quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Coroas de Eternia - O Escudo, A Espada e O Cetro

Décimo Escrito – Cetro Fafnir


Estel, Solenni e Luan finalmente deixaram a imobilidade para começar uma conversa.

— Bom, se há pressa, então vamos embora logo. — disse o garoto, começando a tirar as coisas da mesa. — Não quero outra discussão com meu pai.

— Mas você já é maior de idade, não? Seu pai não pode proibi-lo. — comentou Solenni.

— Isso é verdade, Solenni. — confirmou Nívea, entrando na casa com um semblante triste. — Mas o motivo de Luan é outro. Sou eu.

— Claro que é! Droga! — exclamou ele, explodindo de indignação. — Eu não quero deixar você sozinha! Aquele...aquele desgraçado não vai aparecer aqui para ajudar se você precisar, se sentir alguma coisa! E aí?! Vai ser igual à mamãe?! Mas se eu não for, nunca vamos ter a sua cura...!!

E o garoto, bufando, saiu da sala.

— Não se preocupem, vai ficar tudo bem com ele. — disse Nívea, calma, mas com a tristeza ainda mais aparente. — Ele nunca superou o abandono do nosso pai...e mais ainda a morte da nossa mãe. Eu vou falar com ele...saber o que precisa para viajar. E quanto a vocês, como médica, eu recomendo que fiquem aqui mais dois dias, pelo menos.

E a jovem saiu. Um silêncio constrangido e melancólico foi o que ficou.

— Não acha melhor voltar para se deitar, Estel? — indagou Solenni, quebrando aquela mudez incômoda.

— Eu não vou consegui mais dormir...não depois do que eu ouvi. — respondeu o outro, sério.

—........... Me diz uma coisa, como conseguiu quebrar a serpente daquele jeito?

— Bem...é quase inacreditável. Você lembra aquele escudo de luz verde que eu fiz? É, foi com ele. Fiz três vezes.

— Como?!

— Quando Luan apareceu para tirar você dali e fez aquela cúpula, e aí a cobra se jogou para cima dele, eu tive a idéia. Se aquela luz verde conseguia quebrar vespertrita, por que não uma cobra de pedra? E como eu tinha ficado sozinho, ou tentava alguma coisa ou era morto.

— Mas...naquela noite...você mesmo disse que fez sem querer! Como conseguiu repetir três vezes?

— Você lembra como se sentiu quando estávamos sendo cobertos pelos cristais?

— Sim... Com muito medo, mas também uma vontade louca de fazer alguma coisa.

—Pois é, eu também. Só que, comigo, veio aquela palavra estranha na minha boca...tão forte que pensei que fosse vomitar, só que eu falei. Na noite da serpente senti a mesma coisa, mas de propósito.

— ?!!

— Eu vou explicar. Depois que você saiu, eu procurei pela lanterna. Por sorte ela estava perto. Coloquei uns pedaços de madeira dentro e o fogo aumentou muito. A cobra então me achou. Fiquei parado esperando ela atacar, me forcei a sentir aquele medo de novo e ver se eu conseguia fazer o escudo verde.

— Você ficou louco! Poderia ter morrido...!!

— Eu sei...sei muito bem. Mas no final acabou dando certo.

— É... mas pelo que Magnus falou... acho que vamos nos ter que nos arriscar muito assim a partir de agora...

E o silêncio veio outra vez. Estel e Solenni se olhavam sem saber o que dizer. O defensor sentia uma mão gigante apertar sua garganta e uma pedra dentro do peito. Lembrava o que Magnus falara...que a provação de Solenni seria a pior de todas. O que poderia ser?! Será que essa agonia da dúvida ficaria ali entre os dois por muito tempo?!

— Solenni...quando acontecer...isso que o Magnus disse, por favor, deixa eu te ajudar. — pediu Estel, desabafando, a voz baixa e séria, encostando a testa no ombro da espártaca. — ...vamos fazer como a gente combinou, como Mestre Leônidas falou. Eu não quero que nada de ruim aconteça com você.

— Você não tem que me pedir isso, Estel. Sei que se eu precisar, você vai estar comigo. — disse Solenni, também séria. Ela ergueu o rosto do defensor e deu-lhe um beijo na testa. — Eu também não quero que nada de ruim aconteça com você. Dessa vez eu não vou deixar que levem de mim outra coisa importante.

Estel e Solenni se abraçaram o mais forte que as dores no corpo permitiram. Seus rostos ficaram muito próximos por segundos silenciosos. Então Solenni encostou seus lábios no de Estel. Ah! A paciência tinha valido a pena, e como tinha. Depois ele só se deu ao trabalho de acompanhá-la. Eles não estavam ligando muito se Luan aparecesse de repente para fazer um comentário sem graça, ou Nívea os chamasse para subir e descansar. Por hora, o mundo podia explodir lá fora, eles só queriam se beijar.



Os outros dois dias passaram sem muitas novidades. Luan passava uma parte do tempo com Estel e Solenni querendo saber o que havia acontecido antes deles chegarem a Magussíria, e a outra parte Nívea que estava com eles tratando de seus ferimentos. Eles não achavam isso ruim de modo algum, porém, depois daquele primeiro momento, eles queriam um segundo, só que estava complicado conseguir sem ser na frente de alguém.

O Sr. Dimitri apareceu para tentar impedir o filho de ir, mas era definitivo e até Nívea permaneceu firme ante o pai. Luan estava de partida. Solenni notou que o homem saíra da casa como quem saía de um esconderijo, debaixo de um capuz e furtivamente.

No terceiro dia todos acordaram muito cedo. Nívea enfaixava Estel da altura dos rins até a base da coluna com um tecido grosso embebido com aquela substância mentolada.

— Seus músculos ainda estão inflamados, Estel. — disse Nívea. — Por enquanto, tente não fazer muito esforço. Se pudesse, prenderia você e Solenni aqui até a cura completa dos dois. Preparei uma caixa com vários tipos de remédios e ainda alguns ingredientes puros para medicamentos que precisem ser feitos na hora. Ensinei Solenni a manipulá-los, ela mostrou uma habilidade excepcional, além de que conhece bastante sobre plantas medicinais. Bom, espero que tenha sido o suficiente.

— Claro que foi, Nívea. — disse Estel. — Acha que cuidar e dar de comer a dois estranhos não é muito?

—Não, não é. Primeiro porque não são dois estranhos, pelo menos não tanto para serem desconsiderados assim. Segundo, vocês salvaram a vida do meu irmão, do meu pai, de Magussíria inteira. Mereciam muito mais, mereciam pelo menos um “obrigado” das pessoas daqui, mas o Conselho dos Anciões deu toda a glória para os acadêmicos...hipócritas! Agora, veja bem, continue passando essa pomada até que suas dores sumam por completo.

— Certo. E a Solenni?

— O tornozelo dela ainda está inflamado, mas se ela seguir a mesma recomendação que você, logo ficará boa. Mas, Estel, posso pedir que cuide dela além desse sentido? Solenni mostra-se muito séria e de caráter forte, só que eu sei que ela ficou abalada com o que Magnus disse... Está ansiosa, eu percebo. Luan colocou mais uma responsabilidade sobre ela.

— Mas você só me diz isso porque também acredita que ela vai te curar, não é?

Nívea se surpreendeu com a pergunta. Ela passou um tempo em silêncio e finalmente respondeu:

— Sim...eu não quero morrer, Estel. Apesar dos sonhos de Luan e dos avisos de Magnus...eu estava em dúvida se ficaria curada da doença. Até agora. Sei que não é justo fazer isso, ela tem todo direito de ficar magoada comigo...mas não consigo, nem quero, fugir da possibilidade de viver, Estel. Eu sinto muito...

— Não precisa se desculpar, Nívea, não pode ser crime sentir vontade de viver. E outra, a Solenni não vai ficar com raiva de você, pelo contrário, ela deve estar assim com medo que você piore e até morra por ela não conseguir fazer o que Magnus falou... Solenni viu os pais e um amigo morrerem na frente dela...se acha culpada. Ela não quer que isso aconteça de novo, entende?

— Entendo. E entendo também que fiz meu pedido á pessoa mais indicada mesmo. Eu sinto que vocês têm um cuidado muito grande um pelo outro, sempre perguntando como está, onde está. Não sei se é mais um comentário desbocado do meu irmão, mas, vocês estão namorando?

— Bem... eu estava em dúvida se aqui vocês chamavam assim também... a gente não falou nada exatamente com esse termo....mas a gente se beijou uma vez e...

—...e desde então nem eu nem meu irmão damos folga para vocês dois?

—.......é.

— Oh, Estel, perdoe-nos, nem prestamos atenção. — a jovem sorriu, sinceramente penalizada, mesmo não vendo o rosto vermelho-vivo do outro. — Bom, acho que Luan prestou atenção e estava implicando com vocês...

— Tudo bem, nós também não avisamos...e nem pedimos para o Luan sair.

— Está feliz, não é? Sua voz está diferente...empolgada, mesmo que meio insegura.

— Estou sim...só que...eu fico pensando o que vai acontecer quando isso tudo acabar. Perseu disse que eu iria voltar para o meu mundo...mas como vai ser isso? Vou simplesmente desaparecer e não conseguir falar com ninguém como aconteceu quando eu vim para Eternia? E aí? Nunca mais vou ver ninguém? Nunca mais vou ver a Solenni?

