Terceiro Escrito – Dois encontros
Completava-se, naquele instante, a terceira hora desde que Estel resolvera ficar. A estrada da floresta (qual era mesmo o nome?) que se seguia depois do templo era simples, bem larga e plana, ótima para se dar uma primeira caminhada em Eternia, afinal, o garoto facilmente teria tropeçado numa pedra ou caído num buraco tal era sua atenção para onde os pés o levavam.
Ele olhava com muita atenção tudo de novo que encontrava além das bordas da estrada, coisa que não era rara de acontecer. Algumas árvores eram parecidas com a de seu mundo, já outras possuíam cores e formas inusitadas para troncos, flores, folhas e raízes. Porém, mesmo com a distração da vegetação, Estel percebeu algo estranho. Parecia não haver animais ali. Nenhum pássaro, nem mesmo o canto deles; nenhum inseto, nem um zumbido ao longe; nenhum movimento a não ser o do vento. O lugar parecia estar vazio.
Com o passar do tempo esse pensamento e a sensação de deslumbramento começaram a ficar distantes, pois a fome e a sede predominaram. E Estel não tinha a mínima idéia de onde procurar água ou saber o que era comestível ou não ali. Decidiu sentar, pelo menos, embaixo de uma das árvores da beira da estrada; o calor estava tão forte que o garoto sentiu-se sonolento, os olhos estavam pesando muito.
Então o chão tremeu.
Estel levantou-se num pulo. Parecia que alguma coisa muito grande havia caído no chão, próximo onde ele estava. Um grito fino e ensurdecedor ecoou poucos segundo após o tremor. O garoto gelou. Seu instinto lhe pediu para segurar o escudo diante de si; não sabia lutar, mas a arma devia ter que servir para alguma coisa. O som agonizante chegou de novo, era como o de alguém sendo queimado vivo. Estel não podia ficar mais ali, o que quer que fosse, estava chegando cada vez mais perto. Não era bom, ele sabia.
Começou a correr. Ansiava que o lugar que Perseu falara não estivesse muito longe. Estel pulou para frente ao ouvir o barulho da árvore em que sentara instantes atrás cair despedaçada ao meio. A causa disso fez o estômago do jovem revirar. Era uma mulher-aranha ou aranha-mulher, não saberia dizer, mas o fato de ela ser duas vezes maior que ele já era assustador o suficiente. O abdômen era de aranha, enorme, redondo com oito patas e coberto de pêlos amarelados; mas no lugar da cabeça de aracnídeo estava a cabeça e os braços de uma mulher. Os oito olhos de aranha estavam arregalados, colocado em um rosto muito magro e encovado, sem nariz ou orelhas, encimado por uma moita limosa de cabelos escuros. Ela olhava doentia para Estel, a boca escancarada, salivando alguma coisa amarelada, que mostrava quelíceras inquietas.
Estel não parou para observar mais e voltou a correr. O monstro gritou ao ver sua presa fugir e, aos pulos, iniciou a perseguição. Estel sentia o ar rasgar seus pulmões, as pernas já formigavam de dor tal o esforço que fazia em se manter correndo. Contudo para a aranha aquilo não era nada e num de seus pulos colocou-se na frente do garoto. Atacou-o com sua mão cheia de garras finas e pretas. Por puro reflexo, Estel ergueu o escudo. Houve outro grito fino e agoniado.
— Putz!! — exclamou Estel, vendo o que acontecera, tirando a cabeça detrás do escudo.
A aranha segurava o toco escuro em que se transformara seu braço. O garoto olhou para a arma, nenhum arranhão a maculava. Ele sentiu e ouviu as garras atingirem o metal, mas ao que parecia, o monstro é que se ferira ao tocar no escudo.
A aranha ficou ensandecida e com duas de suas enormes patas peludas empurrou Estel, que voou e bateu na árvore mais próxima. Houve um “crec” muito feio. Caindo no chão, Estel descobriu que o barulho fora o de seu braço direito. A dor o fez ver estrelas. Tudo estava embaçando, mas ele viu quando uma mancha escura com várias pernas se aproximou. Um cheiro de ovo podre vindo da boca da aranha só piorou a tontura, estava prestes a desmaiar. Num último esforço, manteve o escudo erguido. Droga, por que Perseu não avisou que ali era perigoso?! Que ele podia encontrar uma coisa daquelas?!!
