sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Coroas de Eternia - O Escudo, A Espada e O Cetro

Décimo Segundo Escrito – Seguindo viagem


— Ô, meu filho, coma mais um pouco. — pediu Dona Guilhermina, preocupada. — Você deveria estar mais animado agora que tudo acabou.

— Não... — disse Estel, baixinho e sério. — Só começou.

Era tarde da noite e a hospedaria estava fechada.

Depois do tumulto pode-se dizer que Diamantina voltou à normalidade. Tepúc Amaru, após sua aparição triunfal, desapareceu numa esfera de luz verde que entrou no peito de Luan. O magussírio, desacordado, não viu que uma multidão crescera ao seu redor em segundos, uns (poucos) querendo coroá-lo rei e outros (a maioria) querendo esfolá-lo vivo. Quem lhe salvou de qualquer um dos dois destinos foram os caçadores, que traziam no carro de resgate Solenni e Estel também inconscientes.

Quando os três deram por si, estavam na hospedaria. Descobriram que Dona Guilhermina, Rosa e os outros hóspedes estiveram todos juntos e presos dentro de um dos quartos. Os garotos ficaram desconfiados com a clériga, mas a anã explicou o que aconteceu em tão curto espaço de tempo e eles voltaram tratá-la normalmente.

Aquele era o quarto dia depois de tudo.

— E aí, Dona Guilhermina, qual foi o prejuízo que eu dei a cidade pela bagunça daquele dia? — indagou Luan, pesaroso.

— Rosa disse que desistiu de metade da carga que levaria para Arthuria para pagar a sua fiança e os consertos da cidade. — respondeu a senhora. — Ô, não fique com essa cara! Ela não está chateada, fez questão de ajudar vocês depois do que houve! Além dela mesmo ter levado parte dessa culpa... E ela ainda tentou segurar aquele cretino, ou aqueles...sei lá!

— E porque temos de ficar trancados aqui por mais cinco dias? — perguntou Estel.

— Porque esse foi o determinado, filho. — continuou Guilhermina. — Juro que é bem mais
saudável para vocês cumprirem esse prazo. Algumas pessoas ainda estão revoltadas com que aconteceu, acharam um sacrilégio...e acharam também que até o seqüestro daquela menina foi armação para que vocês pudessem acordar aquela coisa... Um bando de fofoqueiros que não tem o que fazer da vida! É tão ruim assim ficar aqui?

Estel e Luan ficaram sem jeito, não queriam ter passado essa impressão para Dona Guilhermina.

— Não, de jeito nenhum! — disse o magussírio. — É que não queríamos ser trancafiados como criminosos...

Houve um silêncio muito chato na cozinha onde os três estavam. Estel foi quem interrompeu a quietude.

— Será que Rosa já terminou? — indagou.

— Acho que sim, meu filho. — respondeu a senhora, sorrindo. — Já passou a meia hora que ela disse que precisava para cuidar da menina Solenni. Vá lá dar uns beijinhos nela, quem sabe assim a cara de vocês melhore um pouco.

— Ah...é...então com licença. — disse o defensor sem jeito, saindo do aposento.

— E eu como fico? — indagou Luan, num tom de brincadeira.

— Ô, meu filho, eu não tenho uma namorada para você. — respondeu Guilhermina, rindo, mas ao mesmo tempo com pena. — A única coisa que posso lhe dar é um beijo e um abraço como uma mãe faria. Você aceita?

—... Aceito.

Luan sentiu-se reconfortado, mesmo que o abraço de Dona Guilhermina tivesse quase quebrado uma de suas costelas. Ele sentia muita falta da mãe.


Estel não pode atualizar Solenni dos acontecimentos, pelo menos não com os detalhes que ele queria, por conta do “tratamento” que Rosa estava fazendo na espártaca. A clériga lhe disse que como ela quase teve um demônio retirado de seu corpo, era possível que alguns vestígios de magia maligna ainda estivessem nela. Solenni passou a maior parte dos dias dormindo devido à exaustão que tal maldição causara, e quando não estava assim, estava com Rosa nesse “tratamento de limpeza”.

Mais cedo a clériga veio conversar com ele, falar sobre algo que acontecera.

— Olha, Estel, com toda sinceridade...nunca tinha visto isso em minha vida. Primeiro, o fato de a alma de Solenni ter saído intacta desse episódio; pelo visto, apesar da maldição ter feito o que fez com ela, feriu-a apenas superficialmente. Segundo, você ter suportado duas almas, Estel...você agora deve ter noção do quanto “pesa” uma alma, e a sua deve ser feita de vespertrita pura, pois não “quebrou” apesar tudo. Pessoas comuns entrariam em colapso, sem saber quem é ela quem é a outra pessoa...

“Terceiro e, o mais impressionante, foi o resultado dessa união dentro de você. Houve uma transferência de você para Solenni e vice-e-versa. Vocês têm agora uma pequena, mas significante, parte da alma de um, no outro. Se os dois já eram ligados, serão muito mais agora...e não estou falando apenas de sentimento, é algo concreto, imutável e eterno.”

Sentado no banco do lado de fora do quarto, Estel refletia sobre essas palavras, sem entender muito bem, mas sabendo que eram verdadeiras.

Rosa saiu do quarto, tirando o defensor de seus pensamentos.

— Está acabado, não vejo mais motivo de manter o tratamento. — concluiu ela, sorrindo. — Ela está limpa. Acho que o único problema dela agora é tristeza e preocupação, mas disso você saberá cuidar. Com licença.

E saiu. Um minuto depois Solenni apareceu. Fisicamente agora só tinha uns leves arranhões. Contudo o que mais preocupou Estel foi a expressão de desânimo dela e os cabelos vermelhos completamente soltos.

Espártacas prezam muito por seus cabelos, mas elas só os soltam por poucos motivos. Ou quando estão impossibilitadas de lutar, ou quando são desistentes ou derrotadas em uma batalha”, o defensor lembrou-se. Solenni deveria estar assim por não ter conseguido fazer nada, mesmo que realmente não pudesse, e assim trazido tantas preocupações.