— Sabe, é muito bom ver que você acredita que isso um dia vai acabar, mas no sentido que vai dar certo. Quanto ao seu medo, Estel, não posso confortá-lo dizendo que fazendo isso ou aquilo você vai resolver esse problema... mas uma coisa eu garanto, será como você quiser que seja.

— Será que é tão simples assim?

— Como eu disse, se você quiser e lutar por isso, será. Agora vou descer, logo haverá café na mesa. Solenni está subindo, vou atrasar um pouquinho o meu irmão antes dele vir aqui chamar vocês.

Estel ficou alguns segundos refletindo o que a outra dissera, enquanto vestia sua roupa de viagem e as proteções. A mesmas palavras de Perseu.

— Está tudo bem? — perguntou Solenni, colocando a mão no seu ombro. Ela também já estava pronta para partir. As ataduras de seu tornozelo eram visíveis sob a sandália. — Seu olhar está tão distante...pensando em alguma coisa?

— Sim, em algo muito sério. — respondeu o outro, com um sorriso para disfarçar. — Em como te pedir...

— Já disse que não precisa pedir. É só fazer.

Então Estel a abraçou e a beijou. Aquela era uma sensação incrível e ele não estava disposto a ser separado dela indo de volta para seu mundo sem mais nem menos. Ele queria ver a mãe de novo, verdade, sentia muita falta dela, pedir desculpa pelo sumiço. Contudo, ele também não queria ficar longe de Solenni. Estel não fazia a mínima ideia de como ia resolver esse impasse, porém, se o que Perseu disse acabou dando certo, porque sendo Nívea falando não daria? E acreditou nisso, enquanto Solenni apertava o abraço como se soubesse o que era e acreditasse também.


A refeição foi farta, mas apreciada rapidamente. Todos estavam sérios, falando à mesa apenas para revisar se o que estavam levando era o suficiente. Os jovens trocaram olhares entre si imaginando o que poderia vir dali em diante. Em seguida eles reuniram toda a bagagem na varanda da casa; havia uma mochila a mais só com mantimentos. Estavam prontos para partir.

—É, infelizmente não posso conjurar comida no nada. — disse Luan, sorrindo. — Mas, louvada seja a magia, eu posso encolhê-la. Temos aqui comida o suficiente para quatro refeições durante alguns meses.

— Estel, Solenni, cuidem-se, vocês não estão plenamente recuperados. — falou Nívea. — Tudo que precisarem para medicamentos está nessa maleta, é só pedir para Luan retorná-los ao tamanho original. Solenni, lembra-se de tudo?

— Com certeza. — respondeu Solenni. — E eu agradeço.

— Não há de quê, você tem muito jeito para a coisa. Quanto a você, Estel, tente não sobrecarregar as suas costas por enquanto, tudo bem? Qualquer coisa, dê sua mochila para Luan carregar.

— Certo. — disse Estel, rindo. — Juro que vou tentar, mas não garanto.

— E para mim? Não tem nada a dizer a não ser “joguem tudo pra cima do Luan”? — indagou o magussírio, num a falsa indignação.

— Não. Eu tenho a fazer.

Nívea puxou o irmão para um abraço muito apertado, que ele retribuiu.

— Cuide-se. — disse ela.

— Você também. — falou o outro, numa voz baixa. — Com certeza Magnus virá aqui mais vezes, já que eu não estarei e nem aquele...aquele lá vai ter a decência de vir perguntar como você está. Eu estou preocupado, Nívea...

— Vai dar tudo certo, Luan. Veja, antes de ir embora Magnus me deu esses pingentes. Disse que nos manteriam ligados; se acontecer alguma coisa, qualquer coisa, vocês dois vão saber. Está azul agora, quer dizer que está tudo bem, quando ficar branco, será o sinal. Mas vou fazer de tudo para ficar bem, para que a jóia nunca mude de cor, prometo.

O tal pingente, preso numa cordinha negra, era uma simples pedra redonda de lápis-lazúli. Luan amarrou o dele no pulso. Olhou para a irmã um tanto triste, enquanto ela lhe dava um sorriso aberto.

Então partiram. Luan os levou para o portão oeste do reino, o mais afastado e tão movimentado que ninguém daria muita atenção para eles. Lá era o depósito do reino, onde carros, carruagens, balões e entre outras engenhocas que carregassem mercadorias passavam de um lado para outro.

— Sair por aqui não atrapalhou não, né, Ruivinha? — perguntou Luan.

— Não se preocupe. — respondeu a espártaca. Ela não fizera objeção ao apelido, o qual o outro começou a chamar do nada. Nem Estel achou ruim, lembrou-se de ter visto algo parecido na padaria do Seu Luciano, mas, no caso, tratava-se de um garoto e sua irmã loira com oito anos de idade. — Só teremos que subir mais um pouco para chegar à direção certa.

Saindo de Magussíria, eles decidiram desviar da estrada e das imediações do reino. Não queriam que ninguém os visse, não havia necessidade disso.

Apesar de o dia estar tão claro que doía em suas vistas, o horizonte para o qual caminhavam era cinzento e pesado. Estel queria que isso fosse apenas um sinal de chuva, e não de mau agouro.

— Solenni, não precisa ir tão rápido, vai forçar o seu tornozelo. — disse Estel, vendo ela os guiar quase correndo.

— Eu sei, mas não estou gostando daquelas nuvens. — respondeu ela, tensa. — Parece que estão nos seguindo, sei lá.... Não estão sentindo isso?

Os garotos não tiveram como negar, o céu escuro realmente causava calafrios e avançava rapidamente sobre a planície. Então a temperatura e o ambiente mudaram bruscamente. A luz se escondeu atrás de pesadas nuvens cor de chumbo e ventos frios e cortantes entortavam os galhos das árvores. Os obeliscos de pedra que Estel e Solenni viram antes existiam ali também e pareciam encolher-se de medo diante do céu. No instante seguinte, um estrondoso trovão assustou os garotos, parecia que alguma coisa estava se quebrando lá em cima.

E a chuva veio.

—Pela Coroa Branca!! De onde saiu tanta água?! — gritou Luan, para que pudesse ser ouvido acima do som da água e dos trovões. — Isso não pode ser normal!!

—Então só pode ser uma coisa! — disse Estel. —Não é seguro a gente ficar no espaço aberto! Por enquanto, ainda bem, só vieram os trovões!!

—Bom, a tal proteção da Coroa Branca deve estar evitando pelo menos isso! Porque no quesito “deixar seco” ela falhou terrivelmente!

— Vamos encontrar um lugar para ficar! — falou Solenni. — Todo esse barulho está me deixando maluca...esses trovões para mim parecem gritos, a água tem som de gente chorando! Minha cabeça está latejando!

Os garotos olharam preocupados para a espártaca, ela cobria os ouvidos com mãos brancas de frio, tremia dos pés a cabeça. Apressaram o passo.

Ficar encharcado até os ossos foi apenas o começo. A terra, de tão molhada, virou um gigantesco tapete de lama que prendia os pés; os ventos ficaram mais fortes piorando a sensação de frio; e a visibilidade caíra quase para zero, tamanha era a massa de água despejada do céu.

— Solenni, sabe de algum lugar por aqui para a gente ficar? — indagou Estel, preocupado com a expressão de dor dela.

— Ali adiante, estão vendo o morro?! — apontou ela. — Se não estou enganada ali há uma caverna, os Lupinaras me falaram sobre ela.

— Certo. Vou iluminar o caminho. — disse Luan, acendendo uma luz na jóia de seu cetro, o que melhorou alguns centímetros a visibilidade deles.

Aos trancos e barrancos eles conseguiram achar o lugar. Era uma abertura grande o suficiente para comportá-los com segurança, mas estava bastante úmida.

— Tudo bem, vamos dar uma geral aqui. — declarou Luan, livrando-se das bagagens e da capa ensopada. — Estel, tenta achar alguma coisa pra fazer uma fogueira.

— Tá. — respondeu Estel. — E você, senta aqui, estou vendo daqui seu tornozelo inchando.

O defensor ajudou Solenni a se recostar numa das pedras da caverna. Ela, geralmente, recusaria de cara a sugestão pois não gostava de ficar inativa, mas alguma coisa a estava incomodando muito, não só a dor no tornozelo com o dobro do tamanho. A espártaca estava concentrada, como se estivesse tentando lembrar algo... ou, quem sabe, escutar algo. Estel lembrou o comentário dela alguns minutos antes e se arrepiou.

—Toma cuidado. — disse ela, somente, um tanto assustada.

Estel respondeu afirmativamente e saiu para o chuvaral, contudo teve a precaução de levar o escudo. Alguns minutos depois ele voltou. O garoto notou que o ar da caverna estava morno, as paredes e o chão tinham sido secos. Havia também duas cordas ao longo do lugar cheias de roupas penduradas, algumas ainda pingantes.

— Ei, fecha os olhos! — pediu Luan, aproximando-se.

O magussírio apontou o cetro para Estel, que fechou os olhos em reflexo. O defensor sentiu uma lufada de ar morno percorrer-lhe todo o corpo. Ao abrir os olhos, viu-se e sentiu-se completamente seco, mas com a aparência de quem havia acabado de sair de uma secadora de roupas gigante.

—E aí?! — questionou Luan, esperançoso, continuando soltar o jorro de ar nas roupas do varal improvisado.

— Agora que você secou tudo, acho que estão usáveis. — respondeu Estel, desenrolando a capa do escudo, onde havia muitos pedaços de madeira. Ele foi até Solenni. — E você? Continua...