Antes de perder a consciência, Estel podia jurar que o guincho de satisfação do bicho soara muito dolorido e que ele de repente pendera para um dos lados. Junto a isso, uma voz humana.
Estel foi lentamente recobrando a consciência, enquanto um calor morno percorria seu corpo. Estava com um baita dor de cabeça, mas era melhor aquilo do que morto. Era noite. Viu-se deitado numa esteira de palha debaixo de um cobertor escuro, seu braço direito estava enfaixado e seguro numa tipóia improvisada. Sentou-se e diante si ardia uma fogueira onde uma pequena panela borbulhava cheirosa e espetos com pães assavam.
— Finalmente acordou. Sente-se melhor?
A voz veio de alguém que estava do outro lado da fogueira do pequeno acampamento, sentado sob uma árvore. Ele levantou-se e sem nenhuma timidez aproximou-se, colocando a mão na testa de Estel.
— Ótimo sinal, não está com febre. — disse. — Quer dizer que não foi picado. Se tivesse sido, eu não poderia fazer muito.
Estel ficou emudecido por alguns segundos, a desordem das coisas ainda embaçava a sua mente. Além, também, da pessoa a sua frente. Uma garota, que parecia ter sua idade, muito bonita por sinal. Os olhos oblíquos cor - de – mel davam a impressão de estarem sempre com raiva ou muito sérios, os cabelos eram de um vermelho vivíssimo presos num rabo - de - cavalo cheio de fitas de couro. Ela se vestia de verde-escuro, um peitoral e sandálias com joelheiras feitas de couro também, braceletes de metal que reluziam à luz do fogo, e preso a sua cintura um cinto com uma espada embainhada. Contudo todo esse aparato exibia marcas de muito uso e o rosto da garota um cansaço profundo.
— Estou sim... — respondeu Estel, finalmente saindo do mutismo e entendendo tudo. A voz que ouvira, fora a dela. —E obrigado por me ajudar.
— Você teve sorte, muita sorte. Trincou o braço direito, mas nada muito grave. — continuou ela, a voz séria como o olhar. —Ainda poderá manejar o escudo.
— Ah, é mesmo, o escudo! Onde ele tá?!
— Encostado na árvore. Está com fome?
— É...muito. Faminto!
Estel não conseguiu segurar sua sinceridade ante a possibilidade de comer. A garota nada demonstrou a sua resposta tão veemente, apenas levantou-se e encheu uma cuia de madeira polida com o caldo grosso da panela. Entregou-o a Estel com dois dos pães que assavam. O garoto ficou dois segundos inseguro para comer aquilo, o cheiro estava tão bom e seu estômago doendo tanto que não havia espaço para desconfiança.
— Foi você, não foi? — indagou Estel, engolindo um pedaço grande demais de pão. Queria puxar assunto, a outra não precisava ficar assistindo ao devorar desesperado dele. —Que atacou aquele bicho.
— Sim. Estava na estrada também, de volta para meu reino, quando ouvi os guinchos daquela aracnéia. — respondeu a outra.
— Ara...o que?!
— Aracnèia. Não sabia que bicho era aquele? Nunca viu uma? A floresta está cheia delas, por isso os animais desapareceram. Elas estão ficando cada vez mais violentas...e famintas, atacando em plena luz do dia e sem nenhum cuidado. Você...não sabia disso, sabia?
— Err...não.
— Se não sabia, porque estava andando armado? Você não é um defensor?
— Hã?!
— Você não está entendo nada do que eu falo, não é?
— Err...não.
A garota sentou diante da fogueira e concentrou seus olhos no fogo. Estel estava mais perdido que nunca, não sabia o que falar. Então ela voltou a falar:
— Qual o seu nome?
— Estel....Elecktrion. — respondeu Estel, devolvendo o olhar intrigado que ela lhe dava.
