente. — Cadê a Solenni, Rosa?! E o Luan?! O QUE VOCÊ FEZ?!

A cúpula de luz verde apareceu sobre Estel, só por alguns segundos, mas o suficiente para empurrar as pessoas ao seu redor, causando um dominó humano. Ele nunca quis causar isso e ficou constrangido. Com tal distração, Rosa bateu no painel do veículo, fazendo-o disparar, quebrando as cancelas de ferro que o isolavam. O anão que a interrogava apertou imediatamente alguma coisa em sua cabine, fazendo cordas de metal saírem do chão e se engancharem no carro. Com o baque, coisas foram jogadas para fora, descobrindo um amontoado de panos. Um braço e cabelos vermelhos penderam sobre as laterais.

— SOLENNI! — exclamou Estel, indo em direção ao carro, enquanto as pessoas gritavam de susto.

Rosa virou-se, o rosto irreconhecível de raiva. Ela ergueu as mãos e as apontou para as cordas e para o defensor, então fogo branco jorrou.

Sxildo Verda! — gritou o defensor, erguendo o escudo.

As pessoas entraram em pânico, mesmo que nenhuma delas tenha sido atingida, protegidas por uma cúpula de vidro verde. O carro, aproveitando-se disso e já livre das cordas, acelerou e fugiu.

— Segurem aquele carro!!! — berrou Estel, agoniado.

— Alerta de quebra de segurança número dez! EU DISSE DEZ! Transporte com carga humana em alta velocidade!! — esbravejou o anão através de um megafone. — Caçadores a postos! Repito, caçadores a postos! AGORA!!

Nos instantes seguintes pessoas vestindo capas azuis subiram nos muros. Carregavam duas armas de fogo cada uma. Elas se posicionaram, miraram e começaram a atirar.

— Ei, eles não vão acertar a pessoa errada com tantos tiros?! — indagou Estel.

— Aqueles dali?! Duvido, filho. — respondeu o anão, tenso. — Mas eles vão parar aquele carro não importa como.

— Mas...!

— Preparem uma patrulha para resgate. — o anão voltou a gritar no megafone. — E, pelo amor do Sábio-Rei, levem esse moleque daqui do portão cinco, ele não para de me encher o saco!

Logo o transporte chegou e disparou em perseguição ao que saíra. Mas ele estava muito longe, muito rápido, os tiros dos caçadores não causaram nada a ele para espanto de todos. Rosa estava fugindo!





Luan, depois de descer as escadarias, parou diante de um pátio circular com uma ligação para uma parede sem portal ou sinal de abertura. Nesta, estava esculpido o desenho de uma lua em quarto minguante que exibia ao redor vários outros detalhes daqueles das paredes do fosso além de algumas cenas. Pessoas de túnicas e cocares louvando a lua, cantando, plantando, dançando, convivendo com outras pessoas. Cenas comuns, de pessoas comuns; bem diferente do que Luan imaginaria na casa de uma quase divindade.

— E agora, o que eu faço? — indagou o magussírio, que só obteve como resposta sua própria voz ecoando. — Ah, maravilha...você tinha que se calar na hora mais difícil, né?! Olha, nem sei por que eu fui ouvir você, até agora só me fez passar mal bocados e...

E o regido não percebeu, mas, durante seu desabafo frustrado, esmurrou a grande lua minguante. Imediatamente ela girou e um grande pedaço redondo de parede caiu ao chão, mostrando uma passagem.

Luan não pensou duas vezes e entrou, estava doido para xingar a cara desse tal Tepúc Amaru, não importava o que ele fosse!

Logo após a entrada havia um simples salão retangular com colunas coberto de cima a baixo com todo tipo de planta, cristais e veios de metal; no teto, a mesma lua minguante do lado de fora esculpida em baixo relevo; ao fundo, um cristal verde esculpido em forma de torre, que iluminava o aposento com sua aura. Todo o ar ali era preenchido com cheiro de madeira, terra, flores e frutas. Luan sentiu-se completo, renovado, saciado.

— Então...é você?! — indagou o magussírio, estranhando o que achara dentro do cristal.

Um homem. Mediano em altura, musculoso, pele morena. O rosto, de expressão severa, exibia rugas da meia-idade e barba negra com tranças onde argolas de metal pendiam no final. Vestia-se de verde, marrom e ocre, além de belas sandálias de couro. Nos braços descobertos, pulseiras grossas de cristal verde-escuro. E apesar da aparência nobre, o que mais chamava atenção na figura do adormecido era que a metade esquerda do corpo dele era completamente coberta por desenhos em preto, iguais aos ornamentos das paredes do fosso.