—Não, ouço chuva e trovões mesmo… — respondeu ela, sincera, com o olhar mais calmo. —Agora só a dor me incomoda, mas isso é resolvível.

Instantes depois uma fogueira estava acesa para alívio dos três. O magussírio, com mais uma de suas magias, criou uma chama que não produzia fumaça, apenas o calor e a luz preenchiam a caverna.

— Estou acabado.... — revelou Luan, jogando-se em uma esteira. —Diz que a gente vai ficar aqui até a chuva passar...

—Esse é plano. — falou Estel. — Mas e se não passar?

— Vamos continuar, mesmo que debaixo dela. — concluiu Solenni, ela mesma não muito empolgada com a idéia. — Não podemos estacionar aqui. Vamos esperar algumas horas.

— É, de certa forma eu já sabia...então, vou aproveitar esse tempinho seco de espera e tirar o cochilo se não se importam. — declarou o magussírio, enrolando-se como um casulo em suas cobertas e dando as costas para os outros. — Bom namoro aí “procês” dois! Mas sem fazer muito barulho, por favor.

E dormiu, mais rápido do os outros dois pensavam ser possível. Solenni terminou de enfaixar novamente o tornozelo e sentou-se ao lado de Estel. Eles se descobriram tão cansados também que dormiram encostados um no outro mesmo.



O magussírio caminhava maravilhado numa floresta muito exótica. Suas árvores, ao invés de comuns folhas verdes, exibiam diferentes jóias lapidadas e metais moldados nesse formato: rubi, safira, turquesa, esmeralda, ouro, prata, topázio, diamante... Os troncos e raízes eram de madeira mesmo, mas mostravam uma tonalidade mais clara ou mais escura dependendo da cor na copa. A grama do chão era verde-clara, que se transformava num tapete dançante de estampas coloridas quando a luz da lua cheia e o vento batiam nas árvores. Havia muita beleza ali, era verdade, mas também uma aura de melancolia, de tristeza, de lembrança. Mais adiante, a maior, a mais diferente e, com certeza, a mais bela das árvores. Era gigante, branco-pérola da raiz às folhas, translúcida, e com veios por onde correm a seiva cheios de uma suave luz prateada. Sacraluna. O nome da árvore...mas como sabia?! Nunca tinha visto uma daquelas antes! Uma pessoa estava debaixo dela, rezando. Quem seria? Luan não teve tempo, nem voz para chamá-la.

A espártaca achava-se novamente no oásis que agora era seu único sonho. Palmeiras, tamargueiras e jasmineiros cobriam de verde o ocre da areia, que se perdia num deserto adiante. Era manhã alta ali, o sol ardia sem queimar. Ali também havia um lago de águas azuis rodeado de papiros e flores de lótus brancas deslizando na superfície. Na outra margem do lago havia um jovem sentado na posição de escriba olhando profundamente para a água.

— Você ouviu o chamado, esteja preparada para atender. — disse ele, numa voz grave. E séria, tanto quanto a dela mesma.

Mas tudo se desmanchou em areia quando Solenni tencionou chamá-lo.

Dessa vez ele iria conseguir. Mais uma vez na praia cinzenta, Estel correu até o porto de pedra. Ofegante, subiu os degraus do lugar e aproximou-se da mulher que sempre ali estava. Notou que o mar escurecera e agitara-se ligeiramente. Era uma mulher de meia-idade lindíssima, com traços gentis, cabelos dourados em ondas e olhos de um castanho-claro luminoso.

— Eu nem acredito que finalmente vamos poder conversar, mesmo que por pouco tempo. — disse ela, sorrindo suavemente. Havia um quê de tristeza em sua voz. — Meu nome é Vésper. Muito bom vê-lo pessoalmente, Estel, eu que a muito olho por você.

— Que lugar é esse? O que você está fazendo aqui e como me conhece? — indagou Estel num fôlego só, antes que o sonho acabasse de qualquer maneira. — Por que sempre sonho com você e com coisas estranhas depois?

A mulher resignou-se a sorrir. Ela parecia muito abatida e cansada atrás da beleza. Respondeu:

— Infelizmente, Estel, não será possível agora eu lhe explicar tudo. Quando sua alma se fortalecer, aí sim...mas também, quando essa hora chegar, haverá uma escolha a se fazer. Para você fazer. Será um momento difícil, contudo eu sei que vai terminar tudo bem, afinal, seu coração é tão iluminado e inquebrável quanto vespertrita. E eu, Rainha Vésper, velá-lo-ei como sempre tenho feito. Olhe para a Estrela e ela o guiará ante toda a escuridão.

O calor daquela frase o invadiu de novo, bem mais forte. Uma onda grande quebrou na praia. O sonho começava a se desmanchar mais uma vez e a voz de Estel não conseguiu sair para de alguma forma interromper isso. Em seguida, tudo ficou branco. Do meio desse branco surgiu uma flor de lótus da mesma cor com o miolo amarelo-ouro, belíssima, que segundos depois, liquidou-se em sangue. As linhas escarlates denunciaram quem fazia isso à flor, esmagando-a: uma mão branca. Após isso veio o negro absoluto. O risco amarelo que sempre lá estava abriu-se mais um pouco. Por último, um jorro de fogo azul-prateado queimou sua mente.

Estel, Solenni e Luan acordaram. O primeiro, intrigado; a segunda, confusa; o terceiro, assustado. Eles olharam-se e tiveram a mesma intenção, traduzida pelo magussírio:

— Vocês sonharam, não foi? Com algo estranho e sem sentido, mas muuuuito familar, né?

Os outros dois mexeram a cabeça afirmativamente. E cada um contou o que sonhara.

— Vocês sabem de alguma rainha em Eternia chamada Vésper? — indagou o defensor.

— Não. — disse Solenni, pensativa. — Nem de agora, nem de antes. Se pelo menos pudéssemos falar com os Vigilantes, quem sabe eles pudessem traduzir esses sonhos.

— É...mas é meio impossível, não fazemos a mínima idéia de onde estão. — falou Luan, dando de ombros. — Pelo menos alguma coisa para entendermos bem, a chuva passou.

Os garotos ergueram-se e foram dar uma olhada lá fora. A chuva e o vento não poderiam ter feito estrago maior: muita lama, emaranhado de galhos partidos, árvores inteiras ao chão e armadilhas em forma de poças de água. Eles teriam uma caminhada penosa pela frente. E apesar do sol brilhando, o lugar era sombrio e o ar ainda estava muito frio.

— Nossa...isso anima muito a gente a caminhar. — suspirou Luan, passando a mão pelo rosto. — Bom, pelo menos vamos beber alguma coisa bem quente antes de ter o desgosto de andar por isso aí.

De volta à caverna, uma chaleira começava a fumegar e o cheiro que saía dela lembrava o de caramelo.

— Não podemos esperar o chão secar e a grama crescer de novo, Ruivinha? — indagou Luan, implorando.

— Preciso responder? — colocou Solenni, simplesmente.

Estel não pode negar que sentiu o coração doer quando a ínfima esperança de Solenni dizer “sim, também pensei a mesma coisa" se desmanchou. Estava tão encorajado quanto Luan a andar por aí naquele chão. Suspirou e tomou um gole da bebida que o magussírio lhe servira. Havia mesmo caramelo ali, e havia também chocolate branco e café, não podia ser melhor.

Todas as coisas foram nova e devidamente empacotadas, então eles partiram.


E assim vinte e cinco dias se passaram.


Após a área alagada, Estel, Solenni e Luan adentraram numa outra parte da planície onde a vegetação batia acima da cintura deles e o chão era mais acidentado, ondulado por pequenos morros. Os obeliscos de pedra não existiam mais. O sol voltou a fritar as cabeças deles. Pequenos riachos ladeados de árvores baixas e moitas deram o sinal para Solenni que estavam no caminho certo.

Seguindo a água, os regidos viram nascer um rio largo, caudaloso e de águas cinza-escuras: o Rio Argênteo. Subindo o rio, a vegetação tornou-se mais abundante e unida até virar uma floresta. Contudo não era uma floresta qualquer, desde a mais tímida flor até a mais grandiosa das árvores variava do cinza-prata ao branco-acinzentado, como quem deixa algo muito tempo guardado e acumulando poeira ao ponto de que não se veja mais a cor original. O vento batia em enormes fungos felpudos em forma de abajur, os quais soltavam sementes cheias de fiozinhos brancos parecendo flocos de neve. E apesar disso, ela não era feia, ou muito menos alérgica, era fantástica. A Floresta Cinis.

Instalados numa área da floresta onde o Rio Argênteo se acalmava e formava inúmeros espelhos d’água, Estel, Solenni e Luan aproveitavam algumas horas de descanso depois do almoço. Com o magussírio fazer qualquer coisa tornou-se mais fácil e confortável. Havia barracas para cada um que se montava com um estalar de dedos, com espaço o suficiente para se dormir e guardar as mochilas; panelas, talheres, mantimentos e entre outras coisas estavam todas ali em miniatura na mochila de Luan ou na maleta que Nívea arranjara. Não que ele agora fazia tudo, mas o próprio falava “Pelo amor do Sábio-Rei, eu não passei quase 18 anos numa escola de magia para ficar segurando o que sei fazer! Fica assim: vocês velam pela minha segurança enquanto não chegamos ao Cetro e arranjam coisas que eu não posso tirar do nada, eu faço a comida e monto o acampamento, e cada um cuida das suas roupas sujas, combinado?”. E assim ficou.