— Solenni Apollux. Diga-me, você sabe onde está e por que está?
— Bem...estou em Eternia, não?! Agora por que...o Perseu só me explicou isso muito por cima, no fim das contas pediu para eu seguir o escudo. E ele quase me matou...
— Você fala de Perseu, o Primeiro Vigilante?! Onde encontrou com ele? No templo que há mais para trás? Qual o nome do Templo?
— Sim, sim! Ah! O nome?! Acho que é alguma coisa com “vés”...é Vésper. Mas por que todo esse interrogatório?!
— Quero ter certeza de que não estou cuidando de um enganador.
— Enganador?!
— Você veio de onde?
— Da Terra... falando assim parece que eu sou um e.t! É o meu mundo, a Terra. Pode me explicar direito isso?!
— Estel, toda pessoa do meu mundo, Eternia, sabe de uma profecia dita pelo Sábio-Rei
— Sim, o Perseu falou disso. Uma coisa com lua, sol, estrela (apontou para o escudo) e coroas. Muito estranho.
— Ele falou também que na profecia há um aviso sobre uma pessoa de “outro mundo”?
— Errr....isso não.
— Por isso estou com o pé atrás. Ultimamente muitas coisas ruins vêm acontecendo em Eternia. Desastres naturais, monstros brotando do nada como a aracnéia que você viu hoje, e outras coisas piores. Infelizmente existem pessoas que estão se aproveitando disso. Vendo essa “brecha” na profecia que todos esperam que se realize, essas pessoas se proclamam heróis de outro mundo e ganham o direito de fazer o que bem entendem. Eu fui uma das pessoas a ser enganada.
—...o que aconteceu...o que fizeram com você?
— Encontrei um viajante da estrada, exatamente como encontrei você. Ele carregava a insígnia da lua. Ele se dizia perdido, que monstros o haviam atacado. Eu cuidei dele, assim como cuidei de você. Mas ao invés de um “obrigado”, ele tentou me roubar e violentar.
— Mas que filho de uma puta!! Oh! Foi mal...sim, mas e aí? Você conseguiu escapar como?
— Decepei a mão dele. É assim que tratamos ladrões em meu reino.
Estel engoliu seco, agora entendia porque a outra não desgrudava a mão da espada. Mas ficou admirado. Em histórias fantásticas é muito raro ver esse tipo de coisa acontecer, todo mundo está empenhado demais em tentar salvar o mundo ou destruí-lo por inteiro; roubar e violentar pessoas parecia algo tão baixo, tão medíocre. De repente, Eternia ficou parecida com a Terra naquele ponto. Naquele péssimo ponto, por sinal...
— Mas...Solenni...o que a fez acreditar em mim? — indagou Estel, sincero.
— Foi a sua inocência, principalmente. — revelou ela, sem dar a Estel ar de bobo. — Você, mesmo um pouco desconfiado, respondeu tudo que perguntei e até comeu sem pensar que eu poderia tentar envenenar você. Estel, muita gente faria qualquer coisa, digo qualquer coisa mesmo, para ter seu escudo e tirar toda a vantagem que conseguisse com ele enquanto o mundo explode. Além, também, do seu desconhecimento das coisas de Eternia e do manejo com a arma. Os eternianos sabem que um dos três Regidos viria de outro mundo, mas não especificamente qual. O homem que me enganou dizia ser o escolhido do Cetro, e ele realmente tinha muitas marcas que o taxavam como tal. Mas ele falhou na hora que manejou perfeitamente o Cetro.
—Por quê? Não era para ele saber?
— Não, pois essas armas são diferentes de todas as outras. Contem forças especificas que nenhum outro eterniano já usou, então acredito que ninguém saiba de imediato lutar perfeitamente com elas. O homem me disse que fazia poucos dias que havia chegado em Eternia. Fora que há outras possibilidades: o mundo da pessoa estrangeira não estar em guerra, ou se estivesse, ela saber manejar outro tipo de arma, e assim por diante. Como é no seu mundo?
