segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Coroas de Eternia - O Escudo, A Espada e O Cetro

Décimo Primeiro Escrito – Maldição e liberdade



— Ainda falta muito? — indagou Estel, aflito.

— Cara, mais ou menos, pelo que a Ruivinha nos falou, vamos chegar lá no inicio da noite. — respondeu Luan, tão aflito quanto o primeiro.

A situação não estava muito boa entre os regidos. Dois dias depois dos acontecimentos no Templo do Cetro, Solenni começou a ter uma febre muito alta, fraqueza e dores nas costas. Nos pertences dela, Estel e Luan encontraram um minúsculo bicho que o magussírio notou logo ser uma quimera, uma invocação. A criatura possuía corpo de escorpião, patas de louva-deus e um rabo que na ponta, no lugar de um único ferrão, exibia quelíceras amarelas de aranha.

Luan seguiu as instruções que a irmã deixara na caixa de remédios para casos de picadas venenosas. Mas nenhum antídoto surtiu efeito completo, após algumas horas a dor e a febre voltavam.

— Por que nada funciona? — questionou Estel, impaciente.

Já era o quarto dia depois do aparecimento dos sintomas e a quarta noite que os três jovens não dormiam direito.

— Já disse, Estel, aquele bicho não era natural. — respondeu Luan, passando a mão pela cabeça. — Era uma quimera. Não faço a mínima idéia que tipo de veneno tinha naquela coisa, quem sabe seja uma mistura, ou um fabricado pela pessoa que o invocou. Temos muita sorte de estar pelo menos controlando a dor a febre.

— Mas não podemos continuar assim!

— E o que diabos você quer que eu faça?!

— Chega, os dois! — exclamou Solenni, séria, tentando disfarçar o incômodo que sentia. — Minha dor não vai passar com vocês discutindo. Há uma cidade perto daqui. Vamos para lá e decidimos o que fazer.

E foram. Estel e Luan tentaram manterem-se tão calmos quanto à própria Solenni tentava aparentar. O magussírio fez uma maca flutuante para a garota que desde aquela tarde já não conseguia mais nem ficar sentada por muito tempo. Já era o sexto dia depois do ocorrido e, no começo da noite como previsto, eles chegaram a uma cidade que ficava a leste do Rio Argênteo.

— Onde estamos? — indagou Estel.

— Em...Diamantina. — respondeu Solenni, fracamente.

— Sim, é mesmo. Já tinha ouvido falar dessa cidade, mas não imaginava que ela ficava por essas bandas. — disse Luan. — Recebemos suprimentos de metais e jóias daqui.

Estel só foi entender o comentário de Luan depois que passou pelos muros e pelos vigias (que olharam receosos para a doente e os acompanhantes). A cidade era bem grande, mas simples no sentido estrutural, com construções de madeira e pedra que chegavam ao máximo no segundo andar. Os postes de metal, com suas jóias brancas acesas, iluminavam as ruas pavimentas com seixos redondos e irregulares que, mesmo àquela hora, estavam cheias e movimentadas. Carros de todos os tamanhos (alguns deles flutuando centímetros do chão) eram carregados e descarregados a todo o momento e iam e viam sem parar, assim como as pessoas, apressadas, carregando ferramentas de mineração como picaretas, martelos, pás e tantas outras que o defensor não identificou. Ele também não entendeu porque a grande parte delas era tão baixa e tão forte. O barulho era intenso, tanto quanto as colunas de fumaça que riscavam o céu crepuscular.

Por onde passavam os jovens arrancavam diferentes tipos de olhar, desde o admirado até o cobiçoso.

Depois de algum tempo procurando, eles encontraram uma hospedaria. Perto da porta onde o fluxo de pessoas era intenso, duas mulheres conversavam.

— Com licença, as senhoras trabalham aqui? — indagou Luan. — Precisamos de um lugar para ficar, nossa amiga está doente.

— Ô, meu filho, claro que tem lugar! — disse uma das mulheres. A mais baixa e mais velha das duas, corpo robusto e estranhamente forte para uma senhora, rosto bondoso, olhos e cabelos muito escuros numa pele morena. — Ô, pela Coroa Branca, mas como é bonita essa menina! Ô, está tão pálida! O que a pobrezinha tem?

— Foi picada por um escorpião mágico, resumindo a história. — falou Estel.

— Escorpião mágico?! Ô, não entendo dessas coisas, se fosse um casca-roxa, ou patadaga eu até saberia o que fazer. — lamentou-se a senhora. Ela virou para a outra mulher. — Ô, Rosa, minha querida, você pode ajudá-los?

— Claro, se assim eles quiserem. — respondeu ela, que aparentava ter a mesma idade de Nívea. Alta, cabelos claros ondulados, e olhos de um azul suave. Lembrava Magnus no modo de se vestir, tendo até a jóia na testa, mas suas cores eram a verde e a branca. — Mas, primeiro, vamos acomodá-la, sim?

— Ô, é claro! Por favor, meus filhos, me acompanhem. — falou a senhora que, para a surpresa do defensor e do magussírio, colocou Solenni nos braços como se ela fosse uma pluma.

Lá dentro, mais movimento, barulho e fumaça. O movimento de pessoas andando de uma mesa para outra, o barulho delas conversando, xingando e cantando, e a fumaça que saía de seus inúmeros cachimbos.

— Guilhermina, minha doçura, venha pra cá! — gritou um dos clientes, as faces escarlates, agitando para todos os lados uma caneca que mais lembrava um balde. — E traga essas delícias que estão com você! A loirinha e a caidinha aí! Conheço um jeito ótimo de levantá-la!

— Cale essa sua boca imunda, Ferraço!! — exclamou a senhora, antes que Estel e Luan esboçassem qualquer reação. — Vá trabalhar seu anão vagabundo!! — depois ela se virou para os dois jovens. — Ô, meus filhos, desculpa, vocês não precisavam ouvir isso! Por mim aquele porco nunca mais entrava aqui, mas meus empregados têm medo dele...

— Tudo bem, tia...Guilhermina, né? Só pelo “vagabundo” já valeu! Aquele cara vai ficar uma semana em depressão e outra trabalhando tanto que nem vai parar para piscar. — respondeu Luan, rindo. Ele virou-se para Estel. — Não existe ofensa pior para um anão que chamá-lo de vagabundo.

Estel fez “hum rum” apenas por reflexo. Além da indignação que estava pelo comentário dito, estava também admirado de estar no meio de anões de verdade, como os das histórias: com grandes barbas e narizes, olhos atrevidos e feições rústicas. Só que ele não se lembrava de eles serem tão mal-educados assim...

— Pronto, este é o quarto mais tranqüilo da hospedaria, e o mais seguro também. — falou Guilhermina, colocando Solenni na cama. — Rosa, agora é com você, filha.

Rosa então, vendo o movimento de afirmação dos outros dois, sentou-se na cama e olhou algum tempo para a expressão sofrida da espártaca. Em seguida pôs sua mão esquerda sobre a testa, no local do coração, no estômago e, por último, no ventre da paciente.

— Preciso fazer um exame mais detalhado. — disse a mulher num tom sério que preocupou Estel e Luan. — Podem dar-nos licença?

Eles, então, saíram. Sentaram-se no banco que ficava ao lado da porta do aposento e esperaram. Esperaram.

— Ei, cara, relaxa, vai ficar tudo bem com a Ruivinha. — falou Luan, depois de uma meia hora de silêncio pesado, agoniado com a expressão fechada de Estel. — Aquela mulher, a Rosa, se não me engano ela é uma clériga, como o Magnus. São magos especialistas em magias curativas, medicina e coisas do tipo. Ela vai cuidar bem da Solenni.

— Tudo bem, acredito, mas o problema não é esse. — respondeu Estel, sério. Luan notou que o olhar do amigo estava distante, contemplativo. — O fato é que tem alguém atrás da gente... Não...atrás da Solenni.

— Como assim...?!

Foi quando a porta do quarto se abriu, revelando uma Guilhermina triste, de olhos vermelhos e lacrimosos.