— “Finalmente!” — exclamou o homem, sem mexer a boca. — “Pensei que não chegaria nunca! Aquela tranca é a coisa mais fácil do mundo de se desfazer por isso não disse nada. Não precisava ter esmurrado a parede...”.

— O que?! Tranca?! Olha, eu não sabia nada daquilo ali fora, isso não lhe dá o direito de reclamar, velho! — reclamou Luan, indignado. — Você sabia que uma pessoa morreu, MORREU, por minha causa?!

— “Morreu? Você tem certeza?”.

— Pelo amor do Sábio-Rei! É claro que...

— Não.

Luan sentiu uma pedra de gelo descer por sua espinha e o mesmo cheiro doce de logo cedo invadir suas narinas. Virou-se. Entrando no salão calmamente vinha Rosa. O mago respirou fundo, espantara-se, ela parecia não ter sequer um arranhão. Exibia um sorriso estranho, sinistro até...

— Ah, nem acredito... — disse ela, olhando fixamente para o cristal e seu conteúdo.

— Rosa...é, tá tudo bem com você? — perguntou o magussírio, inseguro. — Eu pensei que...

— Pensou o que? Que eu tivesse morrido?

— ...

— Claro que pensou, não é? Afinal, deixou-me para trás sem pestanejar, sequer tentou me ajudar a escapar.

— Ei...eu...você mesma disse que não dava! Que era uma passagem pequena! Eu vi você ficar presa nela antes daquilo tudo desabar! Eu só não fiz nada porque o teto começou a cair e...

Rosa, para o espanto de Luan, começou a rir. Uma risada desdenhosa e, por mais incrível que parecesse para os ouvidos dele, indiscutivelmente masculina.

— É tão ridículo quando uma pessoa tenta justificar sua covardia, seu medo de morrer. — disse ela, ainda agora com a voz masculina também, cheia de desdém. — Admita seus atos, covarde! Por que as pessoas mais medíocres ficam com as dádivas mais belas?

— Do que você está falando?! — exclamou Luan, confuso.

Rosa olhou para ele como se fosse o verme que os atacara antes. Ela respirou fundo, passou a mão direita pela face e ao longo do corpo. O mago arregalou os olhos e paralisou.

— Você?!! – disse.





Estel corria para todos os lados, não perdendo nada de vista. Felizmente a floresta não era densa e a luz do dia a deixava mais limpa.

Um dos caçadores da patrulha conseguira atingir o carro fugitivo, fazendo-o fumaçar e cair no chão. O grupo disparou para o local da queda, mas faltando poucos metros, Rosa ergueu-se e fez surgir um paredão de chamas brancas. Estel levantou novamente a cúpula verde e todos atravessaram. Após isso Rosa colocou Solenni nos ombros como um saco de areia. O defensor notou, agoniado, que o braço direito da espártaca estava coberto de machas negras.

— Ela está indo para aquele bosque! — gritou o defensor. — Vai tentar nos despistar!

— Ninguém se esconde dos caçadores, garoto. — respondeu o homem que dirigia o carro. Ele levou a boca algo que lembrava um telefone e continuou. — A fugitiva está se dirigindo para o bosque a leste dos muros, precisamos de reforços! Repito, precisamos de reforços, caçada eminente!!

Chegando à borda do bosque, o grupo se separou em duplas e entraram.

Passaram- se quinze minutos e nem sinal de Rosa. Estel virou-se para o motorista do carro, que mandou que ele o acompanhasse, e perguntou:

— Você tem como saber se os outros acharam alguma coisa?

— Se tivessem, já teriam avisado, mas não custa nada perguntar.

O caçador soltou um assovio longo seguido de três curtos e rápidos. Não houve resposta. Estranhando, ele fez mais uma, mais duas vezes, todas sem resultado.

— O quer dizer isso?! — perguntou Estel, impaciente. — Cuidado!!!

O regido não obteve uma resposta, pois a terra tremeu, abriu e engoliu o caçador em segundos.

— Esse foi o último.

Estel virou-se, assustado, tanto com a cena do homem sendo enterrado vivo, quanto ao ver quem estava atrás dele.





Luan encarava trêmulo e boquiaberto a pessoa a sua frente. Um homem vestido elegantemente, de pele bronzeada, cabelos ondulados firmemente presos em rabo-de-cavalo, e um rosto com olhos negros marcados com raiva, desdém e tristeza, tudo ao mesmo tempo.