— Bem...às vezes nos temos guerras sim, mas não se usam essas armas. Não existem coisas mágicas por lá. Existem sim, escudos, espadas e tal, mas é peça antiga, coisa de museu.
— Mas há um detalhe, eu ainda não acreditei totalmente em você.
— Então porque me ajudou?
— Porque de onde eu venho me ensinaram a ser assim, mesmo com um total estranho. “Ame a vida tanto quanto ame a batalha; pois sem vida, não há porque nem como travar batalhas, e sem batalhas, não se vive a vida.”, é isso que dizem os mais velhos. “Quando encontrar alguém que necessita de você, não hesite, dê a ele a chance de continuar batalhando pela vida. Mas, atente, se ela não der valor ao seu auxílio, ela está dando o direito de você repreendê-la.”
Estel ficou em silêncio. A voz de Solenni era baixa, mas não desprovida de firmeza. Ela tinha os olhos distantes, como estivesse lembrando-se de alguém. O garoto quebrou o silêncio contando a ela tudo o que acontecera desde que ele chegou a Eternia, tentou extrair de sua memória o que Perseu lhe contara até a parte em que o monstro aparecia.
— Por que me contou isso? — indagou Solenni, séria.
— Eu precisava retribuir o que você fez por mim, não é assim que se faz de onde você vem? Espero que isso me livre de ter a mão cortada. — respondeu o outro, meio inseguro. — É só o que eu posso fazer, contar a verdade.
Solenni perdeu-se novamente em pensamentos, deixando Estel na expectativa. Quando ele pensou mais uma vez em quebrar o mutismo, ela o fez primeiro:
— Para onde estava indo, Estel?
— Como foi que Perseu disse...Es...Espártaca, é acho que é isso. — disse o garoto. — Essa estrada leva para lá, não é?
— Quer ficar na casa do meu avô?
— Hã?!!
— Você tem lugar para ficar?
— Não...
— Sabe quanto tempo precisará ficar em Eternia?
— Não...
— Como acha que vai sobreviver sem, pelo menos, saber manejar uma arma ou usar um equipamento?
— Errr...tá entendi. Eu aceito. Mas seu avô vai aceitar numa boa você levar um estranho?
— Sim. Primeiro, porque ele sabe que eu não levaria qualquer um para o auxílio dele. Segundo, se ele vir motivos para ajudar você, ou não, você vai saber.
— Obrigado... (Estel não se sentiu muito seguro com a última frase de Solenni)
— É melhor você dormir, quanto menos esforço fizer melhor. Eu ficarei de vigia.
— Tem certeza de que não vai descansar também?
— Farei isso na casa do meu avô. Afinal de contas, é melhor que as aracnéias peguem a mim de “surpresa” do que a você.
Estel entendeu a resposta, mas sentiu-se um pouco ofendido. Ela não precisava passar na cara que ele era um completo inútil, só queria ajudar. Respondeu um sonolento “boa noite” e virou-se. Contudo, quase que levantou de novo num pulo, notando algo da conversa. Em nenhum momento Solenni perguntara sobre seus olhos. Isso parecia besteira, considerando que as preocupações dela eram tão sérias, mas para Estel não. Era praxe, quando conhecia alguém (e esse alguém tendo coragem de chegar perto dele), este sempre perguntava sobre os olhos, dizia como eram estranhos. Sua incredulidade quanto àquele fato foi tanta, que se viu perguntando para Solenni:
— Solenni...err...você achou...bem, meus olhos estranhos?
— Sim, achei, sendo sincera. Nunca vi olhos iguais aos seus, amarelos e que brilham no escuro, como os de um gato. Eu pensei que fosse comum no seu mundo... Mas já vi coisa muito pior que isso, Estel. E para ser mais sincera ainda, se seu caráter não for estranho, seus olhos pouco me importam. Por que a pergunta?
— Errr...nada, nada não. Curiosidade.
Estel disse mais um boa noite e virou-se, como se o que ouvira fosse um comentário sobre o tempo. A resposta fora dura, entretanto isso não o deixou chateado, pois veio de alguém que parecia já ter se enganado pelas aparências uma vez e sofrido com isso. Ela fora sincera: achava estranho, mas contanto que ele mesmo não fosse estranho, tudo bem. Estel sentiu uma gratidão reconfortante por Solenni. E com esse pensamento, adormeceu.