— Ô, meus queridos, podem entrar agora. — disse ela.

Os garotos não gostaram da expressão da senhora, muito menos da de Rosa quando entraram no aposento. Séria e muito pálida, como de alguém que acabara de fazer um esforço muito grande, estando na eminência de um desmaio.

No criado-mudo havia uma tigela contendo um liquido branco-perolado muito brilhante. Na cama, uma Solenni deitada de bruços com as costas descobertas, dormindo suavemente como há dias não o fazia. Estel aproximou-se e apertou os olhos, havia manchas negras nas costas da espártaca, manchas que, lentamente, mexiam-se, expandiam-se. Por cima delas, um conjunto circular de várias letras estranhas na mesma cor que o líquido da tigela.

— O que é isso? — perguntou o defensor, tenso.

— Um selo contra invocação de demônios...! — respondeu Luan, horrorizado.

— Você conhece? — indagou Rosa. — Então sabia o que estava acontecendo?

— Pelo Sábio-Rei, não!! Não imaginava que a coisa era tão séria!!

— Alguém pode me explicar o que está havendo?! — exclamou Estel, confuso.

— Como vocês se chamam? — indagou Rosa.

— Estel.

— Luan.

— Vocês disseram que ela foi picada por um escorpião mágico, não foi? — continuou a clériga. — Como ele era?

— Ah, falamos isso apenas para resumir a historia. — respondeu o magussírio. — Na verdade era uma quimera, uma invocação. Era um escorpião preto, com garras de louva-deus e ferrão amarelo em forma de boca de aranha.

— Isso explica muita coisa. E reforça meu diagnóstico. Conheço todas as criaturas que fazem parte dessa quimera, mas, pelos sintomas da sua amiga, o que está nela não é nenhum dos venenos desses animais ou qualquer outro tipo de substância venenosa. — concluiu Rosa. — Essa jovem teve duas magias injetadas nela, uma invocação e uma maldição.

— O que?! — exclamou Estel, mais confuso ainda.

— Quer dizer que naquele bicho...tinha...mas é impossível! Não se pode colocar várias magias dentro de outra como se fosse um brinquedo de encaixe...!! — indignou-se Luan, andando de um lado para outro visivelmente perturbado.

— Concordo, mas por algum motivo sinistro a pessoa, seja ela quem for ou o que for, conseguiu. — falou Rosa, séria.

— Sim, mas o que isso quer dizer?! — questionou o defensor, agoniado. — O que vai acontecer?!

— Veja, Estel, como o Luan falou, este selo que desenhei impede, por um período de tempo, que um demônio, uma criatura maligna, seja invocado. — disse a outra, o mais calmamente possível. — E é isso que está acontecendo à sua amiga agora, uma criatura está sendo invocada de dentro do corpo dela. Só que, para que uma invocação aconteça é necessária grande quantidade de energia e, como a pessoa que começou a magia não está aqui para alimentá-la até que se complete, ela lançou também uma maldição que suga aos poucos toda a energia vital. Resumindo, essa pessoa está usando as forças da amiga de vocês para invocar um demônio. Se ela continuasse sem essa proteção por mais três dias, não haveria mais nada o que fazer...

Um silêncio atormentador concluiu a explicação de Rosa. Estel o quebrou para perguntar:

— Você falou... por um período de tempo... Como assim? Você não consegue desfazer isso?

— Infelizmente não... — respondeu Rosa, cabisbaixa. — Vêem a tigela com aquela água? É o reflexo da alma dela, ainda está imaculado, completamente branco, o que é surpreendente, julgando pelo estado avançado da maldição. Contudo apenas por enquanto...se a maldição não for desfeita dentro de quatro dias, que é o tempo que dura meu selo, a invocação vai se completar.

— E o que se pode fazer para quebrar essa maldição? — indagou o magussírio, tenso.

Rosa olhou para Solenni e para os outros dois respirando fundo muito tristemente. Os garotos não gostaram daquela reação.

— Só há um jeito. Trata-se de magias muito avançadas, profundamente maléficas e que são intimamente ligadas a quem as fez. Tem de se...destruir o executor dela.

Luan esfregou as mãos no rosto e falou um palavrão. Olhou para Estel. As mãos do defensor estavam tão fechadas que logo ficaram vermelhas. As costas, curvas de tensão. A expressão fechada, raivosa. Os olhos dele exibiam uma fina aura dourada...davam medo. Parecia que estava prestes a explodir...porém a única coisa que fez foi caminhar até a cama para se sentar ao lado de Solenni.

— Ela vai acordar? — perguntou Estel, com voz baixa.

— Não, até que a maldição ou meu selo sejam quebrados. — respondeu Rosa.

— Não existe mesmo outro jeito de desfazer essa coisa?

— Infelizmente, não...

— Luan...se você quiser ir dormir, cara, pode ir.

— De jeito nenhum, eu também vou ficar aqui com vocês. — disse o magussírio, resoluto.

— Vou descer e trazer um pouco de janta para vocês... — anunciou Guilhermina, depois de todo esse tempo de choro silencioso. — Pela Coroa Branca, quem poderia fazer algo tão ruim assim? O que vocês fizeram para merecer isso...?

— Nada não, somos só os Regidos de Eternia...bobagem... — ironizou Luan, jogando-se numa cadeira.

Rosa apontou para as bagagens dos jovens e Guilhermina notou as armas recostadas, mas não entendeu muito bem. Ela soluçou mais um pouco e saiu com a clériga.

Estel tirou alguns fios de cabelo que cobriam o rosto de Solenni enquanto dizia para si mesmo um ditado que aprenderacom Mestre Leônidas:

— Se ferirem sua face, atente, você terá duas escolhas: esquecer...ou revidar.




Estava descendo corredores rochosos com cristais de todas as cores brotando do chão e linhas de metais cobrindo as paredes.

— “Que lugar é esse?” — indagou-se.

— “Esta tem sido minha casa desde muito antes de você nascer, regido.” — respondeu uma voz grave e poderosa. — “Mas fui posto aqui justamente para esperar a sua vinda.”

— “Quem é você?”

— “Tepúc Amaru. Soberano da Terra. Um dos Dragões-Totem de Eternia.”

— O QUE?!

Luan acordou dum pulo, assustado, e assustando Estel também.

— O que foi isso, doido?! — exclamou Estel, entre dentes.

— Ô, Estel, desculpa...mas é que...acabei de sonhar! — respondeu o outro, agitado. — Tem um dragão aqui, cara, um dos dragões que Magnus falou!

— O que?!!

— É! Tepúc Amaru.

— E...você sabe onde exatamente ele está?!

— Numa mina....uma que é abandonada...

— Como você sabe disso?! Tinha no sonho também?!

— Não, isso que eu disse pipocou agora na minha cabeça.

— ...o que vamos fazer?

— Eu não sei...mas vou dar um jeito, não posso simplesmente ignorar o que sonhei. Tepúc Amaru é um dragão, Estel, e dragões eram as criaturas mágicas mais poderosas que já existiram! Ele pode ajudar a Solenni, tenho certeza! Tenho que falar com a Tia Guilhermina, ela deve saber onde fica essa mina!

— Calma, tá todo mundo dormindo já. É melhor esperar pela manhã, melhor não chamara a atenção de uma hospedaria inteira perguntando “onde achamos um dragão por aqui?”. Quando você descobrir alguma coisa, vamos atrás desse bicho aí de nome estranho.

— É tem razão...mas não é melhor você ficar com a Ruivinha?

— Verdade, mas também não posso deixar você tentar resolver um pepino desses, sozinho. Sabe-se lá o que vai ter nessa mina, você pode precisar de ajuda. Pedimos para a Rosa cuidar da Solenni enquanto isso.

— Certo. Valeu, Estel!

O magussírio voltou para sua cadeira e refletiu sobre o sonho até cair no sono de novo. Estel voltou para o lado de Solenni. Estava triturado de cansaço, contudo só de olhar aquelas manchas negras a vontade de dormir lhe fugia. Virou o rosto rapidamente para o recipiente com água, que continuava a ondular suavemente em branco. Jurava ter visto reflexos negros e dourados na superfície... devia ser o cansaço e a preocupação...