— Nesses dias em que estive dormindo, eu tive sonhos e visões muito estranhas. — ela falou, antes sequer de olhar para ele. — Vi cenas que não pertencem as minhas memórias, mas que me eram muito familiares, como se realmente me pertencessem. Foi quando num desses momentos eu vi que era você, que estava no seu lugar. Fui maltratada por pessoas que me xingavam, fui posta a tapas para fora de uma sala, ouvi grosserias, provocações, preconceitos. Vi minha mãe chorando, vi pessoas me rodeando e me tocando assustadas. Passei vergonha várias vezes... Vi meus dois únicos amigos acabarem me enganando também por medo de me dizerem a verdade. De um eu queria a amizade, da outra mais que isso...mas não tive nada de nenhum dos dois. Daí, quando a oportunidade veio, eu fugi. Parei em Eternia. Fiquei porque não queria voltar. Deixei minha mãe para trás... Mas aqui ainda sinto o mesmo medo, de ser rejeitado, de ser taxado de anormal, de não me encaixar. Tenho medo agora também de não cumprir o que prometi, o que prometi pela pura vontade de não voltar... Estel, me desculpe, fiz pouco caso da sua dor. Apesar de você ter me contado, não fazia idéia do quanto você sofreu e ainda sofre... Soltei meus cabelos como modo de honrá-lo, porque agora eu compartilho do que você sentiu e sente, literalmente.

Solenni ergueu a cabeça, mostrando um olhar gentil, mas pesaroso. E ela continuou a olhar quando algumas lágrimas caíram. Estel não teve outra reação senão abraçá-la com toda força e vontade que guardara aqueles dias.

— Ei, tá tudo bem. — disse Estel, numa mistura estranha de felicidade e pesar. — Não sei se serve de consolo, mas fiz pouco caso de você também, antes do seu avô vir me contar tudo e eu ver com meus próprios olhos.

E finalmente pode contar todo o ocorrido, até mais que isso. Queria saber também se a voz que ouvira era a dela.

— Sim, tentei muito falar com vocês. — respondeu a espártaca, voltando a sua bela normalidade séria. — Não queria que se separassem. Foi isso que falaram para nós.

— Mas como fez isso? — indagou o defensor, intrigado.

— Eu não sei... Eu estava num lugar completamente escuro, e, só conseguia me enxergar porque havia uma luz dourada em mim. E por causa dessa luz eu conseguia desviar das mãos que tentavam me pegar, só que numa hora elas se tornaram tantas e tão grandes que não conseguia mais me mexer. Foi quando vi você lutando, e no seu peito havia uma espécie de janela, pequena e rodeada de vespertritas. E ela estava aberta, soube que ali eu poderia ir e ficar segura. Então voltei a falar com você...e saíram palavras que eu nem conhecia... O seu escudo abriu caminho para mim e entrei na tal janela. Mas ali, apesar de seguro era muito apertado...lembro que, antes de voltar para o meu corpo, fiquei presa num dos cristais.

— Que coisa maluca.... — Estel olhou para o próprio peito.

— E o Luan, como está?

— Está bem, mas só se ele ficar quietinho dentro da hospedaria. Metade da cidade quer trucidá-lo por....como foi que eles disseram... "Roubo premeditado de relíquia ancestral – nível 10 de criminalidade"; e até nós fomos colocados no meio, como cúmplices. Seu seqüestro foi dito como encenação. Nos interrogaram para saber onde Hazaniel havia ido, mas pelo menos isso acreditaram que não sabíamos. Solenni...você disse que viu a mim a ao Luan...você também viu esse cara?

— Sim. E foi ele com quem me encontrei tempos atrás.

— O que será que ele tanto quer com você?

— Eu sinceramente não sei, mas com certeza não se trata só de vingança pelo que fiz a mão dele.

— Que venha. Da próxima vez vou deixar o nariz dele inteiro.

Solenni soltou um leve sorriso e apoiou a cabeça no ombro de Estel, que voltou a abraçá-la, desejando internamente que nunca existisse essa próxima vez.


Aproveitando que ficariam de molho mais alguns dias, os regidos renovaram seus estoques de viagem (com ajuda de Dona Guilhermina, a única que possuía passe livre pela cidade) e puderam ver que caminho eles tomariam agora. A senhora anã mostrou para eles uma abertura no sótão da hospedaria que dava para uma espécie de alpendre, onde, à noite, eles levaram o Cetro e o Escudo. As armas apontaram para o norte, a de Estel com mais intensidade do que a de Luan.

— Eu espero realmente que tenhamos uma viagem tranqüila, sem maldições, seqüestros, ou destruição de cidades pela metade... — comentou o magussírio, de volta a cozinha, enchendo o prato de comida.

— Para onde vocês vão, meus filhos? — indagou Dona Guilhermina, com um quê de tristeza que penalizou os garotos.

— Não sabemos exatamente...vamos onde nossas armas nos levarem. — respondeu Estel, sinceramente. — E agora elas apontaram para o norte.

— Ô, meus filhos, cuidado redobrado, por favor. — pediu a senhora, a mão pousada sobre a boca.

— As caravanas que estão chegando a Diamantina só trazem notícias ruins do mundo.

— Nós sabemos, mais do que ninguém, o que está havendo, Dona Guilhermina. — respondeu Solenni, bondosamente. — Mas não podemos parar.

— Vocês não têm idéia até onde precisam ir em direção ao norte? — perguntou Rosa. — Estou voltando para Arthuria, que fica nessa direção, e posso dar uma carona para vocês até lá e, se houver como, arranjar transporte para o resto do caminho. Aceitam?

— Com certeza. — responderam os três garotos em uníssono. Uma viagem com transporte parecia muito mais segura (e menos cansativa) que a pé.


Na madrugada seguinte, Estel, Solenni e Luan colocaram as bagagens no carro flutuante de Rosa. Um modelo bonito, branco, que misturava em si aspectos decorativos e modernos. Deram agradecimentos a uma emocionada Guilhermina e partiram.

Mesmo àquela hora havia pessoas trabalhando e elas fizeram questão de interromper o serviço para olharem para o grupo de partida e cochichar sobre ele. Durante todo o caminho até os portões os caçadores ficaram vigiando-os, assegurando que nem os do carro nem possíveis revoltosos começassem outra confusão na cidade.

Depois de alguns metros dos portões de Diamantina a motorista e os passageiros conseguiram relaxar.

— Pelo Sábio-Rei, que tensão! — comentou Luan, respirando aliviado. — Podia jurar que se déssemos um suspiro mais forte, atirariam na gente.