Ele olhava com muita atenção tudo de novo que encontrava além das bordas da estrada, coisa que não era rara de acontecer. Algumas árvores eram parecidas com a de seu mundo, já outras possuíam cores e formas inusitadas para troncos, flores, folhas e raízes. Porém, mesmo com a distração da vegetação, Estel percebeu algo estranho. Parecia não haver animais ali. Nenhum pássaro, nem mesmo o canto deles; nenhum inseto, nem um zumbido ao longe; nenhum movimento a não ser o do vento. O lugar parecia estar vazio.
Com o passar do tempo esse pensamento e a sensação de deslumbramento começaram a ficar distantes, pois a fome e a sede predominaram. E Estel não tinha a mínima idéia de onde procurar água ou saber o que era comestível ou não ali. Decidiu sentar, pelo menos, embaixo de uma das árvores da beira da estrada; o calor estava tão forte que o garoto sentiu-se sonolento, os olhos estavam pesando muito.
Então o chão tremeu.
Estel levantou-se num pulo. Parecia que alguma coisa muito grande havia caído no chão, próximo onde ele estava. Um grito fino e ensurdecedor ecoou poucos segundo após o tremor. O garoto gelou. Seu instinto lhe pediu para segurar o escudo diante de si; não sabia lutar, mas a arma devia ter que servir para alguma coisa. O som agonizante chegou de novo, era como o de alguém sendo queimado vivo. Estel não podia ficar mais ali, o que quer que fosse, estava chegando cada vez mais perto. Não era bom, ele sabia.
Começou a correr. Ansiava que o lugar que Perseu falara não estivesse muito longe. Estel pulou para frente ao ouvir o barulho da árvore em que sentara instantes atrás cair despedaçada ao meio. A causa disso fez o estômago do jovem revirar. Era uma mulher-aranha ou aranha-mulher, não saberia dizer, mas o fato de ela ser duas vezes maior que ele já era assustador o suficiente. O abdômen era de aranha, enorme, redondo com oito patas e coberto de pêlos amarelados; mas no lugar da cabeça de aracnídeo estava a cabeça e os braços de uma mulher. Os oito olhos de aranha estavam arregalados, colocado em um rosto muito magro e encovado, sem nariz ou orelhas, encimado por uma moita limosa de cabelos escuros. Ela olhava doentia para Estel, a boca escancarada, salivando alguma coisa amarelada, que mostrava quelíceras inquietas.
Estel não parou para observar mais e voltou a correr. O monstro gritou ao ver sua presa fugir e, aos pulos, iniciou a perseguição. Estel sentia o ar rasgar seus pulmões, as pernas já formigavam de dor tal o esforço que fazia em se manter correndo. Contudo para a aranha aquilo não era nada e num de seus pulos colocou-se na frente do garoto. Atacou-o com sua mão cheia de garras finas e pretas. Por puro reflexo, Estel ergueu o escudo. Houve outro grito fino e agoniado.
— Putz!! — exclamou Estel, vendo o que acontecera, tirando a cabeça detrás do escudo.
A aranha segurava o toco escuro em que se transformara seu braço. O garoto olhou para a arma, nenhum arranhão a maculava. Ele sentiu e ouviu as garras atingirem o metal, mas ao que parecia, o monstro é que se ferira ao tocar no escudo.
A aranha ficou ensandecida e com duas de suas enormes patas peludas empurrou Estel, que voou e bateu na árvore mais próxima. Houve um “crec” muito feio. Caindo no chão, Estel descobriu que o barulho fora o de seu braço direito. A dor o fez ver estrelas. Tudo estava embaçando, mas ele viu quando uma mancha escura com várias pernas se aproximou. Um cheiro de ovo podre vindo da boca da aranha só piorou a tontura, estava prestes a desmaiar. Num último esforço, manteve o escudo erguido. Droga, por que Perseu não avisou que ali era perigoso?! Que ele podia encontrar uma coisa daquelas?!!