— Ah...nada melhor que ficar de molho na água numa tarde abafada. — comentou Estel, que boiava a esmo, olhando para teto cinzento da floresta cortado aqui e acolá por pedaços do céu azul.

O magussírio e o defensor cuidavam do acampamento à beira-rio enquanto Solenni tinha um pouco de privacidade para se banhar em outro lugar.

— Abafada e entediante... Sabe, acho que eu vou dar uma volta por aí. — falou Luan, com malícia na voz. — Quem sabe eu encontre uma ninfa de madeixas ruivas num desses lagos...

— Tudo bem, mas é por sua conta e risco! — respondeu Estel, que para surpresa do magussírio, riu alto. — O último que tentou alguma coisa com ela teve a mão cortada. E mesmo que você tente ficar invisível ou coisa assim, vou fazer questão de te dedurar.

— Calma, ô ciumento, tava só brincando! — Luan riu, mas, de repente, ficou sério. — Ei, mas como assim “o último que tentou alguma coisa”? O que aconteceu com ela?

Estel saiu da água, trocou-se e sentou-se ao lado do outro para contar o que a própria Solenni lhe falara, sobre o estranho se passando por regido que tentou violentá-la. O magussírio mostrou-se tão indignado quanto o defensor ao final.

— E Mestre Leônidas, o avô dela, me disse que ela foi muito boa em cortar apenas a mão de quem tentou fazer o que ele queria... — terminou Estel.

— Mas que canalha!! — exclamou Luan, que em seguida engoliu seco. — Acabo de perceber que você não é ciumento, é meu melhor amigo...nunca mais vou pensar numa besteira dessas. Vai um lanche aí?

— Na hora!

Enquanto Luan remexia em suas coisas, fazendo caretas de dor imaginando o que poderia ter acontecido ao tal homem e a ele mesmo, Estel imaginava outra coisa. O dia em poderia encontrar a tal “ninfa de madeixas ruivas”...com o consentimento da mesma, óbvio.

Alguns minutos depois Solenni voltou. Estava sem armadura, mas a espada estava sempre grudada em sua cintura. Os outros dois notaram que a feição dela estava mais séria que o normal.

— Ruivinha, chegou bem na hora! — falou Luan, sorrindo, estendendo para ela um prato com biscoitos. — Mas por que essa cara?

— Não façam nenhuma reação brusca, por favor. — disse ela, com voz baixa e se sentando ao lado dos garotos. — Acho que estamos sendo observados.

— Você viu alguma coisa? — indagou Estel, tenso.

— Não, mas estou com essa sensação incômoda faz algum tempo.

— Então o que fazemos? — perguntou o magussírio.

— Infelizmente, esperar que o que ou quem esteja nos observando se revele. Vamos fazer mais turnos de vigia durante a noite, esse lugar não é mais seguro.

Felizmente, a noite não poderia ter vindo mais clara. Uma lua cheia enorme num céu limpo refletida nas águas, uma fogueira bem viva e milhares de mini mariposas que brilhavam em azul-claro no ar.

— Você não vai dormir, não é? — disse Estel, sentando-se ao lado de Solenni e passando os braços sobre os ombros curvados dela.

— Estou tensa demais para isso. — falou ela, suspirando, cansada. — A sensação está pior...como se fosse acontecer alguma coisa a qualquer momento. Estel, é melhor você seguir o Luan, amanhã vamos andar muito.

— Essa é minha única opção? Meu sono vai embora só de pensar que vou ficar do lado daqueles roncos. Posso ficar admirando a paisagem? Não tem uma dessas no meu mundo.

— Quem sou eu para negar isso, aliás, nem quero.

— Me tira uma dúvida que agora eu lembrei...por que quando Luan me chamou de olhos-de-basilisco você ficou tão irritada?

— Porque essa é a pior ofensa que alguém pode dizer a outro. Está se falando que essa pessoa traz o mau-agouro, a morte, o inevitável, nos sentidos mais horríveis que essas palavras podem ter. O animal basilisco não mata a pessoa só no olhar de verdade, ele hipnotiza e depois dá o bote, daí a comparação.

— Você não tem medo do meu “mau-agouro”?

— Mau-agouro por mau-agouro, você sabe que eu também sou um em Espártaca. A gente se anula. Você não mata ninguém com esses olhos, Estel, eles no máximo brilham no escuro como essas mariposas.

— Vou considerar isso um elogio...

— Mas é. Eles são tão bonitos quanto. Como as pessoas viam seus olhos no seu mundo, Estel?

E sem nenhuma hesitação, Estel viu-se contando tudo o que se passou com ele, ou pelo menos o que ele lembrava. Solenni não demonstrou nada enquanto o defensor falava, só ouvia muito atenta. E Estel adotou a mesma postura, não fez drama em nenhum dos momentos, mesmo aqueles que ainda espezinhavam sua memória. Os dois nem notaram o tempo passar. Quando deram o primeiro e enorme bocejo, o céu já estava clareando para um azul leitoso. Estava tudo tão silencioso e calmo (além de sonolento), que eles encostaram-se a uma árvore mais próxima e dormiram.

— Ei, pombinhos, acordem aí! — chamou Luan, cutucando o ombro de cada um. — E, aí! Bom dia! Nossa, a farra tava tão boa assim que não quiseram me acordar?

Estel e Solenni ergueram olhos sonolentos para o outro.

— Huummm...café! — falou Estel, espreguiçando-se e sentindo o cheiro que atraía até as poucas mariposas que ainda flutuavam pelo lago. — Não pense besteira, a gente só ficou conversando e perdeu a hora, nada que um gole de café não resolva.

— A questão não é essa, “olhos brilhantes”! — retrucou o outro, revirando os olhos. — Quando eu disse que vocês “velariam pela minha segurança”, não queria dizer para me deixarem de lado como uma mocinha indefesa que só sabe cozinhar! Eu estava brincando! Eu sei me virar quando a coisa aperta, poderiam ter me acordado para vigiar. Agora estão aí os dois com cara amassada. Andem, vamos comer.

E saiu furibundo. Estel e Solenni olharam-se sorrindo, Luan era mais que um acompanhante agora, tornara-se definitivamente amigo deles.

— E aí, Ruivinha, falta muito para a gente chegar? — indagou Luan.

— Se apertarmos o passo chegaremos à cachoeira no final da manhã. — disse Solenni.

— E aquela sensação, passou?

— Não.

— Nem sei pra que eu perguntei...

— Então vamos resolver logo tudo e sair daqui. — concluiu Estel. — Eu espero que essa sensação não passe disso, uma sensação.

Encerrado o assunto, era hora de arrumar tudo e andar. O dia viera com muito vento, sacudindo bolinhas brancas no ar e ondulando as águas do rio. À medida que a caminhada se prolongava, um som peculiar aumentava: o de água caindo. Quando se tornou tão forte ao ponto de doer nos ouvidos, os jovens visualizaram uma bela imagem. Uma larga queda d’água cobrindo um paredão de rochas claras, a qual enchia um lago rodeado de plantas brancas.

— Certo, chegamos à cachoeira, mas e o templo? — questionou Estel.

— Está dentro dela. — respondeu Luan, sério, o olhar fixo no paredão à frente. — Sigam-me.

E o magussírio pôs-se a correr para dar a volta no lago. Estel e Solenni acompanharam-no.

— Ei, ele... — começou o defensor, intrigado, falando baixo para Solenni.

— Isso mesmo, ele está fazendo mesma coisa que você quando estávamos indo atrás da sua litta. — respondeu a espártaca. — Ele sabe para onde está indo.

E sabia mesmo. Seguindo alguns minutos pelo paredão direito da cachoeira, os regidos se depararam com uma porta de pedra desgastada, cercada de letras estranhas esculpidas em baixo-relevo, quase sumida no meio de plantas e musgos. Luan tomou a frente e encostou de leve sua mão na pedra.

A reação foi instantânea, a porta abriu-se. A seguir, um corredor cinzento e polido, coberto por galhos e folhas translúcidos cor de pérola. O magussírio reconheceu aquilo, eram da árvore do seu sonho, contudo estas não brilhavam, não tinham os veios com aquela luz prateada. Os jovens esconderam as mochilas em grandes moitas próximas e entraram, levando apenas suas armas. Após o corredor se abria um salão, os galhos e folhas continuavam por todas as paredes e o teto do lugar até chegarem à árvore de origem, enorme e bela, que ficava atrás de um pequeno altar com um pedestal.

— E agora... o que eu faço? — indagou Luan, que saíra do transe, mas seus olhos estavam fixos na árvore.

— Bom...eu tirei meu escudo de um círculo de pedra. — disse Estel.

— E eu peguei minha espada de uma arca. — falou Solenni. — Você soube como chegar aqui, mesmo nunca tendo vindo à floresta, vai saber como pegar a arma também.

Os três jovens então ouviram o som de um estalo. Pedaços de galhos e folhas começaram a cair do teto. Olharam para cima. Assustaram-se. Havia alguma coisa se remexendo ali...alguma coisa que tinha as mesmas cores e textura do teto.

— O que diabo é aquilo? — perguntou a espártaca, baixinho, a mão já cobrindo o cabo da espada. — Quando ela apareceu aqui?

— Agora mesmo. — respondeu o magussírio, tenso. — Não é natural, foi invocado. Tem alguém aqui com a gente.

— Cuidado!!! — gritou Estel.