— Não os culpem. — disse Rosa. — Esses tempos difíceis tem deixado a todos muito estressados. A idéia de que Eternia está morrendo é bem assustadora... Além disso, é claro, o que aconteceu alguns dias atrás.

— Eles têm esse medo, mas não fazem nada contra ele. — falou Solenni. — Os reinos se fecham, as pessoas se trancam ao invés de ajudarem umas as outras e fazerem com que esse medo diminua. Parece que gostam de sofrer e de ver os outros na mesma situação.

— Concordo com você, Solenni, mas, por outro lado, pense que não é fácil deixar sua “segurança” para “se meter” nos problemas dos outros. Claro, isso explica, mas não justifica. Se todos usufruem de Eternia, todos deveriam protegê-la e mantê-la. O medo existe em todo lugar, em todo ser, até mesmo naqueles que carregam uma profecia nas costas. Vocês chegaram até aqui porque tem medo de perder coisas queridas, perder a própria vida. Contudo esse medo, ao invés de retraí-los, empurrou-os. Todos nós deveríamos agir assim, mas a verdade é outra. Sinceramente, não tentem entender as atitudes e os sentimentos de todo mundo, isso é uma carga muito pesada para poucas costas. Continuem seguindo a vontade de vocês, o que vocês acreditam, e Eternia estará em ótimas mãos desse modo.

Alguns segundos de silêncio acompanharam a reflexão dos regidos. Contudo Estel foi um pouco mais longe quando disse:

— Então tenho pena do Sábio-Rei...ele deve ter as costas muito mais doloridas do que as nossas.




— Ei, acordem! — chamou Rosa, contente, despertando os três regidos. — Chegamos.

Estel, Solenni e Luan, zonzos por conta das poucas horas de sono que conseguiram no apertado espaço do veículo, viram-se num estacionamento subterrâneo gigante com vários outros carros flutuantes em diferentes formas, tamanhos e cores. Ouviam-se ali ecos de muitos barulhos.

— Onde estamos? — perguntou Estel, no meio de um bocejo.

— Em Arthuria, mas numa parte que não é tão interessante assim. — respondeu a clériga. — Vamos subir.

Rosa guiou os jovens para uma porta que levava a um elevador. Levou alguns segundos para que os regidos entendessem o que a outra falara, contudo, quando o fizeram, foi juntamente com exclamações de admiração. O elevador subia agora por uma torre vazada, abrindo a visão para um cenário fantástico. Arthuria era uma espécie de castelo descomunal, onde todo um mundo existia por trás de grandes muros, torres de todos os tamanhos, pátios, ruas, pontes e jardins. Um reino-castelo. Flâmulas azul-escuras balançavam ao vento e carros voadores brilhavam e zuniam à luz do sol como abelhas de metal.

O elevador continuou a subir até a que as pessoas do nível mais baixo do reino-castelo transformaram-se em formigas coloridas. As portas se abriram e Rosa, Estel, Solenni e Luan caminharam sobre uma larga ponte que ligava a torre do elevador a um pátio jardinado. Neste erguia-se uma miniatura de Arthuria (se comparado ao tamanho do reino sem si, mas grande o suficiente para se admirar) onde havia mais gente e agitação. Carregavam de tudo para todos os lados: armamentos, armaduras, mantimentos e montarias (que, por sinal, era o mais estranho dali, pois eram grandes aves, lembrando avestruzes avantajados na forma do corpo e águias, na cabeça. Suas cores variavam do amarelo-ouro ao negro. E alguns deles estavam com armaduras adaptadas.). Havia também um grande número de soldados completamente cobertos de metal, alguns deles com apenas a ponta do nariz e a boca de fora; as outras pessoas trajavam-se com roupas mais leves e muito distintas entre si, algumas com cores muito escuras, outras já completamente brancas. Contudo, por qualquer um que passassem, Rosa ganhava uma reverência.

— Rosa deve ser alguém importante por aqui... — comentou o magussírio, para os outros dois. — Muito importante mesmo...

— Kain! — chamou Rosa, de repente.

No meio da multidão uma pessoa destacou-se para atender o chamado. Um dos soldados completamente vestidos, este especificamente com uma armadura azul-marinho que possuía detalhes que lembravam um dragão, como escamas, garras, e cabeça dando forma ao elmo, veio de encontro a clériga. Tomou-a nos braços num laço apertado e carinhoso.

— Rosa! Pensei que você não fosse chegar a tempo! — disse ele, sorrindo, a voz jovial, mas com um quê de preocupação. Ele saiu do enlace e retirou o elmo, mostrando-se idêntico a outra, masculinamente falando. — Todo mundo aqui ficou maluco quando recebemos as notícias de Diamantina, principalmente seu marido. Ele estava uma pilha esses dias...

— Meu Sábio-Rei...incrível como essas notícias correm mais rápido que o vento. — disse a outra, sorrindo sem jeito. — E com certeza com algumas distorções. Preciso contar minha versão ao nosso pai para tentar justificar toda essa confusão... Trouxe até testemunhas! — e virou-se para os regidos — Estel, Solenni e Luan, este é o meu irmão, Kain.

Agora estava explicado. Enquanto os jovens cumprimentavam o irmão de Rosa, ouviram-no falar:

— Nas notícias que recebemos também ouvimos o nome de vocês, mas junto com eles não vieram coisas muito boas...

— Já imaginávamos. — comentou Luan, dando de ombros. — Quase não conseguimos chegar aqui inteiros e ainda saímos como os vilões...uma má fama aqui outra acolá não faz muita diferença.

— Pelas caras de sono, vocês chegaram agora a pouco, não? — perguntou Kain, depois de rir abertamente. — Leve-os para comer, minha irmã, quem sabe de estômago cheio o ânimo deles melhore.

— O movimento aqui está de um jeito que nunca vi. — falou Rosa, preocupada. — Vão partir em breve, não é?

— Amanhã antes do raiar do dia. Ficaremos fora três semanas. A situação em Mysidia não está nada boa e... Ah! O “chefão” tá vindo aí!

Entrando no meio da multidão e falando com todos que vinham até ele, um cavaleiro. De armadura prateada e vestes brancas, recebia tantas reverências quanto Rosa. Quando chegou ao grupo que conversava, pediu um “com licença” a todos e em seguida ergueu a clériga do chão num abraço e beijou-lhe a face com veemência.