Antes de perder a consciência, Estel podia jurar que o guincho de satisfação do bicho soara muito dolorido e que ele de repente pendera para um dos lados. Junto a isso, uma voz humana.
Estel foi lentamente recobrando a consciência, enquanto um calor morno percorria seu corpo. Estava com um baita dor de cabeça, mas era melhor aquilo do que morto. Era noite. Viu-se deitado numa esteira de palha debaixo de um cobertor escuro, seu braço direito estava enfaixado e seguro numa tipóia improvisada. Sentou-se e diante si ardia uma fogueira onde uma pequena panela borbulhava cheirosa e espetos com pães assavam.
— Finalmente acordou. Sente-se melhor?
A voz veio de alguém que estava do outro lado da fogueira do pequeno acampamento, sentado sob uma árvore. Ele levantou-se e sem nenhuma timidez aproximou-se, colocando a mão na testa de Estel.
— Ótimo sinal, não está com febre. — disse. — Quer dizer que não foi picado. Se tivesse sido, eu não poderia fazer muito.
Estel ficou emudecido por alguns segundos, a desordem das coisas ainda embaçava a sua mente. Além, também, da pessoa a sua frente. Uma garota, que parecia ter sua idade, muito bonita por sinal. Os olhos oblíquos cor - de – mel davam a impressão de estarem sempre com raiva ou muito sérios, os cabelos eram de um vermelho vivíssimo presos num rabo - de - cavalo cheio de fitas de couro. Ela se vestia de verde-escuro, um peitoral e sandálias com joelheiras feitas de couro também, braceletes de metal que reluziam à luz do fogo, e preso a sua cintura um cinto com uma espada embainhada. Contudo todo esse aparato exibia marcas de muito uso e o rosto da garota um cansaço profundo.
— Estou sim... — respondeu Estel, finalmente saindo do mutismo e entendendo tudo. A voz que ouvira, fora a dela. —E obrigado por me ajudar.
— Você teve sorte, muita sorte. Trincou o braço direito, mas nada muito grave. — continuou ela, a voz séria como o olhar. —Ainda poderá manejar o escudo.
— Ah, é mesmo, o escudo! Onde ele tá?!
— Encostado na árvore. Está com fome?
— É...muito. Faminto!
Estel não conseguiu segurar sua sinceridade ante a possibilidade de comer. A garota nada demonstrou a sua resposta tão veemente, apenas levantou-se e encheu uma cuia de madeira polida com o caldo grosso da panela. Entregou-o a Estel com dois dos pães que assavam. O garoto ficou dois segundos inseguro para comer aquilo, o cheiro estava tão bom e seu estômago doendo tanto que não havia espaço para desconfiança.
— Foi você, não foi? — indagou Estel, engolindo um pedaço grande demais de pão. Queria puxar assunto, a outra não precisava ficar assistindo ao devorar desesperado dele. —Que atacou aquele bicho.
— Sim. Estava na estrada também, de volta para meu reino, quando ouvi os guinchos daquela aracnéia. — respondeu a outra.
— Ara...o que?!
— Aracnèia. Não sabia que bicho era aquele? Nunca viu uma? A floresta está cheia delas, por isso os animais desapareceram. Elas estão ficando cada vez mais violentas...e famintas, atacando em plena luz do dia e sem nenhum cuidado. Você...não sabia disso, sabia?
— Err...não.
— Se não sabia, porque estava andando armado? Você não é um defensor?
— Hã?!
— Você não está entendo nada do que eu falo, não é?
— Err...não.
A garota sentou diante da fogueira e concentrou seus olhos no fogo. Estel estava mais perdido que nunca, não sabia o que falar. Então ela voltou a falar:
— Qual o seu nome?
— Estel....Elecktrion. — respondeu Estel, devolvendo o olhar intrigado que ela lhe dava.
— Solenni Apollux. Diga-me, você sabe onde está e por que está?
— Bem...estou em Eternia, não?! Agora por que...o Perseu só me explicou isso muito por cima, no fim das contas pediu para eu seguir o escudo. E ele quase me matou...