O magussírio o conhecia, era amigo de seu pai. “Era” mesmo, porque “era” para ele estar morto! Ainda lembrava, quando morava com o pai, este chegando a casa anunciando o falecimento do amigo Hazaniel Charriot. Suicídio...

— Você?! Mas...como?! ...você morreu...! — exclamou Luan, em total choque.

— É, Luan, foi mais ou menos isso que aconteceu. — respondeu o homem, com sua voz baixa e grave. — Você cresceu rapaz. Como está meu estimado amigo Dimitri?

— Não fale comigo como se fosse a coisa mais normal do mundo! Como...pode estar aqui?! O que você quer?!

— Não é óbvio, meu jovem, vim tomar para mim Tepúc Amaru.

— Você só deve estar de brincadeira... Não pode fazer isso...não sem o Cetro.

— Eu não preciso dele realmente, assim como devo nenhuma satisfação para com você.

— O que você fez com a Rosa?!

— Já disse que NÃO lhe devo satisfação alguma! Agora, CALE-SE!

O homem movimentou o braço direito, o qual possuía até o cotovelo uma aparência curiosa, de vidro com um líquido branco e luminoso em seu interior. Luan foi separado do cetro e preso por correntes que brotaram do chão.

O regido remexeu-se como um louco para se soltar, tentou anular a magia, contudo falhou. Observou tenso o outro caminhar calmamente para o cristal onde Tepúc estava e observá-lo como se fosse apenas um belo jarro num canto de sala. Luan prendeu o olhar na mão de vidro de Hazaniel...não lembrava dele já a ter antes...o pai comentara que Hazaniel morrera envenenando-se...

Com um estalo incômodo, lembrou-se do que Estel lhe falara: “o último que tentou alguma coisa contra ela teve a mão decepada.” Será que...?! “Alguém está atrás da gente, atrás da Solenni!”. Seguido a isso, uma série de outras lembranças afloraram: como a sensação e o cheiro no Templo do Cetro, a mesma sensação que teve quando capturou o bicho que amaldiçoou Solenni. As palavras de Rosa “Isso é um selo de invocação de demônios”, as palavras do pai “Boa noite, meu amigo, meus parabéns! Ganhou o título honorário de o Gran-Invocador” .... Era ele, só podia ser... Mas por quê?!! Além desses pensamentos alucinantes, Luan ainda tinha a preocupação de que o dragão parara de falar com ele.






Um homem com elegantes vestes, típicas dos magussírios, aparecera para Estel, porém o que o fez entrar em choque fora a visão da pessoa ao lado dele. Solenni. Sentada, encurvada, cabeça baixa, com a respiração ofegante e chiada. Seu tronco, semi descoberto, estava completamente tomado por manchas escuras, e elas já se espalhavam para as pernas e a cabeça.

— Quem é você?! — exclamou o defensor, irritado. — Onde está Rosa?! O que você fez a Solenni?!

— Hazaniel Charriot é a minha graça. — respondeu o homem, com sua voz baixa e grave. — Desde que você apareceu, meu caro, tive de adiar meus planos. Mas agora eu vou por um ponto final nisso.

— Do que diabos você tá falando?!!

— Saber o meu nome foi o suficiente. Eu não devo nenhuma satisfação a um futuro cadáver.

Estel ajeitou o escudo. Os ombros estavam duros de tensão. A cabeça latejava com tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Estava com medo de ser pego tão facilmente quanto o caçador, contudo o medo maior era do que podia acontecer a Solenni. A imagem da água do recipiente se torcendo em preto e branco era constante em sua mente.

O homem ao lado da espártaca iniciou movimentos com as mãos. Estel notou que a mão direita dele era de vidro brilhante. Assustou-se. Solenni começou a se contorcer, a respiração acelerou e as mãos remexeram a terra, era visível que sentia muita dor. Uma substancia negra, aquosa e gasosa ao mesmo tempo, começou a subir de suas costas. A cada gesto do homem ela aumentava, cortada aqui e acolá por fios de fogo dourado.

Num dado momento a substância havia se tornando mais alta que o homem e tomado forma. Solenni já mal se mexia. Estel viu sua visão de momentos atrás de tornar real, horrivelmente real. O outro disse:

— Existem duas maneiras de se resolver isso, meu caro: primeira, você desiste e morre junto com ela; segunda, você morre lutando e destruindo a ela. Dos dois jeitos você vai me facilitar às coisas. Então?