— Por Mazda! Pensei que fosse partir sem vê-la, Rosa! — disse o cavaleiro, no mesmo tom de alegria e preocupação que Kain. — Se demorasse mais um pouco, eu mesmo iria buscá-la em Diamantina.

— Por isso que resolvi tudo e cheguei antes disso. — respondeu Rosa, as faces rosadas atravessadas por um sorriso. — Cavaleiros de armadura brilhante sempre carregam essa vontade insaciável de salvar tudo, principalmente, princesas.

— É... E princesas conseguem resolver tudo de um jeito muito mais eficiente...preciso me acostumar com essa idéia.

— Princesa?! — falou Estel, pensando alto.

— Ela não disse? Ah, é assim mesmo, minha irmã adora agir em surdina, não sei como até agora tem usado o nome verdadeiro, jurava que já tinha arranjado uma identidade secreta. — falou Kain, fingindo cochichar. — Esta é Rosa Guinevere Del Lunarian, princesa de Arthuria.

— Não é nada disso. — contrapôs a outra, séria. — Desculpem-me por não ter dito antes, mas o status de “princesa” não traz nenhuma liberdade quando o assunto é trabalho, entendem? Não quero que façam tudo por mim ou me tratem como um vaso de cristal... Nosso pai me tornou responsável por ligações comerciais em vários reinos, e ser “princesa” não dá muita credibilidade nesse meio. Em Diamantina acham no máximo que sou uma diplomata, e prefiro que continue assim.

— E vocês três devem ser Estel, Solenni e Luan. — falou o cavaleiro. — Eu sou Cecil Galahad. Minha esposa contou sobre sonhos que teve com vocês, apesar de não saber realmente que eram vocês...disse-me que viriam para cá. E o sonho se cumpriu. Mas eu gostaria de saber o que houve antes disso.

E Rosa contou, juntamente com os três regidos.

— Agora preciso contar essa história ao nosso pai, tentar justificar a perda de metade da carga de metais. — comentou a clériga, suspirando. — A outra já chegou?

— Sim. — respondeu Cecil. — Quer que eu a acompanhe?

— Por favor. Apoio moral nunca é demais.

— Essa perda vai lhe prejudicar tanto assim, Rosa? — perguntou Solenni, preocupada.

— Nãão! Minha irmã está fazendo drama, nosso pai nunca ficou realmente bravo com ela. — disse Kain, cruzando os braços e rindo. — Ele vai acreditar no que ela disser. No máximo vai fazer uma cara feia e depois fica tudo bem.

— Não sei se dessa vez vai ser tão simples assim. — contrapôs a irmã, sorrindo. — Não que a culpa seja de vocês, por favor, foi o fato dos diamantinos não terem entendido o que houve...e tivemos de pagar por isso. Mas obrigada pelo incentivo, Kain. Até logo e bom trabalho. — e deu um beijo no rosto do irmão. — Vamos, garotos, no caminho para a sala de nosso pai falaremos com Cecil sobre a carona de vocês.

Os regidos despediram-se de Kain e acompanharam o casal por entre a multidão até o castelo. Dentro, mais gente ocupada e mais reverências, além da beleza do local. Enquanto andavam, Rosa perguntou para Cecil:

— Meu irmão comentou comigo que a situação em Mysidia não melhorou. O que está acontecendo?

— Os ataques aumentaram consideravelmente. — respondeu o cavaleiro, a feição fechada. — Os Atmas estão ficando mais fortes, resistentes às armas e as magias. Além disso, estão astutos, planejam cada ataque, conseguem interferir em nossas defesas como se soubessem o que vamos fazer. Estamos levando o dobro de clérigos dessa vez... Sábio Efraim está tentando buscar reforços com os druidas, o que nos surpreendeu, porque Arborim já era aliada de Mysidia, mas eles recusam-se a atravessar o Pântano Ocre e dizem já ter seus próprios problemas. Já nós, tentamos aliança com os reinos Valhol e Eólio, mas todos dizem já terem seus contratempos para se deslocarem até outra guerra.

— Entendo...e pedir ajuda em outro lugar demoraria demais.

— E ainda há outro detalhe.

— O que?!

— Você sabe que os mysidianos guardam uma relíquia importante, não é? Há três dias soubemos que houve uma tentativa de roubo.

— Pela Coroa Branca! Conseguiram pegar alguém?!

— Não, infelizmente. Desde então a segurança aumentou e, em relação a isso, por enquanto, não tivemos mais notícias ruins.

Eles pararam a frente de uma grande porta branca. Atrás dela, muitas vozes.

— Esperem só um instante, tudo bem? — falou Rosa, para os regidos.

E entrou. Cecil aproveitou para perguntar:

— Se eu não for me intrometer, posso saber por que vieram para Arthuria? Foi só por conta do que houve em Diamantina?

— Não, vamos dizer que também foi por isso. Nossas armas é que nos dizem que direção tomar, e como elas apontaram na direção de Arthuria, Rosa nos ofereceu a vinda até aqui e possivelmente transporte para o resto do caminho. — explicou Solenni.

— E para onde vão exatamente?

— Não sabemos. — respondeu Estel, sincero. — Elas nos mostram a direção e a gente segue, seja lá onde possamos parar. Tudo para encontrarmos ou um dragão ou uma litta, uma espécie de jóia.

— Uma litta...? Essa jóia...a aparência dela é redonda, verde-escura?

— Sim! — exclamou Luan, surpreendido tanto quanto os outros dois. — Ei...não me diz que...

— Exatamente. A relíquia sobre a qual comentei agora é essa que descrevi.

— Estel...é uma de suas littas! — exclamou Solenni, tensa. Estel engoliu seco.

— Nunca soube que se tratava de uma litta, da litta de um dos Regidos de Eternia. — continuou o cavaleiro, sincero, vendo as expressões fechadas dos jovens. — Sabia, sim, que se tratava de uma relíquia ligada à profecia, mas não a esse ponto. Os mysidianos sempre manteram sigilo sobre a verdadeira natureza dela.

Os três regidos estremeceram, Estel mais que todos. Um barulho de porta se abrindo tirou-os dos pensamentos. Rosa surgia com um sorriso, mas ao ver a expressão dos outros, perguntou preocupada:

— O que houve?

— Nós precisamos ir com vocês. — disse o defensor, resoluto. — Para Mysidia.