— Você fala de Perseu, o Primeiro Vigilante?! Onde encontrou com ele? No templo que há mais para trás? Qual o nome do Templo?
— Sim, sim! Ah! O nome?! Acho que é alguma coisa com “vés”...é Vésper. Mas por que todo esse interrogatório?!
— Quero ter certeza de que não estou cuidando de um enganador.
— Enganador?!
— Você veio de onde?
— Da Terra... falando assim parece que eu sou um e.t! É o meu mundo, a Terra. Pode me explicar direito isso?!
— Estel, toda pessoa do meu mundo, Eternia, sabe de uma profecia dita pelo Sábio-Rei
— Sim, o Perseu falou disso. Uma coisa com lua, sol, estrela (apontou para o escudo) e coroas. Muito estranho.
— Ele falou também que na profecia há um aviso sobre uma pessoa de “outro mundo”?
— Errr....isso não.
— Por isso estou com o pé atrás. Ultimamente muitas coisas ruins vêm acontecendo em Eternia. Desastres naturais, monstros brotando do nada como a aracnéia que você viu hoje, e outras coisas piores. Infelizmente existem pessoas que estão se aproveitando disso. Vendo essa “brecha” na profecia que todos esperam que se realize, essas pessoas se proclamam heróis de outro mundo e ganham o direito de fazer o que bem entendem. Eu fui uma das pessoas a ser enganada.
—...o que aconteceu...o que fizeram com você?
— Encontrei um viajante da estrada, exatamente como encontrei você. Ele carregava a insígnia da lua. Ele se dizia perdido, que monstros o haviam atacado. Eu cuidei dele, assim como cuidei de você. Mas ao invés de um “obrigado”, ele tentou me roubar e violentar.
— Mas que filho de uma puta!! Oh! Foi mal...sim, mas e aí? Você conseguiu escapar como?
— Decepei a mão dele. É assim que tratamos ladrões em meu reino.
Estel engoliu seco, agora entendia porque a outra não desgrudava a mão da espada. Mas ficou admirado. Em histórias fantásticas é muito raro ver esse tipo de coisa acontecer, todo mundo está empenhado demais em tentar salvar o mundo ou destruí-lo por inteiro; roubar e violentar pessoas parecia algo tão baixo, tão medíocre. De repente, Eternia ficou parecida com a Terra naquele ponto. Naquele péssimo ponto, por sinal...
— Mas...Solenni...o que a fez acreditar em mim? — indagou Estel, sincero.
— Foi a sua inocência, principalmente. — revelou ela, sem dar a Estel ar de bobo. — Você, mesmo um pouco desconfiado, respondeu tudo que perguntei e até comeu sem pensar que eu poderia tentar envenenar você. Estel, muita gente faria qualquer coisa, digo qualquer coisa mesmo, para ter seu escudo e tirar toda a vantagem que conseguisse com ele enquanto o mundo explode. Além, também, do seu desconhecimento das coisas de Eternia e do manejo com a arma. Os eternianos sabem que um dos três Regidos viria de outro mundo, mas não especificamente qual. O homem que me enganou dizia ser o escolhido do Cetro, e ele realmente tinha muitas marcas que o taxavam como tal. Mas ele falhou na hora que manejou perfeitamente o Cetro.
—Por quê? Não era para ele saber?
— Não, pois essas armas são diferentes de todas as outras. Contem forças especificas que nenhum outro eterniano já usou, então acredito que ninguém saiba de imediato lutar perfeitamente com elas. O homem me disse que fazia poucos dias que havia chegado em Eternia. Fora que há outras possibilidades: o mundo da pessoa estrangeira não estar em guerra, ou se estivesse, ela saber manejar outro tipo de arma, e assim por diante. Como é no seu mundo?
— Bem...às vezes nos temos guerras sim, mas não se usam essas armas. Não existem coisas mágicas por lá. Existem sim, escudos, espadas e tal, mas é peça antiga, coisa de museu.
— Mas há um detalhe, eu ainda não acreditei totalmente em você.