Os três jovens pularam para o mais longe que conseguiram. No segundo seguinte a coisa do teto estava no chão, desmanchando sua cobertura camuflada. Não era tão grande quanto à serpente de pedra, mas ocupava consideravelmente o espaço do salão. Tinha cabeça de camaleão coberta de espinhos, corpo de crocodilo o qual no final da cauda longa fina exibia uma esfera maciça de osso negro, e todo o animal era coberto de escamas verde-claro metálico.

— Que bicho é esse?! — exclamou Estel, estranhando a bizarrice que era o animal.

— Já disse que não é natural, foi feito com magia. — disse Luan, rapidamente. — Cada parte...

— Vamos deixar as explicações para outra hora, certo?! — falou Solenni, sacando a espada. — Aquela coisa ali não vai esperar terminar a conversa!

O monstro revirou os olhos camaleônicos e escancarou a boca

— Merda!! Ele vai cuspir fogo!! — gritou Luan.

— O quê?!! — exclamaram os outros dois.

Uma luzinha azulada brilhou no fundo da garganta do bicho, e logo depois um jorro de fogo azul-prateado explodiu. Estel sentiu um arrepio ao lembrar-se de seu sonho. Pulou a frente e ergueu o escudo dizendo:

Sxildo Verda!!

Imediatamente a proteção verde levantou-se sobre os três. As chamas os cobriram. Tudo aquilo que não estava sob o escudo de vidro deformou-se e carbonizou-se.

— Por quanto tempo consegue segurar isso?! — questionou Luan.

— Ah, sei lá! —respondeu Estel, concentrando-se. —Sei que parece maluquice, mas esse fogo pesa! Melhor não demorar muito a gente pensar em alguma coisa.

— Preciso explicar uma coisa para vocês. Esse bicho é uma invocação, e só alguém muito bom em magia pode fazer uma. A pessoa cria uma imagem real daquilo que ela quer, e ela tem peso, solidez, às vezes até vontade própria. Mas pra isso o invocador precisa ter muito conhecimento sobre aquilo que vai “criar” para que não haja nenhuma deformidade ou falha. É muito, repito, muito mesmo, raro a pessoa misturar mais de duas características de coisas diferentes numa invocação, isso causa muita instabilidade por conta da incompatibilidade dessas coisas. E esse troço é uma verdadeira quimera!!

— O que quer dizer que o “alguém” que está aqui é muito poderoso. — comentou Solenni, tensa.

— Mais do que isso. Ele tanto é poderoso quanto sabe exatamente o que somos capazes de fazer. Uma cabeça de camaledraco: disfarce e jorro de fogo causticante; corpo de petsucho-de-rá com escamas de peixe-fátuo: resistência a armas e magias; e, o pior, rabo de petrauro, um animal já extinto em Eternia, uma das poucas coisas naturais que conseguia quebrar vespertrita...o que explica a extinção...

— Certo, então o que faremos? — indagou Estel.

— Ou lutamos com essa coisa até que o invocar se canse, o que sinceramente vai demorar a acontecer vendo o que ele fez. Ou anulamos a magia, o que vai nos dar algum tempo antes de ele ser capaz de invocar de novo ou fazer qualquer outra coisa, daí nós saímos daqui e o trancamos.

— Mas o que garante que ele está aqui dentro? — perguntou a espártaca.

— Para manter uma invocação a pessoa precisa estar próximo ao que chamou, fica mais fácil sustentá-la. E eu também a sinto aqui dentro....usa tanta magia que deixa o ar pesado, com cheiro forte... Ruivinha, acho que vamos finalmente saber quem estava incomodando você. Estel, dá pra andar com o escudo?

— Dá. Mas o que você quer? — disse o defensor.

— Pegar o Cetro, oras!! Se a magia que tenho anular e tão forte assim, preciso de um cetro à altura!

Lentamente eles começaram a andar, saindo do fogaréu. Contudo o monstro, percebendo isso, jorrou o fogo com mais força, empurrando-os contra a parede.

— Me ajudem a empurrar!! — pediu Estel, sentindo um mundo cair sobre os braços.

Os outros dois puseram-se a ajudar o defensor, sentindo o peso do qual ele falara. Com um esforço hercúleo, eles iniciaram novamente a caminhada em marcha lenta. Então de repente as chamas cessaram. Quando elas livraram as visões dos regidos, só houve tempo de ver uma pedra gigante, redonda e negra ser jogada contra eles. O impacto foi tamanho que os jogou contra a parede do fundo do salão com violência. Milagrosamente o escudo só se desfez quando atingiram o chão pesadamente.

— Ai...Merda!! Que porrada!! — exclamou Estel, a mão nas costas que sentiam dor. — Tudo bem com vocês?

— Tirando a dor, sim. — respondeu Solenni, levantando-se. — Não vai dá se tentarmos ir todos juntos. Luan você dá um jeito de ir enquanto eu e Estel distraímos essa coisa.

— Me sinto tão seguro com a idéia... — ironizou Luan, bufando. — Então o que...

Antes que o magussírio terminasse o chão tremeu. O estranho camaleão vinha correndo, desajeitado, mas mortal, com a cabeça abaixada.

— PULEM!! — gritou Solleni.

A espártaca ficou de um lado, Estel e Luan do outro. Outro impacto aconteceu segundos depois, dessa vez sendo o da cabeça do monstro com espinhos de um metro entrando na parede. Ele começou a se remexer agoniado, batendo a bola de pedra preta no chão, chacoalhando tudo de novo. Solenni olhou para Estel e fez um discreto movimento de bola com as mãos e outro empurrando para frente. Ele entendeu. O defensor ergueu novamente o escudo de vidro verde em volta dele e do magussírio.

— Ei! Vamos deixar a Ruivinha sozinha?! — assustou-se Luan.

— Não pense que estou mais feliz com a idéia do que você. — disse Estel, sério. — Mas você precisa pegar o Cetro, não é?! E outra, a pessoa que fez esse bicho vai vir para cima de você, porque só você pode acabar com ele. Vamos logo!

Enquanto Estel e Luan iam em direção ao altar, Solenni via o monstro finalmente se libertar da parede. Ele grunhiu de dor e revirou os olhos de camaleão. Percebeu que os outros dois não estavam mais ali. Grunhiu mais alto. Os garotos perceberam e apertaram o passo. O bicho balançou o rabo e o jogou contra os fugitivos, estes pularam para frente vendo a pedra negra bater com força contra a parede, fazendo tudo tremer e galhos e pedaços do teto caírem. O rabo balançou pela segunda vez. Os garotos esperaram pelo impacto, mas ouviram um guincho de dor. Ergueram-se. Solenni afastava-se rapidamente da cabeça do monstro, de onde escorria e respingava um sangue verde-amarelado, que, ao cair no chão, derretia-o.

— Ela é doida, não é?! — exclamou o magussírio, agoniado. — Aquele sangue é altamente venenoso, e cáustico, se você não notou.

— Vamos logo de uma vez para aquele altar!! — disse o outro, nervoso.

Solenni encostou-se a parede, fugindo das gotas que voavam e furavam tudo. Olhou para a espada, felizmente nada acontecera, a não ser ficar muito melecada e fedorenta depois de ter sido enterrada no olho do camaleão estranho. Ele grunhia furioso, e assim se virou para a guerreira, abrindo a boca.

— Solenni!! — gritaram os outros dois.

Um jorro de fogo passou raspando pela espártaca. Onde ela estivera agora era negro.

— Vão logo!! — exclamou ela, irritada.

Estel e Luan voltaram a correr. O altar podia ser alcançado com alguns passos.

— Vai, continua! — disse Estel, olhando para trás constantemente.

— O que?! — exclamou Luan, inseguro. — Como vou fazer para conseguir o Cetro, não tem nada ali!!

— Não sei, cara, os Vigilantes ajudaram quando foi nossa vez! Anda, Luan, você vai descobrir, tem que descobrir! Eu tenho que ajudar a Solenni e segurar aquele bicho caso ele queira vir pra cima de você!

E o defensor saiu.

— Ótimo! — resmungou o magussírio, irritado. — Muito obrigado por estar aqui comigo, Magnus!

Solenni, depois de escapar do fogo, agora fugia do rabo do monstro, agitado de um lado para o outro tentando esmagá-la. Cada batida errada era um tremor no chão, o que tirava todo o equilíbrio. Numa dessas pancadas o impacto foi tão grande que a espártaca foi jogada contra a parede, deixando-a sem ar e sem conseguir se mexer. O bicho abriu a boca pela terceira vez e o fogo saiu.

Diante do pedestal, Luan não sabia mais o que fazer. O objeto a sua frente resumia-se numa simples mesa pequena e quadrada de alabastro com um furo no meio; tanto ela quanto o pedestal eram cobertos com esculturas de luas e de folhas e galhos da árvore cor de pérola. Tentara de tudo: tocar o altar, apertar alguma das esculturas, dizer palavras mágicas nas línguas que conhecia, falar o nome “Fafnir”, e até segurar o ar na área do furo, esperando que o Cetro materializar-se. Olhou para trás. Estel e Solenni haviam sumido, restando apenas o monstro com seu jorro de fogo concentrado num único ponto. Droga!! Eles estavam ali embaixo!! Os olhos camaleônicos reviraram-se para ele. Voltou-se para o altar, nervoso. O que poderia ser?!! O furo na mesa era onde o Cetro apareceria, tinha certeza...mas como?! ....!! Será que...?! Não, era bobo demais, contudo só faltava tentar isso! Pela Coroa Branca, o dos outros dois fora tão simples, por que só o dele seria ao contrário?!!