— Rosa, a relíquia dos mysidianos trata-se de uma das joias do regido Estel. — resumiu Cecil.

— Pelo Sábio-Rei...faz todo sentido...conhecemos a relíquia por ela estar ligada à profecia. Não me espanta agora o fato de vocês estarem seguindo na mesma direção que nós. — disse a clériga. — Não se preocupem, já falei com meu pai. Vocês poderiam seguir com a comitiva de Mysidia até onde precisassem...agora, de certa forma é bom saber que ficarão conosco a viagem toda. Ele só pediu uma coisa em troca.

— O que? — indagou Luan, tenso.

— O rei deseja conhecê-los. — e Rosa abriu o sorriso de antes. — Hoje à noite vocês jantarão com ele.



A idéia de que um rei queria conhecê-los, assustou e empolgou os regidos. Até aquele momento eles só se envolveram com pessoas próximas a eles mesmos ou comuns, e o único convite que receberam foi o de “por favor, retirem-se antes que vocês nos matem ou a gente mate vocês”.
Uma excursão por Arthuria foi um merecido momento de despreocupação, apesar da recente notícia de que uma litta quase fora roubada e dos rumores de guerra que pairavam sobre as conversas das pessoas. A visão daquele mundo-castelo, cheio de torres, jardins e casas, além da conversa descontraída sobre as histórias do reino, quase fizeram os regidos acreditarem que estava tudo bem.



— Ah! Vocês estão ótimos! – disse Rosa, chegando ao salão de entrada, belamente vestida assim como Cecil.

Os jovens pensaram que Rosa estava sendo mais gentil do que sincera. Eles não tinham pensado em levar roupas para uma ocasião tão formal, tendo de se arranjar com o que possuíam, o que significou vestes que depois de tantas idas, vindas e remexidas de viagem exibiam vincos e amassados.

Os três foram levados até uma ante-sala, onde Rosa pediu que esperassem um instante. Sentiam-se nervosos. Será que o rei desejava alguma coisa deles?

— Vamos, entrem. — disse Cecil, abrindo a porta para eles.

Estel, Solenni e Luan timidamente atravessaram o portal, esperando encontrar aquelas mesas retangulares compridas e requintadas. Contudo, o lugar onde estavam era uma sala espaçosa, sim, mas decorada com simplicidade e bastante confortável. Exibia grandes janelas abertas e uma porta de correr para a varanda; havia no chão acarpetado almofadões ao redor de uma mesa redonda e baixa já servida; estantes com vários livros e objetos estranhos preenchiam uma das paredes; a luz prateada da lua e a dourada dos lustres dividiam espaço harmonicamente ali.

Sentadas nos almofadões, duas pessoas: Cain e outro homem. Era uma versão de Cain anos mais velha, porém seus cabelos e barba aparada eram de um ruivo escuro.

— Boa noite, meus filhos! — cumprimentou ele, a voz grave e empolgada. — Que prazer recebê-los!

O homem levantou-se e foi diretamente para os regidos, apertando fortemente as mãos e os ombros de Estel e Luan, e beijando a mão de Solenni. Ele se vestia com elegância, parecendo um árabe para Estel, tendo até um turbante na cabeça.

— Todos me chamam de Majestade ou de Rei. — disse ele. — Mas aqui, chamem-me apenas de Baron. Por favor, fiquem a vontade! Tirem as sandálias dos pés, e deixem toda a formalidade com elas!

Os jovens se surpreenderam com tal recepção, tão simpática que os relaxou.

— Como é bom ver a mesa cheia! — comentou Baron, com um largo sorriso. — Ainda mais com convidados tão ilustres! Digam-me, meus filhos, vocês foram bem acomodados?

— Sim, senhor, obrigada. — respondeu Solenni. — E obrigada também por permitir viajar com suas tropas.

— Não há de que, Solenni. Pelo que vejo, espártacos são tão educados quanto são bons em batalha e, as espártacas, belas (as bochechas de Solenni ficaram rosa). Então, o que acharam de Arthuria?

E a partir daí uma conversa longa se desenrolou. O rei estava muito interessado no que acontecera aos regidos antes deles chegarem ali, de como era a vida de cada um (até a de Estel, mesmo que não tivesse entendido muito bem), seus gostos, medos e esperanças. Estel, Solenni e Luan sentiram-se aconchegados, quase como se estivessem em suas próprias casas, porém havia também uma ponta de desconfiança com tanta gentileza. Estavam envergonhados com esse mútuo sentimento, mas porque o rei seria tão atencioso com três completos estranhos?! Então Baron, parecendo ler isso no rosto deles, falou:

— Meus filhos, um dia minha amada Rosa veio me contar que teve um sonho. E nele estavam os Regidos de Eternia, os quais ela sabia que encontraria quando partisse. E eu disse a ela: “Filha minha, a você foi concedida tanto uma dádiva quanto uma maldição. Se seu caminho se mistura aos dessas pessoas, você levará consigo tanto as bênçãos que as cobrem quanto o peso da responsabilidade que carregam.”. E quando li a mensagem de Diamantina sabia que o sonho dela se tornara real. E que alegria a minha quando soube que viriam com ela! Fiquei ansioso para conhecer aqueles que carregam nas mãos a luz da Coroa Branca!

— Mas o senhor não tem medo de trazermos a parte da “maldição” para o seu reino? — indagou Solenni, séria.

— Não vou mentir dizendo que não, minha filha, mas vou me corrigir. Vocês não carregam essa “maldição”, ela os persegue. E vai ser assim até que Eternia esteja segura novamente. Contudo, seria covardia minha culpá-los por qualquer coisa que acontecesse aqui. Eu decidi, eu quis recebê-los em minha casa, portanto, ajudá-los-ia a carregar o fardo de vocês por quanto tempo permanecessem aqui. E é o que eu acho estar fazendo agora.

“Meus filhos, vocês desistiram de suas vidas para ganhar o mundo numa viagem que pode ser sem volta! Mas pelo Sábio-Rei que não seja assim! Mesmo que estejam fazendo isso apenas por seus interesses pessoais, ninguém tem ou terá o direito de condená-los, vocês estão se arriscando para salvar Eternia no fim das contas. E a menor coisa que se pode fazer é ajudar a tornar a vida de vocês mais feliz, despreocupada, nem que seja por um instante. No começo pode ser que as pessoas os considerem por vocês serem os Regidos de Eternia, mas depois que os conhecerem, farão por vocês serem Estel, Solenni e Luan. E perdoem aqueles que não o fizerem, eles nem imaginam a maravilhosa companhia que vocês três proporcionam.”.