Luan observava Hazaniel tocar no cristal do dragão. A torre esculpida estava dividida em inúmeros tijolos e em cada um que o homem tocava aparecia um desenho. O magussírio aprisionado entendia (não sabia por que) esses desenhos, que simbolizavam palavras comuns como terra, montanha, rigidez, cristal, soberano, coroa e outras nem tão comuns assim como Hinkas e Chichay.

— Hum...interessante. — falou Hazaniel. — Pelo que vejo é necessário falar algumas ou todas as palavras daqui numa seqüência correta para libertar o dragão. Vou precisar da sua ajuda rapaz.

Luan foi puxado, ainda acorrentado para próximo de Hazaniel e do cristal. De repente ele viu todos os desenhos saltarem dos tijolos. Hazaniel sorriu satisfeito. A expressão de Tepúc Amaru era fechada, furiosa.

— Escute, Luan, tenho uma proposta a lhe fazer. — disse o homem. — Liberte o dragão e eu libertarei a espártaca.

—...!!! — Luan estremeceu nas correntes.

— Sim fui eu quem a amaldiçoei. E, pelo que sei, há essa hora o demônio que implantei nela está prestes a nascer. E você sabe o que vai acontecer se nada for feito.

—...

— Portanto, é bom agir rapidamente, jovem, mais precisamente assim que eu retirar as correntes de você. Não gaste suas palavras, fale apenas o que for estritamente necessário.

Com um gesto rápido Hazaniel desfez a magia sobre Luan, que caiu no chão e ali ficou estático, sem saber o que fazer. Ele não confiava de modo algum no acordo feito...mas se não fizesse nada seria pior, até para ele mesmo.

— Então, não vai começar? — indagou Hazaniel, calmo. — O tempo dela é mínimo.

Luan sentiu um estalo nos músculos dos ombros cheios de tensão e raiva, a indiferença com que o outro falava era revoltante. Voltou seu olhar para a torre de cristal, concentrando-se nos desenhos.

— “Pelo Sábio-Rei, garoto, que demora!” — resmungou Tepúc. O magussírio segurou-se para não demonstrar que levara um susto. — “Depois que esse medíocre apareceu você simplesmente me ignorou! Hã?! Não sabia que eu ainda estava falando com você? Hum...este homem o assustou mesmo, hein, filho? Não, ele não vai ouvir nossa conversa. Nossa ligação, regido, foi feita muito antes de ele pensar em nascer e é muito mais forte que esse túmulo de cristal. Pode até ser interferida, mas nunca quebrada. Mas isso é só porque o seu coração é novo, é gema bruta a ser lapidada. Liberte-me, Sceptro Mastro, e deixe-me lapidá-lo!”.

— Então, Luan, nada veio à sua mente?! — indagou Hazaniel, impaciente. — Eu não vou esperar mais tempo!

O regido sequer ouviu a ameaça do outro, estava absorto nos desenhos da torre. Cada um lhe fazia agora total sentido, ele só precisava reorganizá-los, estavam uma bagunça só...

— “Vamos, concentre-se, Regido!” — falou o dragão, cada vez mais entusiasmado. — Essas palavras são suas, você sempre as trouxe consigo, dite-as para mim! Não tenha receio de me acordar; a Terra, a mais velha e poderosa criação da Coroa-Branca há de me suportar até o dia em que o seu coração será capaz de fazer tal coisa, até o dia em que ele será tão eterno quanto este cristal que me contêm. Parolu, Sceptro Mastro!!”.

— Vamos logo com isso!! — gritou Hazaniel, raivoso.

O homem agitou a mão de vidro, cortando o ar rapidamente e ferindo os braços e o rosto de Luan, criando várias linhas de líquido escarlate. Entretanto o regido não esboçou nenhuma expressão de dor, continuou imóvel sentado no chão, olhando fixa e vidradamente para a torre de cristal.

Hazaniel, com a raiva quase estourando uma veia em sua têmpora, ergueu mão para mais um ataque. Só que, para seu espanto, Luan olhou-o e paralisou-o antes disso acontecer. O homem só conseguia respirar e piscar os olhos espantados rapidamente, todo o resto estava duro como pedra.

Hazaniel observou as correntes que seguravam o outro se dissolverem em areia. Os olhos de Luan agora estavam cobertos por uma aura verde-jade de luz intensa.