Tomando café na grande cozinha da hospedaria, Luan não parava de pensar no sonho, o qual tivera mais uma vez naquela outra horinha de sono. O sol começava a entrar pela janela do cômodo, tingindo-o de luz.

— Ô, meu filho, o que foi? — perguntou Guilhermina, trazendo consigo um número impressionante de bandejas. — Está com uma cara tão séria, tão pensativa...

— É...por causa da Ruivinha...a nossa amiga. — respondeu o outro, coçando a cabeça. — Dona Guilhermina...me diz uma coisa...onde ficam as minas daqui?

— Depende, meu filho, a gente tem 20 delas espalhadas pela cidade.

— E...tem muita gente trabalhando nelas?

— Ô, sim! Considerando que vivemos de minerar, e que metade da cidade é de anões ou meio-anões que não conseguem passar muito tempo longe de uma picareta ou de um martelo... a não ser o porco do Ferraço, que mais bebe que trabalha...

— E...não tem nenhuma que foi...abandonada?

— Não, claro que não! Nunca deixamos minas sem funcionamento. Se elas não podem mais funcionar, nós a aterramos de novo.

Luan quase cospiu café na mesa. Dona Guilhermina se assustou e Luan fingiu rapidamente um engasgo.

— Ô, meu filho cuidado! — disse a senhora. — Mas porque está perguntando isso, menino?

— Ah! Nada! Curiosidade....

A senhora olhou-o como uma mãe que já desconfia da próxima traquinagem do filho. Luan concentrou-se na sua caneca de café para evitar aquele olhar. Guilhermina deu um breve suspiro e disse:

— Olha lá o que você vai fazer, hein, menino... Vou levar alguma coisa para o seu amigo comer, ele mal tocou no jantar e não pregou os olhos. Está tão abatido, ele...

E saiu falando consigo mesma. Luan colocou a caneca na mesa e falou:

— Pode sair, Rosa.

A clériga entrou na cozinha por outra porta, surpresa. Perguntou:

— Como conseguiu saber que era eu?

— Não sei. — respondeu Luan, dando de ombros. — Senti um cheiro muito doce e de repente sua imagem me veio a cabeça...você atrás dessa porta ouvindo minha conversa com a Dona Guilhermina.

— Desculpe-me, não pude evitar. Mas isso foi incrível...mesmo alguém muito habilidoso em magia não tem tanta precisão em perceber pessoas como você o fez agora...

— É...foi tão incrível que não serve de nada para ajuda a Ruivinha...

— Não se cobre por algo que você não pode controlar. Ainda mais porque agora virá algo muito difícil para você.

— Do que está falando? Está dizendo isso por causa da conversa?

— Também, eu diria.

— ...?

— Eu sonhei com um dragão e com vocês três.

— O que?! Quando?!

— Uma vez antes de vir para Diamantina, outra quando dormi aqui a primeira noite e a terceira vez ontem.

— Você sabia de nós e não disse nada?

— Desculpe-me, precisava ter certeza...nos sonhos eu não os via claramente, nem a voz me revelou seus nomes. Só disse que viriam e que eu ajudasse o magussírio a encontrar o Soberano da Terra.

— ...

— Então, posso acompanhá-lo? Ajudarei no que puder.

— Certo, mas não fale nada com o Estel, é melhor ele ficar com a Solenni. Você sabe de alguma mina abandonada na cidade, uma que não tenha sido soterrada?

— Sim. Guilhermina se esqueceu de mencionar uma vigésima primeira que foi fechada, mas não completamente.

— Por quê?

— Bem, disseram que apesar de muito rica, a mina era muito instável. Tremores de terra, deslizamentos, rachaduras...sinais considerados de mau agouro para um anão. Ela era tão insegura que os mineradores não conseguiram fazer os procedimentos de aterragem.

— Ah!...pela Coroa Branca, porque as coisas mais poderosas do mundo tendem a serem escondidas nos lugares mais inapropriados...?

— Para ver se os que vão atrás delas realmente as merecem.

— Se isso era para me “encorajar”, não deu certo.

— Tudo bem, no fim eu sei que você vai conseguir mesmo. Você se importa muito com sua amiga, vai fazer o que for preciso para ajuda-la.

— É verdade... Dona Guilhermina não vai desconfiar de nada?

— Não, ela sabe que tenho negócios a tratar aqui, vai pensar que o levei comigo para se distrair.

— É, de certa forma...

— Tem certeza de que não vai avisar Estel?

— Sim. Vamos.




“Não se separem.”

“A benção da Coroa Branca está sobre vocês, lhes protegerá.”

“Não deixem que ela se quebre, não se separem.”

“Não se separem.”



“Foi isso que disseram para nós.”




— Estel. Estel, acorde!

O defensor, que se sentara numa cadeira próxima para tirar um cochilo, levantou o olhar para quem o chamava.

— Hãã...oi, Rosa. — falou, com a voz engrolada de sono. — Acabei desmaiando aqui mesmo...

— Não é para menos. — disse Rosa. — Precisa descansar um pouco Estel. Eu trouxe café, aceita?

— Sim. Onde está Dona Guilhermina e Luan? — perguntou.

— Guilhermina está cuidando do café dos hóspedes lá embaixo. — respondeu a outra. — Mas o Luan...não o vi ainda hoje.


Não se separem. Foi isso que disseram para nós.”



O pensamento estalou na mente de Estel que se arrepiou da cabeça aos pés. A imagem de Luan descendo uma espécie de caverna surgiu ante seus olhos, seguida da de uma sombra com riscos de chamas corpo.

— Estel, está tudo bem? Você ficou pálido de repente. — comentou Rosa. Tinha algo de estranho na voz dela....estava feliz. — Deixe que eu cuido de Solenni.

Estel sentiu um segundo arrepio, esse tão forte que o fez pular da cadeira. Como ela sabia o nome de Solenni?! Tinha certeza de que não comentara com nenhuma das duas mulheres! Mas o mundo começou a rodar, a ficar escuro e ele desmaiou.




Evitando as ruas principais e as de muito movimento, Rosa e Luan iam para a ala sul da cidade, bem próximo de onde o segundo havia chegado horas atrás. Passavam rapidamente por armazéns, ferrarias, depósitos e garagens. O magussírio sentia-se desconfortável, se esgueirando de tudo e de todos como se fosse um ladrão; ele olhou para Rosa, vendo um semblante sério e concentrado. Ela realmente estava determinada a fazer aquilo, pensava Luan, admirado e agradecido, pois a idéia de ir sozinho lhe causava calafrios.

— Rosa, tem certeza de que não seremos seguidos? Alguém pode desconfiar. — indagou o magussírio, tenso.

— Certeza eu não tenho, mas estou fazendo o possível para isso não acontecer. — respondeu a outra. — Vamos por ali, é uma série de casas abandonadas, vão nos esconder por essa parte do caminho.

Eles esperaram que três carros flutuantes passassem, para seguirem até as casas desocupadas. Descobriram então o motivo do abandono: elas ficavam ao lado de uma grande carvoaria. Contudo, apesar do sufoco e da pouca visibilidade por conta da fumaça preta que invadia o lugar, os dois tiraram vantagem disso para continuarem a caminhada furtiva. As pessoas que trabalhavam ali não tinham expressões muito felizes e estavam concentradas demais em acabar logo o serviço ingrato para notar quem quer que fosse.

Depois da carvoaria seguia-se uma área de pedras, de todos os tamanhos, sendo cortadas e lixadas em variados formatos. Ali foi mais difícil manter-se oculto, a pedreira formava um labirinto, e várias vezes Rosa e Luan se perderam ou quase trombavam com alguém.

— Corra para aquele ferro-velho! — pediu Rosa. — Estarei logo atrás de você.