Estel, Solenni e Luan emudeceram, não sabiam como reagir ao sentimento que os tomava. Era uma gratidão muito grande para se resumir num “obrigado”. Os outros quatro à mesa perceberam isso e sorriram. Kain então se levantou e disse:

— Alguém tá afim de jogar Batalhas Táticas?

— O que?! Não acredito, você joga isso?! — indagou Luan, o rosto iluminado.

— Não só eu! Esses outros aqui atrás de mim são viciados assumidos.

Estel e Solenni só foram entender a conversa momentos depois. O príncipe foi até uma das estantes e tirou de lá uma grande caixa cúbica de madeira decorada. Ele a abriu e remexeu, tirando de dentro duas outras caixas menores e, no final, transformou a maior num tabuleiro de xadrez bem grande e retangular. As casas mudavam de altura quando um botão era girado na lateral, criando uma espécie de terreno acidentado do jeito que se queria. Nas caixas menores havia inúmeras peças, mini-pessoas vestidas ou com armaduras ou vestes coloridas e armadas com arcos, lanças, espadas e cajados.

Luan explicou o tal jogo para os outros dois. Era como xadrez, mesmo, só que as peças podiam ser movidas com mais liberdade e a partida só acabava quando todo o exército inimigo era derrotado, o que queria dizer que todas as peças haviam perdido a cor e se tornado cinzentas. Elas se movimentavam sozinhas com comando de voz, seja para andarem pelo tabuleiro, seja para atacarem ou usarem magias. Cecil, Kain e Rosa contra Estel, Luan e Solenni; Baron ficaria de juiz e escolheria as regras da partida a partir uma carta que saia do tabuleiro antes da partida começar. Foi sensacional. Apesar do regidos só contarem com Luan de experiente no jogo, o outro time passou maus bocados com as idéias de Solenni, mas eles mesmo assim ganharam.

— E aí? Querem revanche? – indagou Kain, rindo.

— Não, meu filho, melhor não. – falou Baron, resoluto. — Eu não sou de ficar controlando horários, mas amanha será um dia cheio para todos. Fora que eu ainda preciso discutir algo sério com você, Rosa e Cecil sobre Mysidia. Rosa, minha querida, acompanhe Estel, Solenni e Luan até o hall. Desejo-lhes boa noite, meus filhos, foi uma noite da qual jamais me esquecerei.

Rosa ergueu-se e disse:

— Vamos então?

Kain e Cecil também se despediram, porém era notável que a expressão deles havia mudado, de repente ficaram fechadas e sérias. No caminho, Rosa falou:

— Vamos tratar agora de assuntos de guerra. Meu pai não deseja importuná-los com mais essa preocupação.

— Tudo bem. Se bem que a nossa "única" preocupação é nos mantermos vivos. — respondeu Estel. — Se ele achar que precisa da nossa ajuda é só chamar.

— É claro. Obrigada e boa noite.

E Rosa saiu. A caminho de seus aposentos, Luan olhou para Estel e perguntou:

— Ei, cara, foi impressão minha ou você foi meio irônico com a Rosa?

— Mais ou menos. — disse o defensor, sério. —Não queria ser rude, mas não consegui evitar.

— Por quê?

— Porque enquanto uns nos tratam como “detentores da destruição”, outros nos acham “condenados à morte”.

— Como assim, Estel?

— O Rei Baron foi ótimo conosco e não reclamo de nada que ele fez ou disse, mas.... não sei se você notou, para mim parecia que ele estava mais com pena da gente do que realmente gentil. Me lembrou Dona Guilhermina.

— ... E...você acha isso ruim?

— Não...ruim não é a palavra... Sabe, só queria nos tratassem como pessoas “normais”, se é que me entende. Olha, tudo bem que não possamos saber sobre táticas de guerra de verdade...mas fico imaginando, se fosse outro assunto, um que pudéssemos ajudar e dizer alguma coisa sobre ele, o Rei Baron não nos deixaria ficar por não “desejar importunar a gente com mais essa preocupação”? Enquanto outras pessoas, ao invés, nos esfolariam vivos se não resolvêssemos a menor das complicações... É estranho...quando queremos ajudar as pessoas nos negam, mas se dissermos não vão nos condenar. E eu não acredito que isso vai terminar depois que salvarmos Eternia...seremos outros Vigilantes.

—...... Então o que fazemos?

– O que temos feito até agora, nos manter vivos e continuar. — respondeu Solenni, que havia ficado inexpressiva até ali. — Sei que não é fácil simplesmente ignorar o que os outros dizem, isso incomoda até a mim e bastante... Mas se deixarmos isso tomar conta de nós, não faremos nada do que queremos, realmente nos tornaremos “novos Vigilantes”. Temos que saber nos intrometer quando nos negam e esquecer quando nos condenam. Todos dizem a mesma coisa para nós: lutem pelo o que vocês acham certo, pelo o que desejam. Então vamos fazer isso, continuar fazendo isso. Não precisamos conhecer qualquer estratégia de guerra para saber e querer ajudar no meio de uma. Esqueceram Magussíria? Não foi, nem seria, a última vez que teremos de agir daquele jeito.

Estel e Luan lembraram. Solenni estava certa.




Na manhã seguinte os regidos esperavam por Rosa, Kain e Cecil no saguão de entrada. Alguns minutos e eles apareceram. Kain e Cecil de volta às suas armaduras, o primeiro com uma lança e o outro com espada e escudo. Rosa deixara as roupas de clériga para se armadurar também, levando consigo um longo arco e uma aljava recheada de flechas.

— Desculpem a demora. Vamos, tomaremos o desjejum a bordo. — falou Rosa, mesmo que os outros três não tenham entendido a expressão “a bordo”. — Ah, gostaria também que me entregassem as armaduras e as roupas com que costumam viajar, o Rei Baron quer dar um tratamento especial a elas.

Os garotos gostaram (e entenderam) a ultima frase, principalmente Estel e Solenni, cujas vestes apresentavam mais desgaste da que as de Luan. O grupo seguiu até outro elevador do pátio externo e desceu até o pavimento mais baixo de Arthuria. Andaram por um longo corredor, chegando a uma porta guardada por um soldado.