— Você não queria que as palavras fossem ditas, homem?! — disse o jovem, com a voz trovejante de Tepúc Amaru. — Pois elas serão, e você vai se arrepender de tê-las ouvido!





“Não se preocupe. Não fuja.”

“Lute!”

“Eu ficarei bem.”

“O Escudo é a face da Proteção. Sabe discernir o bem e o mal, é a salvaguarda de quem se perdeu do caminho.”

“A Estrela será a minha guia ante toda escuridão.”




Estel jogou-se no chão para não ter o braço arrancado. A forma que a nuvem negra tomara era no mínimo mortal. Torso de homem, focinho de lobo e chifres retorcidos, com juba e coração de chamas douradas. A criatura não se separara totalmente de Solenni, ficando suas pernas presas ás costas da espártaca.

— Por favor, não prolongue demais a situação. — falou Hazaniel, com toda calma. — Você não entendeu que vai matá-la se enfrentar seu inimigo? Ele engoliu a alma dela, portanto feri-lo é ferir a ela também.

O defensor não disse nada e continuou o embate, que na verdade resumia-se a ele se esquivar das investidas do demônio, o qual não precisava nem sair do lugar para fazê-lo. Seus braços eram elásticos, terminados em grandes patas com garras, que se movimentavam como chicotes.

Num desses ataques, as garras do monstro fincaram no chão com mais força do que deveriam, ficando presas. Estel aproveitou esse momento para fazer um teste. Aproximou o escudo do braço negro e observou a reação que ele já esperava: a substância afastava-se quando a arma tentava entrar em contato com ela. O defensor forçou até que a ligação entre a mão e o braço da criatura fosse apenas alguns fios; incomodada, ela jogou a outra mão para cima do regido, que escapou.

Ele já sabia o que fazer. Entendeu as palavras que ouvira.





— Quem por muito tempo dormiu, agora se levantará! Quem por muito tempo esperou, agora será liberto! — anunciou Luan, agora com sua voz normal, mas não menos impressionante, espalmando a mão sobre o cristal. Seus olhos brilharam ainda mais — Soberano seja aquele sob o signo da Lua Minguante, o que detêm a Terra sob o seu cajado! Erga-se Tepúc Amaru!

A torre de cristal rachou em todo seu comprimento. O dragão abriu os olhos, mostrando pupilas em forma de lua minguante e íris verdes lapidadas como jóias.

E o tremor começou.





Estel não podia esperar mais. O outro, cansado de esperar a desistência do defensor, resolvera retirar por completo a criatura de dentro de Solenni, que não mais se mexia.

O regido correu, desviou dos braços do monstro e pulou para cima dele, ficando muito próximo do peito.

Sxildo Verda! — exclamou o defensor.

A cúpula verde surgiu, cresceu e envolveu Estel por completo. A reação de repulsão aconteceu, partindo a sombra em duas. Ela urrou. Hazaniel espantou-se.

O defensor colocou junto a si a única coisa que sobrou da separação: um passarinho que emanava uma morna e leve luz de ouro. Segundos depois ele sumiu e Estel viu o mundo rodar. Alguém largara, de repente, uma montanha em suas costas. Tal o peso que sentia no corpo que não aguentou e caiu no chão.

Imagens passavam rapidamente dentro da sua cabeça. Reconhecia todas, mesmo que nunca as tenha vivido. Era a alma dela. Os sentimentos dela. As memórias dela. Ele agora era ela.

Havia uma mulher muito parecida consigo, e estava nos braços dela. Havia também um homem que acariciava seus poucos cabelos vermelhos. Havia alegria ali.

Depois houve uma conversa dessas pessoas com outro homem, seu avô anos mais novo, uma conversa que ela ouviu. Havia tensão ali.

Em seguida houve gritos, quebradeira e sangue. Ela viu isso, por uma pequena fresta. Havia terror ali. E houve também muitas lágrimas e pesadelos.

Noutro momento, os risos voltaram, tímidos, diante da companhia e da insistência de um jovem. E havia alegria novamente.

Contudo, voltaram logo depois também os gritos e o sangue. Ela viu isso de novo. Havia desespero ali. E houve de novo lágrimas e pesadelos.

Logo em seguida houve estradas e lugares muito longes. Houve seu avô lhe dando bênçãos em partidas. Havia solidão ali.

E houve, de repente, sonhos estranhos, encontros com estranhos, um enganador e o outro perdido. E este perdido foi se achar perto dela, tão perto que não queria que ele se achasse realmente, que fosse embora... Havia medo ali.