Luan, então, colocou o próprio cetro na mesa.

Solenni olhava preocupada para Estel. Este chegara bem na hora, salvando-a do jorro de fogo, mas o esforço de segurar aquilo começava a cansá-lo. Inúmeras gotas de suor já brilhavam em seu rosto.

— Estel, vamos tentar sair daqui! — disse a espártaca, ainda arfando por conta da pancada.

— Solenni, você sabe que não vai dar! — respondeu o outro, com dificuldade. — Temos que esperar o Luan pegar o Cetro!

O defensor caiu de joelhos, mas manteve o escudo erguido. A proteção tornou-se menor e mais diluída. Solenni começou a sentir o calor sufocante das chamas de fora. Onde estava Luan?! O que estava acontecendo?! O braço esquerdo de Estel tremia como vara verde. A espártaca ajudou a sustentá-lo. A cúpula de vidro verde estava tão fina que começava a perder a cor, fagulhas já começavam a passar. Estel ofegava, não iria agüentar mais. Olhava de um lado para outro. Chamas, nada além de chamas...

E num suspiro exausto, Estel sentou-se no chão de vez. No segundo seguinte, uma luz suave veio do chão e acabou com o fogo. Solenni viu linhas prateadas aparecerem sob eles dois, uma pequena parte de um desenho enorme, que cobria todo o chão irregular do salão. Estel, apoiado pela espártaca, levantou a cabeça, vendo o monstro ficar paralisado e ser erguido no ar até o centro do enorme círculo com letras estranhas e as quatro fases da lua no seu interior.

No altar, Luan segurava um cetro apontado para o desenho prateado, fazendo uma expressão de muito esforço. O bicho, então, começou a se desfazer em folhas de luz prata que caíam ao chão e sumiam. Porém, continuar não foi tão fácil assim. A pessoa que invocara a criatura relutava que ela fosse destruída e, em alguns momentos, quase conseguia recompô-la por inteiro. O magussírio fez mais esforço ainda, falando algo muito baixinho.

Estel e Solenni viram o outro mexer a boca e, nesse mesmo instante, o circulo começou a ondular como água. Alguma coisa começou a emergir. Quatro braços enormes, peludos e com garras, todos feitos da luz prata. Os membros fizeram alguns gestos graciosos e sincronizados, como se fizessem parte do mesmo corpo. Ao final, eles apontaram para o monstro, que se desmanchou completamente numa lufada de folhas.

E de repente, a luz cessou.

Estel e Solenni levantaram-se devagar, incrédulos. Andaram o mais rápido que as pernas bambas permitiram até Luan. Ele tremia e suava muito, era o cetro que o segurava. O Cetro Fafnir. Um bastão azul-marinho que, para cima, exibia galhinhos e folhas de prata que se enrolavam até formar um suporte para uma grande ametista em forma de ovo; para baixo, uma pequena base de prata também onde outra ametista, redonda, brilhava. O defensor e a espártaca colocaram o amigo apoiado nos ombros. Ele piscou os olhos para os outros dois e falou entre arquejos rápidos:

— Não foi dessa vez, Ruivinha...a pessoa...foi embora... Essa noite....vocês fazem..o jantar...

. . .

sábado, 18 de setembro de 2010

Coroas de Eternia - O Escudo, A Espada e O Cetro

Nono Escrito – Luan

Sentindo uma forte claridade nos olhos, Estel acordou. Deu-se conta que todo seu corpo estava meio dolorido, deitado de bruços numa cama macia. Havia arranhões e cortes cicatrizando, partes ainda com curativos e mãos com marcas avermelhadas.

Uma porta atrás dele se abriu e uma pessoa entrou, dirigindo seus passos para onde ele estava.

— Bom dia, Estel. Que bom que recobrou os sentidos. Como se sente?

A voz vinha de uma mulher jovem, alta e muito bela. Tinha cabelos escuros caindo em cachos pelos ombros, a pele muito alva e vestida em roupas azuis. Mas havia uma coisa estranha...ela não abria os olhos.

— O que foi? — perguntou ela, com um sorriso. — Está tão mal assim que não consegue falar ainda, ou ficou admirado por não ver meus olhos abrirem?

— ! Desculpa, eu não... — falou o outro, constrangido.

— Não se preocupe, já estou acostumada com essa reação. Todos se admiram com uma cega que ainda vê.

Estel entendeu o que a outra dissera no momento em que a viu mexer na cesta cheia de fracos do criado-mudo. A jovem os tocava sentindo a forma, abria a tampa e cheirava, chacoalhava-os junto ao ouvido, alguns até provava. Assim que achava o que queria, colocava a quantidade que queria numa tigela, sentindo a substância nas mãos ou usando um medidor com marcas em alto-relevo na parte de dentro.

— Com sua licença, vou descobrir suas costas. — disse a moça.

O garoto só respondeu um “hum-rum” sem jeito, descobriu que estava de calças, mas não eram as suas, e tentou não imaginar quem poderia tê-lo vestido.

— Meu nome é Nívea Hártemys, sou a irmã de Luan. Você está em nossa casa. — explicou ela, lendo os pensamentos do defensor que queria situar-se. — Assim que aquela confusão terminou, você e sua amiga foram trazidos para cá. Você dormiu por dois dias inteiros. Como se sente?

— Bem. Mas ainda meio dolorido...

— Não é à toa. Além de ter passado esses dois dias praticamente sem se mexer, você fez um esforço muscular muito grande sem a mínima proteção. Foi um milagre não ter quebrado a coluna. Agora eu vou tocar nas suas costas, diga-me onde ainda sente dor.

— E a Solenni, como ela está? Ai! Aí, aí tá doendo...! Ah! Aí também...!

Nívea pegou uma boa quantidade da substância branca que remexia na tigela e passou ao longo das omoplatas de Estel e na altura dos rins. Logo ele sentiu uma reconfortante sensação de dormência. Quando Nívea terminou, respondeu a pergunta:

— Bem, quanto a Solenni, por que não pergunta pessoalmente? Ela está subindo as escadas.

No momento seguinte, uma voz conhecida ressoou no quarto:

— Bom dia, Nívea. Tem uma pessoa... — falou a espártaca, até por os olhos no Estel consciente. O defensor observou que ela mancava com uma perna enfaixada e exibia tantos ferimentos quanto ele próprio. — Estel...que bom que acordou. Como está se sentindo?

— Bem melhor agora. — respondeu o outro, com o maior sorriso que o rosto ferido conseguiu dar. — E você?

—Estou melhorando. Não estava tão ruim quanto você.

— Não o tranqüilize com falsas informações, senhorita. — rebateu Nívea, séria. — Seu tornozelo quebrou, você teve várias luxações no braço, e uma hemorragia feia no corte da têmpora, fora todos esse aranhões enormes. A única diferença entre vocês dois é que Solenni ficou consciente o suficiente para não largar você até vir para cá. E tenho dito.

Solenni arregalou os olhos, embaraçada, sem saber como reagir. Estel deu um sorriso, gostara de saber da última parte, apesar do resto ser bem preocupante.

– Mas, Solenni, o que você queria me falar naquele momento? — perguntou Nívea, voltando ao tom gentil.

— Tem uma pessoa lá embaixo esperando por você. — respondeu a espártaca. — Um entregador.

— Ah! Ótimo, minhas encomendas chegaram. O estoque de mandarinas estava muito baixo e...

E saiu, falando mais consigo mesmo que com os garotos. Estel, aproveitando a deixa, indagou Solenni:

— Foi ela quem cuidou de nós, não foi? Incrível como ser cega para ela não parece ser ruim.

— É... — concordou Solenni, mas sem muita convicção. — Mas Nívea na verdade faz isso para esquecer que está com a mesma doença que a mãe.

—...como?

— Ontem a noite eu despertei ouvindo uma discussão entre Luan e o pai dele. Luan sabe que é um Regido e quer nos acompanhar, mas o pai é contra... Eles também falaram sobre algumas coisas que não entendi até Nívea vir falar comigo. Na verdade, ela desabafou, estava muito abatida.

“A mãe deles Hannah, morreu há cinco anos. Ela tinha uma doença estranha, que foi degenerando as funções do corpo dela aos poucos. O primeiro sinal dela foi a cegueira.”

—...!!

— Na época Luan tinha treze anos e ficava a maior parte do tempo com a mãe, enquanto o Sr. Dimitri, o pai dele, e Nívea procuravam desesperadamente por uma cura. E quando eles voltavam para casa, ouviam de Hannah e Luan que os dois haviam conversado com um dos Vigilantes e que Luan fazia parte da profecia da Coroa Branca.

“O Sr. Dimitri e Nívea acreditaram que Hannah estava alucinando e que Luan poderia estar desenvolvendo a mesma doença que a mãe. Com medo que ele piorasse, o Sr. Dimitri afastou Luan da mãe, fazia de tudo para mantê-lo longe de casa. Cada vez mais sozinha, Hannah entrou em depressão, acelerando a doença, fazendo-a falecer.”

“Luan ficou indignado e falava em alto e bom som que a culpa da morte da mãe era deles, do pai, porque a havia abandonado. Defendia que ela não estava louca, que todas as visões dela seriam verdadeiras, pois ele mesmo continuava a tê-las.”