— Bom dia, Soldado Vicks. — disse Cecil, educado. — Os navios já estão prontos?

— Sim, senhor. — respondeu o outro, respeitosamente. — Bahamuts, Wyverns e Pterodracos estão apenas esperando seu comando para zarpar, senhor.

— Obrigado.

Então o soldado abriu a porta. Estel, Solenni e Luan, que até agora não haviam entendido o porquê das palavras “navios” e “zarpar”, deixaram seus queixos caírem.

Eles acabavam de entrar em um hangar gigantesco, onde vários navios modificados estavam. Estes exibiam ao mesmo tempo velas e asas, seus cascos de metal eram vermelho-escuros com muitos detalhes e na parte detrás havia turbinas onde caberia uma casa dentro facilmente. O grupo foi até o maior deles, onde o nome “Asas Escarlates – Bahamut Fígaro” brilhava. Dentro, muitos corredores, salas e compartimentos cheios de pessoas em movimento. Chegando à cabine de navegação, Cecil, Rosa e Kain falaram com todos os presentes. Cinco minutos depois o som de inúmeros trovões ressoou, as turbinas eram ligadas. O teto do hangar abriu-se em vários pontos diferentes. Cecil trocou as últimas palavras com o soldado que estava de frente para uma espécie microfone.

— Pterodracos: Tzen, Albrook, Maranda e Nikeah, permissão concedida para decolagem. — ele disse então, a voz metalizada ecoando no hangar.

Estel, Solenni e Luan observaram das janelas da cabine os quatro menores navios ganharem altura. O barulho de mais turbinas sendo ligadas encheu e remexeu o ar. O defensor lembrou-se de lanchas agigantadas quando os observou. Ao atravessarem o teto, o soldado falou de novo:

— Wyverns: Veldt, Barren e Lethe, permissão concedida para decolagem.

E os navios medianos, que lembravam cargueiros para Estel, também subiram. E pela terceira vez o soldado anunciou:

— Bahamuts: Doma, Fígaro e Vector, permissão concedida para decolagem.

Os regidos sentiram um leve tremor, dessa vez eram eles que subiam. Estel não conseguia crer que três coisas que tinham envergaduras de porta-aviões conseguiam voar. A luz do sol fazia o cenário tornar-se mais irreal e sensacional ainda. Então todos da cabine se levantaram e olharam para o oposto de onde os jovens estavam. Eles olharam na mesma direção também. Uma figura diminuta estava numa varanda do castelo real. Rei Baron. Ele fez um gesto com as mãos que Cecil traduziu em palavras de comando:

— O rei nos dá a sua benção! Que se abram as Asas Escarlates!

Os soldados voltaram para seus acentos e posições. Um barulho metálico encheu o ar, vindo de todos os navios voadores. Os regidos viram os mastros com velas se abrirem, revelando um tecido estranho, meio transparente, que brilhava em inúmeras hexagonais avermelhadas quando o sol batia nele. Então eles começaram a se movimentar. Os jovens deixaram seus olhares na figura do Rei Baron e nos enormes muros de Arthuria, perguntando-se quando os veriam de novo.





— Quanto tempo demora a viagem até Mysidia? — perguntou Estel, os olhos pregados na vastidão abaixo dele.

— Se nada nos atrasar, três dias. — respondeu Cecil, que ao contrário do outro tinha os olhos concentrados nos navios.

Ele, Estel e Solenni estavam no convés. A sensação de irrealidade ainda pairava sobre os olhos dos dois regidos observando os gigantes que voavam. Abaixo deles uma imensa planície irregular verde, com muros de rochas brancas a enfeitá-la, algumas tão altas que pareciam penhascos. Seu nome era Calimanto. Aqui e acolá se erguiam torres cinzentas que Cecil disse serem postos avançados. O defensor e a espártaca encontraram um lago onde inúmeros cavalos de pelagem azul-escura, três pares de patas, crina e rabos prateados, com alguma coisa mais clara nas costas que eles não conseguiram identificar, bebiam água. Alguns deles pareciam bem nervosos, balançando as cabeças e trotando ao redor do resto do grupo constantemente.

— Uau... — foi o que o defensor conseguiu dizer.

— Bonitos, não são? — perguntou Cecil, aproximando-se. — São Sleipinires. Não são comuns dessa planície, eles vivem no Vale Bifrost, no meio daquelas montanhas ali adiante. Soube que o vale ficou frio demais, até para eles. Tiveram de vir para cá atrás de água e comida, mas isso assinou a sentença de caça deles.

— Por quê?! — espantou-se Solenni.

— Estão vendo que as costas deles são mais claras? Aquilo é uma camada de um mineral muito raro e, conseqüentemente, cobiçado; além que as crinas e os rabos são de fios de prata de verdade. Nos filhotes tudo isso se torna mais puro. Por conta disso Calimanto encheu-se de caçadores clandestinos.

— E não se pode fazer nada por eles? — questionou Estel.

— Infelizmente não, seria necessário um contingente de soldados e caçadores de que não dispomos. A planície é enorme e cheia de lugares onde só os bandidos sabem se esconder, fora que é necessário o flagrante de que realmente estavam caçando esses animais. São homens sem escrúpulos, capazes de tudo para conseguir o que querem.

Estel e Solenni fixaram a expressão “capazes de tudo” em suas mentes, enquanto os sleipinires voltavam a correr pela Planície Calimanto.

À noite do terceiro dia, Cecil devolveu as armaduras e roupas de Estel, Solenni e Luan. Eles não conseguiram reconhecê-las. Todos os rasgos e imperfeições das vestes foram consertados e se podia jurar que entre as linhas do tecido havia linhas metálicas. O peitoral de Estel foi coberto por uma camada grossa e fosca de metal cinza-azulado, o mesmo que cobria sua braçadeira em placas sobrepostas, seu bracelete e caneleiras. O peitoral, os braceletes e as sandálias com joelheira de Solenni exibiam uma cobertura escovada de um metal branco. Luan ganhou uma cota de malha feita de mínimas argolas cinza-escuras peroladas, onde no peito e nos ombros havia placas finas sobrepostas. Tudo era tão leve e perfeito que os garotos nem sentiram a diferença ao vestir.