Luan seguiu a ordem e, como louco, correu na direção das carcaças de metal, separadas de onde eles estavam por alguns metros perigosos de passagem livre. Atrás do metal retorcido, o magussírio voltou seu olhar para procurar por Rosa. Assustou-se. Um homem com um carrinho de mão atravessava a passagem que a clériga acabava de entrar também. Ele a viu e logo começou a questionar o que ela fazia ali. Rosa, sem saída, ergueu a mão e lançou um jorro de luz branca no rosto do homem, que não teve outra reação a não ser cair ao chão.

— O que você fez com aquele cara? — indagou Luan, recuperando-se do susto.

— Eu o pus para dormir. — respondeu Rosa, respirando fundo. — Não tive escolha. Em algumas horas ele vai acordar e nem vai lembrar o que viu. Vamos, estamos quase lá.

Enquanto Rosa e Luan adentravam o ferro-velho, um anão encontrou o homem caído no chão. Tentou acordá-lo, sacudiu-o e nada. Chamou outro trabalhador para examiná-lo. Este se assustou e disse que o homem estava morto.


— Veja, ali está. — indicou Rosa, um círculo de carcaças de carro.

Atrás dele, um alçapão trancado com correntes e coberto com pedras.

— Agora começa o trabalho pesado. — suspirou Luan, apontando o cetro para os escombros.

Dez minutos depois o alçapão estava aberto, mostrando uma rampa de pedra que se desfazia num fundo escuro.

— Hum! Bem convidativo... — comentou o regido.

— Melhor fecharmos a passagem quando entrarmos. — disse Rosa, olhando ao redor constantemente. — É mais uma segurança para não sermos seguidos.

— Não vamos morrer sufocados?

— Não. Ao construir uma mina os anões podem até fazer apenas uma entrada de pessoas, mas nunca se esquecem de fazer milhares das de ar.

Luan ergueu o cetro e logo a jóia da ponta iluminou-se de branco. Rosa fez algo parecido, sendo que segurava sua luz na própria mão. Eles entraram e com alguns movimentos trancaram o portão com correntes, fechando a passagem.

A área iluminada que produziam mostrava um corredor de pedra com sustentações de madeira velha e carcomida, quebrada em várias partes. Teias de aranha disputavam espaço no teto com lanternas enferrujadas. As paredes exibiam muitas partes rachadas, mas também partes intactas e talhadas, tudo confirmando que um dia o local foi usado.

Luan agora, juntamente com a tensão de estar fazendo algo ilícito, sentia uma estranha sensação de familiaridade...aquele era o lugar do seu sonho. Ele esperava que fosse um bom sinal.

A caminhada dos dois iniciou-se lenta e assustada. A rampa de pedra era ruim de andar, coberta de pedregulhos. Depois dela o chão aplainou-se e o corredor alargou-se, contudo não ficou mais firme estruturalmente falando, dividindo-se numa linha reta e uma curva para a esquerda. Nesta havia trilhos no chão, tão velhos e desgastados quanto os suportes do teto.

— Luan, o que vamos fazer agora depende de você. — falou Rosa, sinceramente. — Esta é uma entrada secundária da mina, pelo que vejo, um tipo de atalho para se chegar mais rápido ao centro na escavação, mas existem vários como esse, o que quer dizer que entramos em um gigantesco labirinto.

Luan nem precisou pensar muito para perceber o quão arriscado era aquela expedição baseada num sonho. Ele olhou para os dois caminhos e respirou fundo, não queria passar o resto da vida perdido ali. De repente, começou a sentir uma vibração sob os pés e, com o susto que aquilo lhe causara, apoiou-se na parede, sentindo a mesma vibração entrar pela sua mão e chegar até o ombro.

— Luan, o que houve? Algum problema? — indagou Rosa apreensiva.

— Eu...estou sentindo a terra mexer, sei lá...onde eu encosto, sinto uma vibração. — respondeu o magussírio, olhando para as mãos e para as paredes.

— Deve ser algum tipo de sinal, a caverna deve estar lhe falando para onde deve você ir.

— Como você sabe?

— Primeiro, porque eu não estou sentindo nada disso; segundo, quem precisa de verdade achar o dragão aqui é você. Para quem acha que mostrariam o caminho?

Luan achou o argumento bem válido. Voltou a encostar as mãos nas paredes e a sentir a vibração. Ela ficava mais intensa quando ele continuava em linha reta, a terra praticamente estava empurrando seus pés.

Alguns minutos de caminhada começaram a revelar sinais significativos que o jovem estava chegando ao objetivo. Fios de cristais de rocha estampando as paredes e a sensação de familiaridade crescendo cada vez mais. Porém, junto com o barulho de pedras sendo pisadas, Luan e Rosa escutavam ao longe um chiado agudo.

— Que som é esse? Esse chiado? — questionou Luan. — Você está ouvindo, não é?

— Sim, e eu sei o que é. — respondeu Rosa, tensa. — Se você puder se apressar será ótimo para nós. Essa caverna ficou vazia de pessoas, mas só delas.

— Outro ótimo argumento.





Estel abriu os olhos, assustado. Tudo à volta estava rodando, sentiu-se nauseado, o corpo dormente e mole.

Ele, pelo menos, achava-se no quarto. O que havia acontecido? Teria sido por conta da noite mal dormida? Não...já tinha passado noites em claro e nunca tinha ficado tão mal. A única coisa de que se lembrava era de ter tomado um gole de café e, em seguida, caído ao chão...Rosa havia trago a bebida para ele... Virou o rosto em direção a cama....Vazia.

Solenni!

Um choque percorreu todo o corpo do defensor, acordando-o de vez. Levantou-se dum pulo. Outro choque. Respiração ofegante, peito dolorido, a cabeça a mil por hora. Tinha que fazer alguma coisa. Elas não poderiam ter simplesmente sumido. Não tinha muito tempo. A água da bacia era uma mistura medonha de branco e negro.





— Corra, Luan! Mais rápido!! — exclamou a clériga, ofegante.

— Estou tentando!! — gritou o outro. — ESTOU TENTANDO!

Luan e Rosa corriam enlouquecidos pelos corredores de pedra. O som que antes os perseguia agora tomara forma, uma forma horrível. Uma minhoca gigante, de pele asquerosa, leitosa e melada de alguma coisa pior ainda; não possuía olhos, mas boca até demais, sendo três círculos de dentes que abriam e fechavam sem parar, fazendo o chiado irritante.

O verme aparecera de repente, quase derrubando uma parede em cima deles. Além disso, por conta da necessidade da fuga, Luan não pode mais se concentrar nas paredes, perdendo-se sem a possibilidade de volta, pois a passagem fora bloqueada.

— O que a gente vai fazer?! — indagou Luan, desesperado.

Os dois que corriam estancaram. Haviam chegado num corredor repleto de vagões empilhados que quase obstruíam a passagem. A clériga jogou sua esfera de luz mais a frente, revelando um buraco no meio da pilha.

— Continue, continue, tem uma passagem ali! — pediu Rosa.

Se a perseguição já estava apertada, agora se tornara mortalmente colada. Subir, desviar e atravessar destroços de madeira e metal era complicado e machucava. O verme não parecia sofrer a mesma coisa, tudo era triturado por seus dentes. Ele, então, levantou o corpo gigante e começou a se debater contra as paredes, fazendo tudo tremer, principalmente as pilhas de vagões.

— Vai, Luan, passa por aí, você cabe! Vai logo! — mandou Rosa.

— Como assim?! Mas e você?! — retrucou o magussírio.

— Esse espaço é muito pequeno e com toda essa movimentação vai ficar mais apertado! Vai logo antes que tudo caia!! Passa LOGO, pelo Sábio-Rei!

O mostro debateu-se com mais força, fazendo alguns vagões caírem, encurralando mais os outros dois.

— O que você está esperando!? — exclamou Rosa, nervosa. — Você é quem precisa continuar!

E jogou o regido dentro da passagem, que continuou sem mais hesitação. Ele virou-se e viu que a outra já tentava entrar na passagem apesar do aperto. Contudo, a minhoca deu mais um encontrão, dessa vez contra o chão. O que estava, por algum milagre, mantendo-se sustentado ainda, desabou de vez. O estrondo e a fumaça encheram o corredor, pedras começaram a cair e Luan teve que correr novamente. Seguiu assim até chegar numa dobra do caminho, no qual se jogou para não ser esmagado pela chuva de rochas e madeira.