“O Sr. Dimitri não acreditava no filho e ficou com medo que ele já estivesse doente também. Só que, quem realmente estava doente era Nívea. Há um ano ela adquiriu a cegueira e, também, as visões sobre Luan. O Sr. Dimitri começou a fazer com a filha a mesma coisa que fez com a esposa, queria isolá-la de tudo e todos, até fez ela ser demitida do hospital que trabalhava. Passava dias fora de casa, dizendo estar procurando mais uma vez pela cura.”

“Luan não queria que a irmã tivesse o mesmo destino que a mãe. Sabia que o pai não estava realmente preocupado, só não queria arriscar que uma filha doente e louca manchasse mais sua reputação entre os importantes de Magussíria, como a esposa o fizera. E por conta do que ele falava, Nívea foi isolada pela maioria dos que a conheciam.”

“Contrariando o pai, eles dois saíram de casa. Luan passava com a irmã todo o tempo que não pudera com a mãe, incentivou-a a atender pacientes em casa, a se adaptar a cegueira, enquanto ele cuidava do resto. Isso a ajudou muito, eles se sustentam hoje com esse trabalho.”

“Luan queria um meio de curar a irmã acima de qualquer coisa. E ela o ajudou nesses estudos até onde achou sensato. Testava ingredientes, fórmulas, mas nada acontecia. Ele pedia ajuda aos familiares e a pessoas conhecidas quando o dinheiro não dava para sustentar a pesquisa, mas o pai mais uma vez foi contra e fez os outros fecharem as portas para Luan, que, então, resolveu continuar a pesquisa à força. Começou a roubar e a ameaçar. O pai, ele sabia, mandava para ele uma espécie de mesada anonimamente, o que ele gastou comprando a companhia e a ajuda daqueles garotos lá.”

“Como Iona comentou com a gente, ninguém ligava muito para o que ele fazia. Além de o pai também acobertá-lo. Era coisa de jovem rebelde, assunto pequeno demais para se preocupar. Foi então que seus sonhos, antes sem nexo, começaram a tomar a forma que ele nos falou naquela noite. Ele viu a gente, os arcos de pedra, terremotos. Um garoto com escudo que quebrava rochas, e uma garota de cabelos vermelhos e olhos dourados nas mãos que podia curar a irmã.”

— Nossa... — sussurrou Estel, sentindo um peso no estômago ao final da narrativa. Parecia que ele acabava de ouvir um desabafo também... — Ele sonhou exatamente...

— Isso mesmo. Com você derrotando a serpente e a mim curando a irmã. Por isso quando me viu, começou a me perseguir. Ele, ontem, veio falar comigo, pedir desculpas. Eu não tenho os olhos dourados nas mãos, mas Nívea revelou que ele tem mais e mais certeza de que sou eu quem vai curá-la.

— Mas...como você vai fazer isso?!

— Eu não sei...mas Nívea também acredita nisso.

Estel viu uma expressão dolorosa no rosto de Solenni que não era por causa da perna machucada. Suas mãos se contorciam. O garoto quis esticar o braço para por sua mão sobre as dela, mas Nívea reapareceu no quarto, interrompendo-o.

— Estel, acha que consegue se levantar? — indagou ela. — Luan fez um café-da-manhã maravilhoso para nós.

— Mesmo que não pudesse, eu iria. — respondeu Estel. — Estou com um buraco de fome no estômago.

Ajudado por Solenni e Nívea, Estel colocou uma blusa e os três desceram para a sala. Era uma casa simples e pequena, mas arrumada e confortável para duas pessoas. Estava clara e uma leva brisa entrava, vindo das portas laterais da sala que levavam a um jardim com todo tipo de planta e uma pequena estufa mais atrás. Na lareira da parede oposta, a salamandra-rubi estava muito bem, dormindo em cima de várias brasas inapagáveis.

— Ah! O boa-vida resolveu se levantar! — disse Luan aparecendo na sala, com uma chaleira fumegante com algo inconfundível para Estel: cheiro de café. Ele agradeceu de novo por mais essa semelhança de Eternia com seu mundo. — Se eu soubesse que matar uma cobra me daria o direito de ser tratado por duas beldades, eu mesmo teria feito isso antes.

— Se você acha que “boa vida” é agüentar algumas toneladas de pedras nos braços e nas costas... — disse Estel, rindo. — Então eu entrego de bom grado para você o meu escudo, dá muito trabalho carregar aquele trambolho.

— Ah, Estel, meu irmão acaba de lhe dar bom dia. — comentou Nívea, sorrindo. — Não ligue, ele é meio desbocado mesmo. Mas pelo que ouvi, você vai conseguir se defender.

— O que é uma grande injustiça! — contrapôs Luan. — Aí são dois contra um.

—Pelo que a sua irmã fala, você deve valer por três...então, tecnicamente, ainda estamos na desvantagem. — rebateu o defensor.

— É assim? Tudo bem, aceito o desafio. — continuou Luan, estufando o peito. Em seguida ele deixou o tom de brincadeira de lado e, aproximando-se de Estel, esticou a mão para um cumprimento. — Ei, cara, desculpa pelo que aconteceu...e sabe...que bom que você melhorou. Estava horroroso quando chegou aqui...se bem que de lá pra cá não mudou muita coisa.

— É?! Pelo menos o horroroso aqui está sendo cuidado por duas beldades. — respondeu Estel, balançando a mão do outro. — Se você quiser, eu lhe dou todas as minhas dores, cortes e feridas. Quem sabe assim tenha a mesma sorte que eu.

—Não, muuuito obrigado. Sentir dores me tira o apetite.

Estel riu, mas sabia que Luan sentia dores sim. O mesmo cheiro mentolado da substância que Nívea passara em suas costas vinha dos braços do outro, que pareciam inchados.

Uma mesa com mais lugares do que conseguia comportar estava posta. Havia muita comida e café, o que deixou os hóspedes satisfeitos. Quando Luan voltava da cozinha com uma cesta de pães e uma torta absurdamente cheirosa, a campainha da casa tocou.

— Ele chegou, Nívea. — disse Luan, com um sorriso brincalhão. — Não vá ficar tímida por nossa causa, pode agarrar.

— Quem será tão cedo assim? — questionou Solenni.

—Alguém que quer conversar com vocês. — falou Nívea, sorrindo. — Ele disse que viria tomar café conosco.

A jovem levantou-se e abriu a porta.

— Pontual como sempre. — disse ela. — Bom dia, Magnus.

— Bom dia, Nívea.

O dono da voz transpassou o portal, revelando-se. Era um homem alto e que chamava atenção pela elegância do seu porte e pelo exótico de sua aparência. Sua pele era tão alva quanto à de Nívea, os cabelos louros num tom de areia jogados para trás caíam até a cintura, seus olhos atrás de óculos redondos eram gentis e de um castanho-esverdeado muito vivo. Usava trajes em azul-claro, roxo e branco com estampa de luas prateadas. Na testa brilhava uma pequena gema roxa. Lembrava ao mesmo tempo um magussírio e um monge.

— Bom dia para vocês também, jovens Regidos, que a Mazda de seus corações esteja reluzente. — falou ele, colocando as mãos em posição de reza para cumprimentá-los. Ele tinha um sotaque peculiar, igual ao que Estel vira num personagem indiano de um filme. — Hum! Que cheiro bom! Café na mesa!

— Quanto mais gente melhor. — comentou Nívea, radiante.

— Como está o Sr. Hártemys? Ele não se machucou com o ocorrido?

— Não, ainda bem. Quanto ao resto, está tudo como o de sempre.

— Ótimo! — exclamou Luan, um tom raivoso na voz, sentando à mesa. — É bom ter mais gente em casa, mas não qualquer um. Só Magnus já é o suficiente.

— Eu agradeço a consideração, Luan, mas vamos esquecer por um momento essa situação desconfortável. Primeiro, quero me apresentar a Estel. Eu sou Magnus, o Terceiro Vigilante.— falou o homem, tomando seu lugar. — Vamos focar agora na conversa que eu preciso ter com vocês.

— E o que você precisa nos dizer?

— Na verdade, esclarecer. A primeira delas é que, agora que Luan foi “achado”, ele precisa obter o Cetro Fafnir.

— É duro imaginar que esses três façam parte de algo tão grande e perigoso, que tenham responsabilidades tão pesadas. — comentou Nívea, seriamente. — Veja o que aconteceu a Solenni e Estel... Não vou mentir, Magnus, eu temo pelo meu irmão.

— E esse sentimento é mais do que justo, Nívea. É o mesmo que eu e os outros Vigilantes temos. Mas a questão é: se o Sábio-Rei os escolheu, devem haver fortes motivos. E, creio eu, que um desses motivos é o fato de que cada um é completamente diferente do outro. Um magussírio, uma espártaca e uma pessoa de outro mundo que, apesar do tempo que já passou em Eternia, ainda continua com seus pensamentos e definições do seu mundo de origem. Sem falar das experiências que já viveram e ainda viverão, além da personalidade. Meu mestre deseja que haja a solução o mais equilibrada possível para o que acontece em Eternia, visto que vocês vão interagir diretamente com o Abençoado, o novo Sábio-Rei. E eu acredito piamente que, o que vocês decidirem, salvará Eternia.

Os garotos ficaram meio inquietos com a consideração e a confiança que Magnus depositava sobre eles. Estel perguntou:

— Magnus, mas você sabe por que eu exatamente? Falei com Perseu e ele não sabia a resposta.