E houve então revelações, novos sonhos estranhos e novos encontros com estranhos. Um deles tornou-se querido, um irmão. Havia conforto ali.

Por último houve a verdade. E era mesma verdade do estranho perdido. O mesmo sentimento. E havia satisfação ali.

Junto com tudo isso, havia a figura de um jovem num oásis. Um sonho constante e muito familiar... E o jovem disse: “O Sol...chamam-no de rei. Mas do que adianta reinar solitário? Ver de longe o que se quer mais perto? Perdoem-no, ele só não deseja ferir ninguém. Nem a ele mesmo.”

Estel, perdido no meio de tantas visões, sentia o peito inchar com todos aqueles sentimentos ao mesmo tempo. As lágrimas corriam soltas pela face, a dor era enorme tanto por dentro como por fora. Ele não estava agüentando mais, tinha que devolver a alma à dona.

Hazaniel estava perplexo, sua invocação não era mais que poeira agora. Contudo não importava mais isso...o defensor não agüentaria duas almas num mesmo recipiente. Solenni estava vazia, quase pronta. Ele teria seu objetivo logo alcançado. Só para ter certeza, aceleraria o processo sobre o regido.

Nesse momento a terra tremeu com violência.

Hazaniel desequilibrou-se e Estel, aproveitando que o outro caia em sua direção, ergueu o escudo e descontou toda sua raiva no rosto do homem. Este foi jogado de encontro a uma árvore próxima, a face manchada de vermelho. Ele gritou de dor, mesmo com o sufoco que a pancada nas costas lhe trouxera. A terra tremeu ainda mais. O defensor começou a andar vagarosamente arrastando os joelhos, pois o peso que sentia no corpo não lhe deixava fazer mais que isso. Chegando a Solenni, levantou-a e deixou-a sentada, apoiada em seus braços. O corpo dela estava gelado.

— Solenni...vamos... — falou Estel, com voz sufocada. Não aguentava mais tanto peso, nem a perspectiva de que a outra não acordaria. — Volta logo....por favor...volta logo!!




As pessoas de Diamantina corriam de um lado para outro, assustadas. Tudo tremia. Os que trabalham na pedreira fugiram, pois um enorme buraco começara a se abrir a partir da velha mina. Um rugido poderoso sobressaiu-se ao barulho do terremoto e, logo em seguida, o dono do rugido.

Uma criatura titânica e gloriosa. Tepúc Amaru. Eles sabiam quem era. Um Dragão-Totem. Escondido há tanto tempo que alguns juravam ser apenas conversa fiada de bêbado. Aparentava uma tartaruga, com casco e pernas grossas como milhares de colunas unidas; sua pele era de pedra marrom-cinzenta, cheia de detalhes como os da parede de seu túmulo; as costas exibiam estacas de cristais, placas de metal e musgo verde-oliva. Uma gigantesca estátua que ganhara vida. A cabeça era triangular como a de uma serpente, no alto de um longo pescoço erguido, mas com o maxilar inferior agigantado; exibia como coroa dois pares de chifres enrolados de carneiro, dois para frente, dois para trás. Os olhos eram grandes orifícios onde uma luz verde-jade inflamava.

— O Soberano da Terra ergueu-se mais uma vez! — exclamou a criatura, orgulhosa e livre. — E que o Sábio-Rei tenha compaixão daquele que se atreveu contra a vida do meu libertador e daqueles a quem ele cativou!!





— Não acredito! Ele conseguiu despertar o dragão!! Pensei que fosse impedi-lo, aquele inútil!! — resmungou Hazaniel, tentando em vão conter a hemorragia no nariz.

Amaldiçoando o defensor, que nem o notou, o homem sumiu.

Estel, enquanto isso, não conseguia mais respirar devido à dor em seu peito. A terra tremia, árvores caíam e o regido não podia proteger a si nem a Solenni há não ser com um escudo mal erguido. Além disso, o corpo da espártaca estava empalidecendo e ficando cada vez mais gelado. Abraçou-a com força. Ela não podia... Uma pontada no peito.

O passarinho dourado saía de uma passagem de vespertritas com pressa; por conta das pontas dos cristais, uma de suas penas permaneceu no caminho e um pedaço de jóia ficou preso entre sua plumagem.

Solenni recobrou a consciência como quem finalmente conseguia respirar depois de ficar muito tempo em baixo d’água.

. . .