Descobriu a cabeça quando o silêncio retornou, apenas para perceber que estava sozinho no escuro.





Estel desceu as escadas da hospedaria ainda tonto e assustado. E a sensação aumentou mais ainda quando viu o lugar vazio e fechado. Rosa havia mentido? O que diabos estava havendo?! Será que ela era quem estava esse tempo todo atrás deles?! Onde estava Dona Guilhermina?! O que Rosa queria com Solenni?!

O clima do local estava tão pesado quando as costas do defensor, que não sabia se procurava por alguém ali ou se corria para a cidade.

...

Dona Guilhermina que o perdoasse, ele iria atrás de Solenni.

A cidade fervilhava, não havia sinal de que havia acontecido algo de diferente. A luz do dia já ia alta, cegando-o por alguns instantes. Será que ninguém estranhou o fato da hospedaria ainda estar fechada?! Estel andava de um lado para outro alucinado. Numa das ruas que percorria, reconheceu duas pessoas que estavam no restaurante da hospedaria na noite anterior.

— Com licença. — disse o garoto, afobado. — Vocês viram Rosa, a mulher que estava com Dona Guilhermina? Ela é alta, loira, roupas brancas e verdes.

— Sim. — respondeu uma das pessoas, para satisfação de Estel. — Eu a vi bem cedo acompanhada de um jovem até parecido com ela, pele clara, loiro também... Pois é, eu os vi indo para o lado sul da cidade.

— “Luan...” — concluiu Estel, mas sem entender. Rosa havia dito que não vira Luan...e de repente saiu com ele?! Será que fora no meio tempo em que passou desacordado?! Mas se foi, o que ela fez a Solenni?!

— Foi mesmo? — falou a outra pessoa, estranhando. — Pois tenho certeza de que a vi passar uma hora atrás para o lado leste, para a área dos transportes. O carro dela estava carregado, acho que já estava de partida da cidade.

— O que?! — exclamou o defensor, aterrorizado. — Você viu se ela levava alguém?!

— Alguém, eu não sei. Mas como disse, o carro estava bem carregado...

— E onde fica esse lugar aí?! O dos transportes?! Onde?!

— Por aqui, rapaz, pode ir direto, garanto que você vai saber qual é. Mas o que houve? É tão ruim assim?

— Péssimo! Péssimo!

E Estel deu às costas as pessoas e correu alucinado. Que Luan o perdoasse, ele iria atrás de Solenni.





Luan, ainda acuado no esconderijo que achara, encontrava-se num frenesi interior atordoante. Os sons de madeira e metal se triturando, os chiados agudos do verme enquanto ele se debatia nas paredes, Rosa sendo coberta pelos destroços e pelas pedras, tudo se misturava loucamente na sua cabeça, fora a sensação de que estava completamente só. Ele tinha que encontrar o dragão, mas mal conseguia se mexer...

— “Acalme-se, garoto”. — ribombou uma voz, a qual Luan reconheceu no mesmo instante, nas paredes de rocha. — “Escute a voz de Tepúc Amaru e venha ao meu encontro! Tire-me dessa dormência secular! Eu quero ver a Lua novamente!”.

O magussírio deixou-se levar pelo pedido veemente que ouvira, erguendo-se e seguindo os comandos que a voz lhe ditava. Mais uma vez a terra voltou a lhe empurrar, a vibrar sob suas mãos e pés.

Vira, desce, sobe...após algum tempo que Luan não contou, ele desistiu de decorar o caminho que seguia. Num dos corredores que entrou, a luz do cetro encontrou mais cristais, que agora saiam do chão como lanças coloridas, e fios metálicos desenhando o teto. O cenário do seu sonho era aquele, tornara-se definitivamente real. O ar estava se preenchendo com uma presença muito poderosa.

— Pelo Sábio-Rei...!! — admirou-se Luan.

O regido esqueceu-se de tudo que embaralhava sua mente e a dor no corpo ao ver onde chegara. Um gigantesco fosso ovalado com escadas de pedra que espiralavam até o fundo. A luz do cetro tornara-se inútil ante aos cristais que se amontoavam no teto, brilhando como estrelas. Vagões e ferramentas de mineração abandonados ali e acolá diziam que o local não fora de escavação e exploração, mas sim de escultura. Espirais quadradas, retângulos, triângulos e detalhes retilíneos estavam nas paredes juntamente com mais cristais e metais trabalhados.

—“Deixe para apreciar minha casa depois, garoto!” — exclamou a voz de Tepúc, grave e apressada. — “Venha até aqui! Liberte-me da maldição do estático!”.





Estel encontrava-se na parte mais caótica de Diamantina, cheia de carros flutuantes e normais, pessoas, cargas e máquinas. Havia pouco espaço e muito barulho.

Mais a frente os muros da cidade eram divididos em nove portões por onde os transportes saíam. No quinto, um tumulto. O sentiu uma fisgada de tensão no ombro. Era para lá que devia ir. Correu.

— Perdoe-me, senhorita, você não vai poder passar! Este carro não está registrado para sair hoje e pior ainda, não está no seu nome! A não ser que você se chame Oscar. — exclamou um anão, mal-humorado, olhando para os símbolos que havia na lateral do carro à sua frente. — Se quiser passar vai ter de fazer uma vistoria na bagagem e... Se não estou enganado, não é a senhorita responsável por um carregamento de diamantita e mitril que vai amanhã para Arthuria?!

— SEGUREM ESSA MULHER! — gritou Estel, rasgando a garganta de tanta raiva, tentando se desvencilhar dos guardas do local, que o seguravam. O defensor entrara tão desembestado pelas pessoas e pelos carros que chamou a atenção (e a revolta) de muita gente. — Cadê a Solenni, Rosa?! E o Luan?! O QUE VOCÊ FEZ?!

A cúpula de luz verde apareceu sobre Estel, só por alguns segundos, mas o suficiente para empurrar as pessoas ao seu redor, causando um dominó humano. Ele nunca quis causar isso e ficou constrangido. Com tal distração, Rosa bateu no painel do veículo, fazendo-o disparar, quebrando as cancelas de ferro que o isolavam. O anão que a interrogava apertou imediatamente alguma coisa em sua cabine, fazendo cordas de metal saírem do chão e se engancharem no carro. Com o baque, coisas foram jogadas para fora, descobrindo um amontoado de panos. Um braço e cabelos vermelhos penderam sobre as laterais.

— SOLENNI! — exclamou Estel, indo em direção ao carro, enquanto as pessoas gritavam de susto.

Rosa virou-se, o rosto irreconhecível de raiva. Ela ergueu as mãos e as apontou para as cordas e para o defensor, então fogo branco jorrou.

Sxildo Verda! — gritou o defensor, erguendo o escudo.

As pessoas entraram em pânico, mesmo que nenhuma delas tenha sido atingida, protegidas por uma cúpula de vidro verde. O carro, aproveitando-se disso e já livre das cordas, acelerou e fugiu.

— Segurem aquele carro!!! — berrou Estel, agoniado.

— Alerta de quebra de segurança número dez! EU DISSE DEZ! Transporte com carga humana em alta velocidade!! — esbravejou o anão através de um megafone. — Caçadores a postos! Repito, caçadores a postos! AGORA!!

Nos instantes seguintes pessoas vestindo capas azuis subiram nos muros. Carregavam duas armas de fogo cada uma. Elas se posicionaram, miraram e começaram a atirar.

— Ei, eles não vão acertar a pessoa errada com tantos tiros?! — indagou Estel.

— Aqueles dali?! Duvido, filho. — respondeu o anão, tenso. — Mas eles vão parar aquele carro não importa como.

— Mas...!

— Preparem uma patrulha para resgate. — o anão voltou a gritar no megafone. — E, pelo amor do Sábio-Rei, levem esse moleque daqui do portão cinco, ele não para de me encher o saco!