— Eu, infelizmente, também não sei, Estel. — revelou Magnus, sério. — O Sábio-Rei não nos revelou o motivo.

— Algum de vocês vai nos acompanhar? — questionou Luan, com uma ponta de esperança.

—Não, infelizmente não podemos. Temos observado vocês de longe, muito preocupados se querem saber. Os Vigilantes, ultimamente, não têm tido um momento de paz, toda Eternia tem precisado de nossa ajuda e fazemos o possível para supri-la. Portanto, não podemos ficar com vocês, mesmo que esse seja nosso desejo. Hoje foi aberta uma pequena exceção por conta de nossa conversa. E como eu disse, a primeira coisa a se fazer é destrancar o Cetro.

— E onde ele está? — indagou Solenni.

— Você sabe onde fica o Rio Argênteo, Solenni?

— Há mais ou menos vinte e cinco dias de viagem, partindo de Magussíria indo rumo a noroeste. A que altura você quer que a gente chegue?

— Até onde ele forma uma de suas cachoeiras, dentro da Floresta Cinis. No lado leste da cachoeira está o templo. Mas o trabalho pesado começa depois, Perseu e Andrômeda já devem ter comentado com vocês sobre as littas.

— Sim. — respondeu Estel. — Vocês sabem onde elas estão?

— Não. Quem determinou o local das littas de vocês foi a Coroa Branca e o Sábio-Rei. E, veja, Estel, o caminho que vocês fazem para encontrá-las é muito importante. Elas são as chaves para seus poderes, mas o que vocês passam até chegar a essas chaves é a preparação para possuí-los. Diga-me, Estel, não aconteceu nada de estranho quando estava indo de encontro à sua primeira litta?

— Sim...eu prestava muito atenção na Estrela Vésper. E me lembro de falar coisas que não sabia com uma grande certeza. Foi realmente estranho...mas me deixava tranqüilo, seguro ao mesmo tempo.

—É isso a que me refiro. A força da estrela está em você, Estel, e as littas são a conexão que você precisa para compreender mais essa força. Você é atraído para as littas quando muito próximo a elas, e esse sentimento de acolhimento e segurança será o sinal de que as achou. A estrela será sua guia ante toda a escuridão.

O garoto sempre sentia calor morno no peito ao ouvir aquela frase. Magnus prosseguiu:

— O fato é que Luan também tem suas littas, mas elas são um pouco diferentes. São os cinco dragões-totens de Eternia, os que são citados na profecia.

— Eu meio que já sabia disso...mas mesmo assim! — exclamou Luan, passando a mão pelos cabelos várias vezes. — Pensei que só teria um cetro mais bonito, sei lá, soltando luzes mais incrementadas.

—E de certa forma você não está errado, só que dessas luzes sairão seres para lhe ajudar. Na última guerra contra a Coroa Negra a raça dos Dragões foi covardemente dizimada. O Sábio-Rei convocou as almas dos Cinco Soberanos, os dragões mais poderosos, e selou-os em lugares pelo mundo até que o Mestre do Cetro apareça para acordá-los. E esses lugares podem ser lugares completamente diferentes de onde estão as littas de Estel. Será uma viagem longa. Por isso, sugiro que a litta de Solenni seja a última a ser pegue.

— Por quê? — questionou a espártaca, intrigada. — Aliás, por que minha litta é a única que se sabe a localização?

— Vou responder a segunda pergunta, agora. Sua litta vem sido protegida por um povo há milênios, um povo que participou da última guerra. Os Kemets. O Sábio-Rei, honrado com a dedicação desse povo na proteção de Eternia, deu-lhes a litta de Hórus para que a protegessem. Construíram um templo para depositá-la, no Deserto Sabloro, onde vivem, e o cercaram com suas magias e gênios bons que são fraternos a eles. Não vou dizer que ninguém nunca tentou pega-la, mas é óbvio que foram tentativas inúteis. Ela é sua e somente sua.

“Quanto à primeira pergunta. Por quê? Devido você ter apenas uma única litta, Solenni, a dificuldade em tê-la será muito maior, e ouso dizer que será mais difícil do que as de Estel e de Luan. Nívea já deve ter comentado com você sobre os sonhos de Luan com uma jovem com olhos dourados nas mãos. Essa pessoa é realmente você, Solenni. Uma pessoa que será capaz de manipular a força imperial, quase destrutiva do sol, mas, com essa mesma força, capaz de curar tanto o corpo quanto a alma. E uma dádiva pesada como essa, Solenni, necessitará de muito preparo, você passará por uma grande provação. Eu não sei qual será essa provação, só vejo fios soltos do futuro, não sei como eles vão se tramar para formar o tecido. Esse tecido que é a vida de vocês, as escolhas de vocês. Ninguém pode interferir nelas, ninguém. Essa é a verdade.

Magnus falara aquilo tudo com tanta seriedade que todos os outros na mesa estavam mudos de tensão. Estel olhou para Solenni, que estava com uma expressão fechada, concentrada, pensativa. A voz do Vigilante voltou a se mostrar:

— Outra coisa que preciso falar para vocês é que, estando juntos, evitem o máximo possível se separarem.

— Por quê? — estranhou Luan. — Se você diz que as minhas littas e as de Estel podem estar em lugares completamente diferentes, não seria melhor a gente se separar para consegui-las mais rápido?

— Na teoria, sim, mas na prática seria a pior das escolhas. Como vocês sabem, a Coroa Branca foi quem criou as três forças que vocês carregam: o Escudo, a Espada e o Cetro. Elas representam as joias, as faces da Coroa Branca: a Proteção, a Força e a Sabedoria, respectivamente. Então, quando unidas, essas forças equiparam-se, igualam-se a da própria coroa e recebem dela todo o equilíbrio e todas as dádivas. O que quer dizer que acontecerá o mesmo com vocês. No momento em que vocês se encontraram, reconheceram-se como Regidos, a Coroa Branca lançou sobre vocês um encantamento que os uni e os guarda. O que não satisfaz a Coroa Negra, que vai tentar separá-los de todo e qualquer jeito e impedir que encontrem o Abençoado.

— É, e parece que ela já começou. — comentou Luan, bufando. — Olha o que aconteceu aqui há poucos dias!

— Luan, o que você presenciou foi pouco... Eternia em alguns lugares está literalmente morrendo. Depois de tanto tempo de clausura, a Coroa Negra cresceu em astúcia e maldade. As criaturas que estão surgindo nesses dias estão tão inteligentes quanto violentas. Há uma aura de medo e preocupação rondando as coisas existentes, modificando-as. As circunstâncias tentarão separá-los, mas não o façam. Não se separem.

Outro momento de silêncio sério e pesado. Os três jovens entreolharam-se confusos e um tanto temerosos. O que seria deles a partir do momento em que saíssem para o mundo...?!

— Bom, o café estava maravilhoso, Luan, como sempre. — falou Magnus, agora num tom jovial. Nem parecia que tinham acabado de conversar sobre o destino deles. — Adorei a oportunidade de passar esse mínimo tempo com vocês, mas preciso voltar imediatamente aos meus afazeres. Logo que nos for permitido, voltaremos a nos encontrar. Se não for eu mesmo, virá Perseu ou Andrômeda.

Estel, Solenni e Luan nada responderam, presos ainda na conversa anterior. Notando, Nívea levantou-se para acompanhar o outro até a porta. Lá fora ambos ficaram alguns segundos em silêncio, até Nívea falar tristemente:

— Magnus, por favor, cuidado. Eu...não queria passar tanto tempo assim sem vê-lo, mas sei que é um direito que não posso exigir. Tanto pelo o que você é, quanto pelo o que eu fiz.

— Nívea, por favor, não fale assim! — disse Magnus, angustiado, ao segurar as mãos da outra entre as suas. — Você nunca deixou eu me culpar pelo que aconteceu com sua família, apesar de eu crer no contrário. Então não vou deixar você o fazer também, você não tem culpa. O que houve foi uma série de terríveis fatalidades... E quanto ao seu desejo, ele também é o meu. Eu não quero ir para longe de você...mas eu amo Eternia, Nívea, preciso ajudá-la.

– Eu sei disso, Magnus, e eu o admiro por isso, mais do que pode imaginar. Mas...meu pai se foi, Luan terá de partir também....eu nem sei quando verei você outra vez... A perspectiva de que vou ficar sozinha me deixa com muito medo...temo não resistir a essa doença.

— Você não vai desistir, Nívea! Eu não quero perder o que eu achei de mais importante em todas essas eras imortais como Vigilante. É por você que eu me arrisco, que me afasto. Pois quando voltar, será definitivamente. Não mais como o Terceiro Vigilante, apenas como Magnus. E eu verei você curada.

— E você acha...

— Que você vai ser curada?! É claro! Eu ponho toda a minha fé naqueles jovens, seria capaz de qualquer coisa para protegê-los, para garantir a felicidade deles, principalmente a de Luan que amo como a um irmão.

— É a única coisa a mais que peço para você, Magnus, velar por ele, como puder. Eu só estarei curada de verdade quando eu vir vocês entrando nessa casa de novo, para ficar.

— E eu virei e ficarei.

Magnus abraçou Nívea muito intensamente. A jovem passou as mãos pelo rosto do Vigilante, em seguida beijou-o nos olhos e nos lábios. Ele fez o mesmo gesto. Então se separaram. Magnus andou alguns passos hesitantes, mas não olhou para trás. Algumas pessoas na rua admiraram a belíssima garça branca que acabava de se erguer ao céu.

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