— Então porque me ajudou?
— Porque de onde eu venho me ensinaram a ser assim, mesmo com um total estranho. “Ame a vida tanto quanto ame a batalha; pois sem vida, não há porque nem como travar batalhas, e sem batalhas, não se vive a vida.”, é isso que dizem os mais velhos. “Quando encontrar alguém que necessita de você, não hesite, dê a ele a chance de continuar batalhando pela vida. Mas, atente, se ela não der valor ao seu auxílio, ela está dando o direito de você repreendê-la.”
Estel ficou em silêncio. A voz de Solenni era baixa, mas não desprovida de firmeza. Ela tinha os olhos distantes, como estivesse lembrando-se de alguém. O garoto quebrou o silêncio contando a ela tudo o que acontecera desde que ele chegou a Eternia, tentou extrair de sua memória o que Perseu lhe contara até a parte em que o monstro aparecia.
— Por que me contou isso? — indagou Solenni, séria.
— Eu precisava retribuir o que você fez por mim, não é assim que se faz de onde você vem? Espero que isso me livre de ter a mão cortada. — respondeu o outro, meio inseguro. — É só o que eu posso fazer, contar a verdade.
Solenni perdeu-se novamente em pensamentos, deixando Estel na expectativa. Quando ele pensou mais uma vez em quebrar o mutismo, ela o fez primeiro:
— Para onde estava indo, Estel?
— Como foi que Perseu disse...Es...Espártaca, é acho que é isso. — disse o garoto. — Essa estrada leva para lá, não é?
— Quer ficar na casa do meu avô?
— Hã?!!
— Você tem lugar para ficar?
— Não...
— Sabe quanto tempo precisará ficar em Eternia?
— Não...
— Como acha que vai sobreviver sem, pelo menos, saber manejar uma arma ou usar um equipamento?
— Errr...tá entendi. Eu aceito. Mas seu avô vai aceitar numa boa você levar um estranho?
— Sim. Primeiro, porque ele sabe que eu não levaria qualquer um para o auxílio dele. Segundo, se ele vir motivos para ajudar você, ou não, você vai saber.
— Obrigado... (Estel não se sentiu muito seguro com a última frase de Solenni)
— É melhor você dormir, quanto menos esforço fizer melhor. Eu ficarei de vigia.
— Tem certeza de que não vai descansar também?
— Farei isso na casa do meu avô. Afinal de contas, é melhor que as aracnéias peguem a mim de “surpresa” do que a você.
Estel entendeu a resposta, mas sentiu-se um pouco ofendido. Ela não precisava passar na cara que ele era um completo inútil, só queria ajudar. Respondeu um sonolento “boa noite” e virou-se. Contudo, quase que levantou de novo num pulo, notando algo da conversa. Em nenhum momento Solenni perguntara sobre seus olhos. Isso parecia besteira, considerando que as preocupações dela eram tão sérias, mas para Estel não. Era praxe, quando conhecia alguém (e esse alguém tendo coragem de chegar perto dele), este sempre perguntava sobre os olhos, dizia como eram estranhos. Sua incredulidade quanto àquele fato foi tanta, que se viu perguntando para Solenni:
— Solenni...err...você achou...bem, meus olhos estranhos?
— Sim, achei, sendo sincera. Nunca vi olhos iguais aos seus, amarelos e que brilham no escuro, como os de um gato. Eu pensei que fosse comum no seu mundo... Mas já vi coisa muito pior que isso, Estel. E para ser mais sincera ainda, se seu caráter não for estranho, seus olhos pouco me importam. Por que a pergunta?
— Errr...nada, nada não. Curiosidade.
Estel disse mais um boa noite e virou-se, como se o que ouvira fosse um comentário sobre o tempo. A resposta fora dura, entretanto isso não o deixou chateado, pois veio de alguém que parecia já ter se enganado pelas aparências uma vez e sofrido com isso. Ela fora sincera: achava estranho, mas contanto que ele mesmo não fosse estranho, tudo bem. Estel sentiu uma gratidão reconfortante por Solenni. E com esse pensamento, adormeceu.
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