Logo o transporte chegou e disparou em perseguição ao que saíra. Mas ele estava muito longe, muito rápido, os tiros dos caçadores não causaram nada a ele para espanto de todos. Rosa estava fugindo!





Luan, depois de descer as escadarias, parou diante de um pátio circular com uma ligação para uma parede sem portal ou sinal de abertura. Nesta, estava esculpido o desenho de uma lua em quarto minguante que exibia ao redor vários outros detalhes daqueles das paredes do fosso além de algumas cenas. Pessoas de túnicas e cocares louvando a lua, cantando, plantando, dançando, convivendo com outras pessoas. Cenas comuns, de pessoas comuns; bem diferente do que Luan imaginaria na casa de uma quase divindade.

— E agora, o que eu faço? — indagou o magussírio, que só obteve como resposta sua própria voz ecoando. — Ah, maravilha...você tinha que se calar na hora mais difícil, né?! Olha, nem sei por que eu fui ouvir você, até agora só me fez passar mal bocados e...

E o regido não percebeu, mas, durante seu desabafo frustrado, esmurrou a grande lua minguante. Imediatamente ela girou e um grande pedaço redondo de parede caiu ao chão, mostrando uma passagem.

Luan não pensou duas vezes e entrou, estava doido para xingar a cara desse tal Tepúc Amaru, não importava o que ele fosse!

Logo após a entrada havia um simples salão retangular com colunas coberto de cima a baixo com todo tipo de planta, cristais e veios de metal; no teto, a mesma lua minguante do lado de fora esculpida em baixo relevo; ao fundo, um cristal verde esculpido em forma de torre, que iluminava o aposento com sua aura. Todo o ar ali era preenchido com cheiro de madeira, terra, flores e frutas. Luan sentiu-se completo, renovado, saciado.

— Então...é você?! — indagou o magussírio, estranhando o que achara dentro do cristal.

Um homem. Mediano em altura, musculoso, pele morena. O rosto, de expressão severa, exibia rugas da meia-idade e barba negra com tranças onde argolas de metal pendiam no final. Vestia-se de verde, marrom e ocre, além de belas sandálias de couro. Nos braços descobertos, pulseiras grossas de cristal verde-escuro. E apesar da aparência nobre, o que mais chamava atenção na figura do adormecido era que a metade esquerda do corpo dele era completamente coberta por desenhos em preto, iguais aos ornamentos das paredes do fosso.

— “Finalmente!” — exclamou o homem, sem mexer a boca. — “Pensei que não chegaria nunca! Aquela tranca é a coisa mais fácil do mundo de se desfazer por isso não disse nada. Não precisava ter esmurrado a parede...”.

— O que?! Tranca?! Olha, eu não sabia nada daquilo ali fora, isso não lhe dá o direito de reclamar, velho! — reclamou Luan, indignado. — Você sabia que uma pessoa morreu, MORREU, por minha causa?!

— “Morreu? Você tem certeza?”.

— Pelo amor do Sábio-Rei! É claro que...

— Não.

Luan sentiu uma pedra de gelo descer por sua espinha e o mesmo cheiro doce de logo cedo invadir suas narinas. Virou-se. Entrando no salão calmamente vinha Rosa. O mago respirou fundo, espantara-se, ela parecia não ter sequer um arranhão. Exibia um sorriso estranho, sinistro até...

— Ah, nem acredito... — disse ela, olhando fixamente para o cristal e seu conteúdo.

— Rosa...é, tá tudo bem com você? — perguntou o magussírio, inseguro. — Eu pensei que...

— Pensou o que? Que eu tivesse morrido?

— ...

— Claro que pensou, não é? Afinal, deixou-me para trás sem pestanejar, sequer tentou me ajudar a escapar.

— Ei...eu...você mesma disse que não dava! Que era uma passagem pequena! Eu vi você ficar presa nela antes daquilo tudo desabar! Eu só não fiz nada porque o teto começou a cair e...

Rosa, para o espanto de Luan, começou a rir. Uma risada desdenhosa e, por mais incrível que parecesse para os ouvidos dele, indiscutivelmente masculina.

— É tão ridículo quando uma pessoa tenta justificar sua covardia, seu medo de morrer. — disse ela, ainda agora com a voz masculina também, cheia de desdém. — Admita seus atos, covarde! Por que as pessoas mais medíocres ficam com as dádivas mais belas?

— Do que você está falando?! — exclamou Luan, confuso.

Rosa olhou para ele como se fosse o verme que os atacara antes. Ela respirou fundo, passou a mão direita pela face e ao longo do corpo. O mago arregalou os olhos e paralisou.

— Você?!! – disse.





Estel corria para todos os lados, não perdendo nada de vista. Felizmente a floresta não era densa e a luz do dia a deixava mais limpa.

Um dos caçadores da patrulha conseguira atingir o carro fugitivo, fazendo-o fumaçar e cair no chão. O grupo disparou para o local da queda, mas faltando poucos metros, Rosa ergueu-se e fez surgir um paredão de chamas brancas. Estel levantou novamente a cúpula verde e todos atravessaram. Após isso Rosa colocou Solenni nos ombros como um saco de areia. O defensor notou, agoniado, que o braço direito da espártaca estava coberto de machas negras.

— Ela está indo para aquele bosque! — gritou o defensor. — Vai tentar nos despistar!

— Ninguém se esconde dos caçadores, garoto. — respondeu o homem que dirigia o carro. Ele levou a boca algo que lembrava um telefone e continuou. — A fugitiva está se dirigindo para o bosque a leste dos muros, precisamos de reforços! Repito, precisamos de reforços, caçada eminente!!

Chegando à borda do bosque, o grupo se separou em duplas e entraram.

Passaram- se quinze minutos e nem sinal de Rosa. Estel virou-se para o motorista do carro, que mandou que ele o acompanhasse, e perguntou:

— Você tem como saber se os outros acharam alguma coisa?

— Se tivessem, já teriam avisado, mas não custa nada perguntar.

O caçador soltou um assovio longo seguido de três curtos e rápidos. Não houve resposta. Estranhando, ele fez mais uma, mais duas vezes, todas sem resultado.

— O quer dizer isso?! — perguntou Estel, impaciente. — Cuidado!!!

O regido não obteve uma resposta, pois a terra tremeu, abriu e engoliu o caçador em segundos.

— Esse foi o último.

Estel virou-se, assustado, tanto com a cena do homem sendo enterrado vivo, quanto ao ver quem estava atrás dele.





Luan encarava trêmulo e boquiaberto a pessoa a sua frente. Um homem vestido elegantemente, de pele bronzeada, cabelos ondulados firmemente presos em rabo-de-cavalo, e um rosto com olhos negros marcados com raiva, desdém e tristeza, tudo ao mesmo tempo.

O magussírio o conhecia, era amigo de seu pai. “Era” mesmo, porque “era” para ele estar morto! Ainda lembrava, quando morava com o pai, este chegando a casa anunciando o falecimento do amigo Hazaniel Charriot. Suicídio...

— Você?! Mas...como?! ...você morreu...! — exclamou Luan, em total choque.

— É, Luan, foi mais ou menos isso que aconteceu. — respondeu o homem, com sua voz baixa e grave. — Você cresceu rapaz. Como está meu estimado amigo Dimitri?

— Não fale comigo como se fosse a coisa mais normal do mundo! Como...pode estar aqui?! O que você quer?!

— Não é óbvio, meu jovem, vim tomar para mim Tepúc Amaru.

— Você só deve estar de brincadeira... Não pode fazer isso...não sem o Cetro.

— Eu não preciso dele realmente, assim como devo nenhuma satisfação para com você.

— O que você fez com a Rosa?!

— Já disse que NÃO lhe devo satisfação alguma! Agora, CALE-SE!

O homem movimentou o braço direito, o qual possuía até o cotovelo uma aparência curiosa, de vidro com um líquido branco e luminoso em seu interior. Luan foi separado do cetro e preso por correntes que brotaram do chão.