— Mitrilo para o defensor, diamantina temperada para a espártaca, e platina-chumbo para o magussírio. — falou Rosa, sorrindo. — Esses são os presentes que o meu pai oferece aos Regidos de Eternia. Luan...você está se sentido bem?

— Hã?! Quem?! Eu?! Ah, sim! Sim, estou...é só sono. — falou Luan, que se apoiava no cetro para não cair.

— Você está desse jeito desde o primeiro dia, parece um zumbi. Só acorda para comer. — comentou Kain, sorrindo com malícia. — Você tem medo de altura, não é?

— Não. — respondeu Solenni. — Se fosse isso, ele não teria dormido pendurado no para-peito ontem.

— Relaxem, eu tô legaaaaaaaaal... – continuou o magussírio, entre um bocejo. — Pensei que Estel e Solenni já tivessem explicado para vocês...eu passo o dia deitado, mas não dormindo. É que o velho não me deixa descansar.

E saiu, desejando boa noite a todos.

— O que ele quis dizer com aquilo? — questionou Kain, tão confuso quanto os outros dois.

— Vamos explicar. — disse Estel, rindo.


Antes de irem dormir, Estel e Solenni voltaram ao convés para ficarem um tempinho a sós. Enquanto olhavam para o céu sem lua, mas coalhado de estrelas, o defensor contou sobre o sonho que tivera na noite anterior, o que não foi nem um pouco romântico, mas falar com a espártaca acalmava. E ela sabia disso, tanto que, mesmo que não soubesse traduzi-los, ouvia com muita atenção. Havia chamas, água, pedras e vento se batendo; uma sala em preto e branco; pessoas gritando, sendo uma voz de homem bem mais forte que as outras; e no final um homem metade felino que corria.

— Bom, dessa vez, eu sei pelo menos o que significa uma parte do seu sonho. — disse ela, deixando Estel intrigado. — Conversei com Cecil, queria saber exatamente com quem ou com o que eles estavam em guerra. E ele me disse: Atmas. São espíritos naturais dessa planície que se manifestam na forma de algum dos quatro elementos.

— E por que eles estão em guerra? — questionou o defensor, mais confuso ainda.

— Isso Cecil não soube me responder. Antes os Atmas conviviam pacificamente com os mysidianos, até ensinaram a eles como manipular os elementos. Mas agora...dizem querer tirar deles o que mostraram...

Descobrir que uma parte do seu sonho tinha um sentido não deixou Estel lá muito animado, mais uma vez sonhava com coisas ruins... Só de imaginar o que poderia acontecer sentia dores na cabeça. Solenni então encostou sua testa na do defensor, tentando tirar a agonia que o incomodava.



Quando o sol mal riscou de luz o horizonte, todos já estavam de pé. Estel, Solenni e Luan permaneceram ao lado de Cecil na cabine principal, enquanto Rosa e Kain se juntavam a primeira tropa que desembarcaria.


—Por medidas de segurança, ninguém fica no lado de fora quando entramos no espaço aéreo de Mysidia. — comentou Cecil, visivelmente tenso. — Um ataque pode acontecer a qualquer momento.


Os regidos engoliram seco, até mesmo Luan, que depois de ouvir aquilo, perdeu o sono. A possibilidade de que o monstro voador em que estavam poderia ir de encontro ao chão fez a sonolência se transformar em tensão em dois segundos.

O Reino de Mysidia foi tomando forma logo abaixo deles. Um reino-jardim cortado por ruas curvas de pedras brancas com construções que lembravam mais templos, igrejas, oratórios e altares, com inúmeras e exuberantes fontes de água e pátios lotados de cascalhos vítreos e coloridos. Era como um vitral gigantesco.


— Preparar para o pouso. Formação de meia lua no lado leste. — anunciou Cecil.


A mensagem fora transmitida para os outros navios, que desceram até o chão numa formação semicircular. Ao redor do reino já havia tantos outros navios, alguns com sinais de danos (alguns deles bem assustadores), onde muitas pessoas se mexiam por dentro e por fora. Cecil deu mais algumas ordens e chamou os jovens a seguirem-no. Rosa e Kain os esperavam na saída do navio, onde muitos soldados já entravam em formação. O Bahamut Fígaro tocou o chão com uma incrível suavidade para seu tamanho titânico. Enquanto os soldados se espalhavam para cumprirem suas ordens, o grupo tomou um dos caminhos de pedras brancas que levavam ao interior de Mysidia. Lá, Estel, Solenni e Luan viram que o reino também exibia marcas da guerra, com seus muros quebrados, construções destroçadas e monumentos caídos.


— Vamos levá-los diretamente ao Sábio Efraim, falaremos sobre a litta. — falou Rosa, um tanto ansiosa. — Tenho certeza de que ele reconhecerá vocês e as suas insígnias. Queremos que o caminho de vocês esteja livre, não queremos atrasá-los.

Estel, Solenni e Luan entreolharam-se, acabavam de decidir por eles o que eles iriam fazer.

As pessoas do reino andavam apressadas e ansiosas, contudo não deixaram de olhar para os novos três transeuntes ao lado dos nobres de Arthuria. E os regidos não puderam deixar de notar os mysidianos, os quais andavam com roupas multicoloridas, leves e bastante adornadas, nem parecendo estarem no meio de um conflito, o máximo que alguns carregavam eram cetros brilhantes e bastonetes incrustados de jóias.

O grupo se dirigia a uma construção que lembrava uma igreja gótica, cheia de pontas e detalhes esculpidos na pedra. À frente dela havia um homem de meia-idade vestido de preto, branco e púrpura. Ele tentava manter a calma entre um grupo de pessoas que discutia sem parar. Mesmo de costas ele notou que se aproximavam e virou-se. Os olhares das pessoas se viraram junto com ele, o que, segundos depois disso, causou uma reação indignada e desesperada de uma delas:

— Meu Senhor Efraim! Pelo Vigilante Altíssimo!! Veja!!! É ELE!! O...O...DESGRAÇADO!!! O ASSASSINO!! O LADRÃO!!!

O dedo acusador e a voz incisiva da pessoa pesavam sobre Estel. Houve gritos e exclamações enquanto a voz raivosa do outro enchia o ar repetidas vezes. Entretanto o regido nada pode fazer para se defender, houve um lampejo branco sobre seu rosto e ele desmaiou.

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