O regido remexeu-se como um louco para se soltar, tentou anular a magia, contudo falhou. Observou tenso o outro caminhar calmamente para o cristal onde Tepúc estava e observá-lo como se fosse apenas um belo jarro num canto de sala. Luan prendeu o olhar na mão de vidro de Hazaniel...não lembrava dele já a ter antes...o pai comentara que Hazaniel morrera envenenando-se...

Com um estalo incômodo, lembrou-se do que Estel lhe falara: “o último que tentou alguma coisa contra ela teve a mão decepada.” Será que...?! “Alguém está atrás da gente, atrás da Solenni!”. Seguido a isso, uma série de outras lembranças afloraram: como a sensação e o cheiro no Templo do Cetro, a mesma sensação que teve quando capturou o bicho que amaldiçoou Solenni. As palavras de Rosa “Isso é um selo de invocação de demônios”, as palavras do pai “Boa noite, meu amigo, meus parabéns! Ganhou o título honorário de o Gran-Invocador” .... Era ele, só podia ser... Mas por quê?!! Além desses pensamentos alucinantes, Luan ainda tinha a preocupação de que o dragão parara de falar com ele.






Um homem com elegantes vestes, típicas dos magussírios, aparecera para Estel, porém o que o fez entrar em choque fora a visão da pessoa ao lado dele. Solenni. Sentada, encurvada, cabeça baixa, com a respiração ofegante e chiada. Seu tronco, semi descoberto, estava completamente tomado por manchas escuras, e elas já se espalhavam para as pernas e a cabeça.

— Quem é você?! — exclamou o defensor, irritado. — Onde está Rosa?! O que você fez a Solenni?!

— Hazaniel Charriot é a minha graça. — respondeu o homem, com sua voz baixa e grave. — Desde que você apareceu, meu caro, tive de adiar meus planos. Mas agora eu vou por um ponto final nisso.

— Do que diabos você tá falando?!!

— Saber o meu nome foi o suficiente. Eu não devo nenhuma satisfação a um futuro cadáver.

Estel ajeitou o escudo. Os ombros estavam duros de tensão. A cabeça latejava com tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Estava com medo de ser pego tão facilmente quanto o caçador, contudo o medo maior era do que podia acontecer a Solenni. A imagem da água do recipiente se torcendo em preto e branco era constante em sua mente.

O homem ao lado da espártaca iniciou movimentos com as mãos. Estel notou que a mão direita dele era de vidro brilhante. Assustou-se. Solenni começou a se contorcer, a respiração acelerou e as mãos remexeram a terra, era visível que sentia muita dor. Uma substancia negra, aquosa e gasosa ao mesmo tempo, começou a subir de suas costas. A cada gesto do homem ela aumentava, cortada aqui e acolá por fios de fogo dourado.

Num dado momento a substância havia se tornando mais alta que o homem e tomado forma. Solenni já mal se mexia. Estel viu sua visão de momentos atrás de tornar real, horrivelmente real. O outro disse:

— Existem duas maneiras de se resolver isso, meu caro: primeira, você desiste e morre junto com ela; segunda, você morre lutando e destruindo a ela. Dos dois jeitos você vai me facilitar às coisas. Então?





Luan observava Hazaniel tocar no cristal do dragão. A torre esculpida estava dividida em inúmeros tijolos e em cada um que o homem tocava aparecia um desenho. O magussírio aprisionado entendia (não sabia por que) esses desenhos, que simbolizavam palavras comuns como terra, montanha, rigidez, cristal, soberano, coroa e outras nem tão comuns assim como Hinkas e Chichay.

— Hum...interessante. — falou Hazaniel. — Pelo que vejo é necessário falar algumas ou todas as palavras daqui numa seqüência correta para libertar o dragão. Vou precisar da sua ajuda rapaz.

Luan foi puxado, ainda acorrentado para próximo de Hazaniel e do cristal. De repente ele viu todos os desenhos saltarem dos tijolos. Hazaniel sorriu satisfeito. A expressão de Tepúc Amaru era fechada, furiosa.

— Escute, Luan, tenho uma proposta a lhe fazer. — disse o homem. — Liberte o dragão e eu libertarei a espártaca.

—...!!! — Luan estremeceu nas correntes.

— Sim fui eu quem a amaldiçoei. E, pelo que sei, há essa hora o demônio que implantei nela está prestes a nascer. E você sabe o que vai acontecer se nada for feito.

—...

— Portanto, é bom agir rapidamente, jovem, mais precisamente assim que eu retirar as correntes de você. Não gaste suas palavras, fale apenas o que for estritamente necessário.

Com um gesto rápido Hazaniel desfez a magia sobre Luan, que caiu no chão e ali ficou estático, sem saber o que fazer. Ele não confiava de modo algum no acordo feito...mas se não fizesse nada seria pior, até para ele mesmo.

— Então, não vai começar? — indagou Hazaniel, calmo. — O tempo dela é mínimo.

Luan sentiu um estalo nos músculos dos ombros cheios de tensão e raiva, a indiferença com que o outro falava era revoltante. Voltou seu olhar para a torre de cristal, concentrando-se nos desenhos.

— “Pelo Sábio-Rei, garoto, que demora!” — resmungou Tepúc. O magussírio segurou-se para não demonstrar que levara um susto. — “Depois que esse medíocre apareceu você simplesmente me ignorou! Hã?! Não sabia que eu ainda estava falando com você? Hum...este homem o assustou mesmo, hein, filho? Não, ele não vai ouvir nossa conversa. Nossa ligação, regido, foi feita muito antes de ele pensar em nascer e é muito mais forte que esse túmulo de cristal. Pode até ser interferida, mas nunca quebrada. Mas isso é só porque o seu coração é novo, é gema bruta a ser lapidada. Liberte-me, Sceptro Mastro, e deixe-me lapidá-lo!”.

— Então, Luan, nada veio à sua mente?! — indagou Hazaniel, impaciente. — Eu não vou esperar mais tempo!

O regido sequer ouviu a ameaça do outro, estava absorto nos desenhos da torre. Cada um lhe fazia agora total sentido, ele só precisava reorganizá-los, estavam uma bagunça só...

— “Vamos, concentre-se, Regido!” — falou o dragão, cada vez mais entusiasmado. — Essas palavras são suas, você sempre as trouxe consigo, dite-as para mim! Não tenha receio de me acordar; a Terra, a mais velha e poderosa criação da Coroa-Branca há de me suportar até o dia em que o seu coração será capaz de fazer tal coisa, até o dia em que ele será tão eterno quanto este cristal que me contêm. Parolu, Sceptro Mastro!!”.

— Vamos logo com isso!! — gritou Hazaniel, raivoso.

O homem agitou a mão de vidro, cortando o ar rapidamente e ferindo os braços e o rosto de Luan, criando várias linhas de líquido escarlate. Entretanto o regido não esboçou nenhuma expressão de dor, continuou imóvel sentado no chão, olhando fixa e vidradamente para a torre de cristal.

Hazaniel, com a raiva quase estourando uma veia em sua têmpora, ergueu mão para mais um ataque. Só que, para seu espanto, Luan olhou-o e paralisou-o antes disso acontecer. O homem só conseguia respirar e piscar os olhos espantados rapidamente, todo o resto estava duro como pedra.

Hazaniel observou as correntes que seguravam o outro se dissolverem em areia. Os olhos de Luan agora estavam cobertos por uma aura verde-jade de luz intensa.

— Você não queria que as palavras fossem ditas, homem?! — disse o jovem, com a voz trovejante de Tepúc Amaru. — Pois elas serão, e você vai se arrepender de tê-las ouvido!





“Não se preocupe. Não fuja.”

“Lute!”

“Eu ficarei bem.”

“O Escudo é a face da Proteção. Sabe discernir o bem e o mal, é a salvaguarda de quem se perdeu do caminho.”

“A Estrela será a minha guia ante toda escuridão.”




Estel jogou-se no chão para não ter o braço arrancado. A forma que a nuvem negra tomara era no mínimo mortal. Torso de homem, focinho de lobo e chifres retorcidos, com juba e coração de chamas douradas. A criatura não se separara totalmente de Solenni, ficando suas pernas presas ás costas da espártaca.

— Por favor, não prolongue demais a situação. — falou Hazaniel, com toda calma. — Você não entendeu que vai matá-la se enfrentar seu inimigo? Ele engoliu a alma dela, portanto feri-lo é ferir a ela também.

O defensor não disse nada e continuou o embate, que na verdade resumia-se a ele se esquivar das investidas do demônio, o qual não precisava nem sair do lugar para fazê-lo. Seus braços eram elásticos, terminados em grandes patas com garras, que se movimentavam como chicotes.

Num desses ataques, as garras do monstro fincaram no chão com mais força do que deveriam, ficando presas. Estel aproveitou esse momento para fazer um teste. Aproximou o escudo do braço negro e observou a reação que ele já esperava: a substância afastava-se quando a arma tentava entrar em contato com ela. O defensor forçou até que a ligação entre a mão e o braço da criatura fosse apenas alguns fios; incomodada, ela jogou a outra mão para cima do regido, que escapou.

Ele já sabia o que fazer. Entendeu as palavras que ouvira.





— Quem por muito tempo dormiu, agora se levantará! Quem por muito tempo esperou, agora será liberto! — anunciou Luan, agora com sua voz normal, mas não menos impressionante, espalmando a mão sobre o cristal. Seus olhos brilharam ainda mais — Soberano seja aquele sob o signo da Lua Minguante, o que detêm a Terra sob o seu cajado! Erga-se Tepúc Amaru!

A torre de cristal rachou em todo seu comprimento. O dragão abriu os olhos, mostrando pupilas em forma de lua minguante e íris verdes lapidadas como jóias.

E o tremor começou.





Estel não podia esperar mais. O outro, cansado de esperar a desistência do defensor, resolvera retirar por completo a criatura de dentro de Solenni, que não mais se mexia.

O regido correu, desviou dos braços do monstro e pulou para cima dele, ficando muito próximo do peito.

Sxildo Verda! — exclamou o defensor.

A cúpula verde surgiu, cresceu e envolveu Estel por completo. A reação de repulsão aconteceu, partindo a sombra em duas. Ela urrou. Hazaniel espantou-se.

O defensor colocou junto a si a única coisa que sobrou da separação: um passarinho que emanava uma morna e leve luz de ouro. Segundos depois ele sumiu e Estel viu o mundo rodar. Alguém largara, de repente, uma montanha em suas costas. Tal o peso que sentia no corpo que não aguentou e caiu no chão.

Imagens passavam rapidamente dentro da sua cabeça. Reconhecia todas, mesmo que nunca as tenha vivido. Era a alma dela. Os sentimentos dela. As memórias dela. Ele agora era ela.

Havia uma mulher muito parecida consigo, e estava nos braços dela. Havia também um homem que acariciava seus poucos cabelos vermelhos. Havia alegria ali.

Depois houve uma conversa dessas pessoas com outro homem, seu avô anos mais novo, uma conversa que ela ouviu. Havia tensão ali.

Em seguida houve gritos, quebradeira e sangue. Ela viu isso, por uma pequena fresta. Havia terror ali. E houve também muitas lágrimas e pesadelos.

Noutro momento, os risos voltaram, tímidos, diante da companhia e da insistência de um jovem. E havia alegria novamente.

Contudo, voltaram logo depois também os gritos e o sangue. Ela viu isso de novo. Havia desespero ali. E houve de novo lágrimas e pesadelos.

Logo em seguida houve estradas e lugares muito longes. Houve seu avô lhe dando bênçãos em partidas. Havia solidão ali.

E houve, de repente, sonhos estranhos, encontros com estranhos, um enganador e o outro perdido. E este perdido foi se achar perto dela, tão perto que não queria que ele se achasse realmente, que fosse embora... Havia medo ali.

E houve então revelações, novos sonhos estranhos e novos encontros com estranhos. Um deles tornou-se querido, um irmão. Havia conforto ali.

Por último houve a verdade. E era mesma verdade do estranho perdido. O mesmo sentimento. E havia satisfação ali.

Junto com tudo isso, havia a figura de um jovem num oásis. Um sonho constante e muito familiar... E o jovem disse: “O Sol...chamam-no de rei. Mas do que adianta reinar solitário? Ver de longe o que se quer mais perto? Perdoem-no, ele só não deseja ferir ninguém. Nem a ele mesmo.”

Estel, perdido no meio de tantas visões, sentia o peito inchar com todos aqueles sentimentos ao mesmo tempo. As lágrimas corriam soltas pela face, a dor era enorme tanto por dentro como por fora. Ele não estava agüentando mais, tinha que devolver a alma à dona.

Hazaniel estava perplexo, sua invocação não era mais que poeira agora. Contudo não importava mais isso...o defensor não agüentaria duas almas num mesmo recipiente. Solenni estava vazia, quase pronta. Ele teria seu objetivo logo alcançado. Só para ter certeza, aceleraria o processo sobre o regido.

Nesse momento a terra tremeu com violência.

Hazaniel desequilibrou-se e Estel, aproveitando que o outro caia em sua direção, ergueu o escudo e descontou toda sua raiva no rosto do homem. Este foi jogado de encontro a uma árvore próxima, a face manchada de vermelho. Ele gritou de dor, mesmo com o sufoco que a pancada nas costas lhe trouxera. A terra tremeu ainda mais. O defensor começou a andar vagarosamente arrastando os joelhos, pois o peso que sentia no corpo não lhe deixava fazer mais que isso. Chegando a Solenni, levantou-a e deixou-a sentada, apoiada em seus braços. O corpo dela estava gelado.

— Solenni...vamos... — falou Estel, com voz sufocada. Não aguentava mais tanto peso, nem a perspectiva de que a outra não acordaria. — Volta logo....por favor...volta logo!!




As pessoas de Diamantina corriam de um lado para outro, assustadas. Tudo tremia. Os que trabalham na pedreira fugiram, pois um enorme buraco começara a se abrir a partir da velha mina. Um rugido poderoso sobressaiu-se ao barulho do terremoto e, logo em seguida, o dono do rugido.

Uma criatura titânica e gloriosa. Tepúc Amaru. Eles sabiam quem era. Um Dragão-Totem. Escondido há tanto tempo que alguns juravam ser apenas conversa fiada de bêbado. Aparentava uma tartaruga, com casco e pernas grossas como milhares de colunas unidas; sua pele era de pedra marrom-cinzenta, cheia de detalhes como os da parede de seu túmulo; as costas exibiam estacas de cristais, placas de metal e musgo verde-oliva. Uma gigantesca estátua que ganhara vida. A cabeça era triangular como a de uma serpente, no alto de um longo pescoço erguido, mas com o maxilar inferior agigantado; exibia como coroa dois pares de chifres enrolados de carneiro, dois para frente, dois para trás. Os olhos eram grandes orifícios onde uma luz verde-jade inflamava.

— O Soberano da Terra ergueu-se mais uma vez! — exclamou a criatura, orgulhosa e livre. — E que o Sábio-Rei tenha compaixão daquele que se atreveu contra a vida do meu libertador e daqueles a quem ele cativou!!





— Não acredito! Ele conseguiu despertar o dragão!! Pensei que fosse impedi-lo, aquele inútil!! — resmungou Hazaniel, tentando em vão conter a hemorragia no nariz.

Amaldiçoando o defensor, que nem o notou, o homem sumiu.

Estel, enquanto isso, não conseguia mais respirar devido à dor em seu peito. A terra tremia, árvores caíam e o regido não podia proteger a si nem a Solenni há não ser com um escudo mal erguido. Além disso, o corpo da espártaca estava empalidecendo e ficando cada vez mais gelado. Abraçou-a com força. Ela não podia... Uma pontada no peito.

O passarinho dourado saía de uma passagem de vespertritas com pressa; por conta das pontas dos cristais, uma de suas penas permaneceu no caminho e um pedaço de jóia ficou preso entre sua plumagem.

Solenni recobrou a consciência como quem finalmente conseguia respirar depois de ficar muito tempo em baixo d’água.

. . .